Ah, o poder das histórias! Contamos historinhas para nós mesmos o tempo todo, algumas delas mais verdadeiras que outras, e tendemos a acreditar nelas. São as narrativas: é a forma como, raciocinando, ligamos os pontos da realidade (os fatos, reais ou imaginários) para criarmos uma história coerente para entendermos o mundo, uma explicação que justifique nossos julgamentos e decisões, e que nos sirva de base para decidir o que é bom e o que é mau, quem é herói e quem é vilão.
No campo das militâncias, várias narrativas emergentes têm envolvido o que vou chamar de falácia da causalidade infinita. É algo muito simples de ser identificado, depois que nos damos conta do artifício.
Na verdade, é impossível não considerarmos a causalidade em nossas vidas. Quando alguém nos prejudica, conectamos o efeito à causa, e identificamos a culpa. Todos os sistemas judiciários do mundo baseiam-se nisso. Assim, um cirurgião irresponsável cujo desleixo leve um paciente a morrer será responsabilizado pelo ocorrido, devido à lógica da causalidade. Da mesma forma, pais abusivos podem ser claramente considerados como a causa dos transtornos psicológicos de seu filhos.
O problema é quando o argumento envolve uma série extensa de conexões causais distanciadas no tempo e no espaço, em uma corrente em que o elo inicial (a "causa") e o elo final (a "consequência") estão separados por dezenas, centenas ou milhares de interações/decisões intermediárias. É a causalidade infinita.
Uma das formas de emprego mais comuns dessa falácia ocorre entre feministas e ativistas LGBT+. Para alguns destes, fazer uma piada envolvendo a sexualidade de pessoas que não são heterossexuais é uma forma de contribuir com o assassinato de gays, travestis e pessoas transgênero marginalizadas. A explicação dada é uma narrativa envolvendo a causalidade infinita: ação A possivelmente causará ação B que possivelmente causará ação C que possivelmente causará ação D ... até chegar a X, que é a hipérbole pretendida. Logo, o praticante da ação A é responsável pelo resultado X.
Nessa mesma linha argumentativa, temos pérolas como: "o erotismo feminino no cinema e nos games leva os homens a objetificarem as mulheres"; "os concursos de beleza sinalizam inconscientemente para as mulheres que elas são incapazes para cargos sérios ou de gerência"; "meninas que brincam somente com brinquedos de menina acabam se tornando adultas submissas"; a lista não acabaria nunca, pois novas aberrações do gênero são produzidas e publicadas todo dia (uma indústria de mídia inteira gira em torno disso). Esses argumentos não soam diferente daquele "ela foi molestada porque se vestia de forma promíscua": apesar de haver uma conexão tênue entre os eventos, a causa/responsabilidade/culpa é colocada no lugar errado.
E não esqueçamos da apropriação cultural. Tente perguntar a um militante como esse tipo de "apropriação" pode causar qualquer mal a alguém, e você provavelmente escutará uma argumento de causalidade infinita.
Note que atribuir a uma pessoa a responsabilidade por algo grave ou abominável, como base em gestos neutros ou inócuos desta pessoa, é uma tática de abuso narcisista, semelhante ao gaslighting. A lógica é óbvia: constranger alguém a obedecer a certo capricho pessoal valendo-se de acusações difamatórias severas, explorando a ética da pessoa-alvo para obter conformidade. Deveria ser óbvio, mas atualmente é preciso lembrar: mau-caratismo e manipulação emocional não têm raça, sexo ou orientação sexual.
E uma segunda forma de usar a falácia é a conhecida dívida histórica. Como se diz popularmente, são pessoas que nunca foram escravizadas exigindo reparação de pessoas que nunca foram escravocratas. Isto, claro, no caso das reparações pela escravidão; mas argumenta-se também a existência de dívida histórica entre homens e mulheres, pessoas transgênero e não transgênero, etc.
Seria totalmente legítimo que escravos libertos recebessem indenização pelo tempo em que foram oprimidos. Em tal caso, a relação entre o oprimido e o opressor é direta: a vítima e o culpado estão vivos, e as ações que os conectam (a escravidão) foram praticadas de forma direta, intencional.
No caso das dívidas históricas sobre as quais escutamos atualmente, a situação é diferente. Temos outra vez a causalidade infinita: se um grupo de pessoas A causou situação B que afetou situação C que afetou situação D que afetou situação E ... que afetou um grupo X, então os descententes de A têm obrigação para com o grupo X em qualquer momento do futuro. É a herança da culpa, ou herança dos pecados dois pais, semelhante à maldição lançada a toda a espécie humana pela transcrição de Eva, na mitologia judaico-cristã.
Com esforço e imaginação, qualquer pessoa pode ser culpabilizada por qualquer coisa. Isto porque as ligações causais são virtualmente infinitas. Algumas pessoas familiarizaram-se com esse conceito através do chamado efeito borboleta.
Ao cumprimentar seu vizinho, por exemplo, você pode atrasá-lo em alguns segundos em suas atividades diárias, o que pode levá-lo a sofrer um acidente de carro e morrer. Seria isso sua culpa? As cadeias de causa e efeito são intermináveis, e toda tragédia deriva, em parte, de infinitas ações bem-intencionadas e inocentes. Até que ponto você está disposto a restringir sua vida temendo por efeitos improváveis ou imprevisíveis, eventos totalmente fora do seu controle?
E de forma semelhante, até que ponto no passado você voltaria para calcular a necessidade de reparação histórica? De quem cobrar indenização, se o culpado já não existe? Como fazer justiça quando as vítimas e os culpados já estão mortos? Além disso, qual o sentido em prestar reparação a um único grupo, se considerarmos as infinitas mazelas e injustiças sofridas por todo tipo de gente desde o início dos tempos, de forma diferente para cada indivíduo, e por culpa de agentes os mais diversos? E quanto às famílias negras escravocratas, para citar um exemplo específico: deverão elas receber indenização, ou pagá-la?
De preferência, portanto, evite essa falácia, e não a aceite como argumento para nada. Se levada às últimas consequências (isto é, se for levada a sério), ela reduzirá a liberdade humana a zero — já que toda ação influenciará em parte, e algum momento, algo indesejável —, e justificará a perpétua rivalidade entre grupos com base em querelas, traumas e injustiças do passado.