Disse então o rei à menina: pede-me o que quiseres, e eu to darei. E jurou-lhe, dizendo: tudo o que me pedires te darei, até metade do meu reino. E, saindo ela, perguntou a sua mãe: que pedirei? E ela disse: a cabeça de João o Batista.
— Evangelho de Marcos
S alomé ocupa uma posição singular entre as figuras femininas da literatura ocidental. Em meio a personalidades míticas ou históricas de grande relevância cultural como Eva, Helena de Troia, Cleópatra, Afrodite ou Joana d'Arc, ela se destacou pelo terror e pelo mistério que sua conduta amoral inspirava.
Foi somente no século XX que a ideia de uma autonomia social feminina ganhou espaço: até então, mulheres como Salomé suscitavam ao mesmo tempo pavor e admiração por rebelarem-se contra as normas de sua cultura e perseguirem, acima de tudo, os seus próprios desejos — pulsões muitas vezes narcísicas, não raro antiéticas ou tão virulentas como outras tipicamente masculinas.
Fascinados por essa índole determinada, intempestiva e historicamente incomum, artistas e escritores dedicaram-lhe referências sem conta ao longo dos séculos. Nenhuma dessas representações, contudo, consolidou-se tão fortemente como em uma das peças de Oscar Wilde.
Mórbida e provocativa, a Salomé (1891) de Wilde é uma tragédia em apenas um ato cujas linhas narrativas apresentam-se quase idênticas às de seu mito inspirador. Nela, uma jovem princesa dança para o seu Você também pode gostar: Lilith, antes de Eva - O Mito da Primeira Mulher da Criação padrasto, o rei da Galileia, a fim de obter como recompensa a cabeça decepada de um santo. Esse mote, exótico e peculiar, é incorporado por Oscar Wilde quase sem alterações. Por meio de uma estetização muito particular, contudo, e com ligeiras modificações de enredo, ele elabora uma releitura cheia de novas significações e com a marca de seu estilo literário.
A primeira aparição textual de Salomé pode ser encontrada nos Evangelhos de Marcos1 e Mateus2. Ambos recontam um episódio que teria se passado na corte do rei Herodes Antipas, tetrarca da Galileia no século I. Segundo seus relatos, Herodes mantinha aprisionado em seu palácio o profeta João Batista, homem perigosamente influente entre os hebreus devido à sua fama de santo; recusa-se, contudo, a ordenar sua execução, receando uma revolta popular. Certa noite, em meio a um banquete acalorado, o rei — bastante embriagado — sente-se atraído por Salomé, filha de sua esposa, e lhe suplica:
Salomé! Salomé! Dançai para mim. Suplico-vos, dançai para mim. ... Se dançardes para mim, podereis pedir-me tudo o que desejardes e, ainda que seja a metade do meu reino, eu vos darei.3
De acordo com os Evangelhos, Herodes casara-se com Herodíade, esposa de seu irmão. Sua união havia sido amaldiçoada publicamente por João Batista, entretanto, que considerara seu casamento ilícito. Herodíade odiava-o e, aproveitando-se da oferta que o rei fizera à sua filha, instruiu Salomé a dançar para seu esposo e pedir como recompensa a cabeça de João.
Segundo Marcos e Mateus, Salomé recebe a cabeça do homem santo em um bandeja, e em seguida a leva para sua mãe.
A veracidade histórica dessa dança assassina é duvidosa: uma princesa dançando sozinha num banquete de homens é exemplo único nos Testamentos e pouco provável na Judeia do século I. ... Devemos, portanto, considerar o episódio não como um fato, mas como um julgamento moral.
— Mireille Dottin4
Segundo a autora, o relato foi provavelmente manipulado pelos hebreus no intuito de difamar a corte dissoluta de Herodes, usando como base um evento real ocorrido com um governador da Gália.
Nos testamentos bíblicos, Salomé é caracterizada como um mero instrumento das maquinações cruéis de sua mãe Herodíade. Em Mateus, por exemplo, a jovem princesa havia sido "instruída previamente por sua mãe"2, e sua dança é executada para concretizar a vingança desejada pela rainha. Em Marcos, não há nenhuma motivação declarada para a dança de Salomé, mas após o ato a princesa "perguntou a sua mãe: que pedirei? E ela disse: a cabeça de João o Batista"1.
Sem dúvida, a modificação de enredo mais importante realizada por Oscar Wilde foi trazer Salomé para o centro da ação em seu peça, colocando-a como a responsável pela execução de João Batista. Herodíade, a mãe, passa a ser uma personagem secundária na peça de Wilde, dando lugar à princesa e as suas motivações e desejos particulares. Wilde deixa-o bem claro: "Não ouço minha mãe", afirma Salomé. "É para meu íntimo prazer que peço a cabeça de Iocanaan [João Batista] numa bandeja de prata."3
Obs.: "Iocanaan", nome hebraico de João Batista, provavelmente teve a preferência de Wilde devido à sua sonoridade. Muitas vezes repetido por Salomé, ele parece soar melhor — mais exótico e misterioso — em sua forma original.
No entanto, não foi Wilde o primeiro a conceder à princesa o lugar de protagonista.
Desde a Antiguidade, muitos autores passaram a especular o que havia para além do vácuo narrativo bíblico no episódio de Salomé. Não somente as motivações e os sentimentos da personagem constituíam um mistério, como também seu nome era desconhecido. Nos textos de Marcos e Mateus, ela é referida apenas como "a filha de Herodíade", e seu batismo como "Salomé" foi bastante tardio.
Talvez o desconforto causado por suas ações, relacionado tão diretamente à sexualidade, revolvesse provocativamente o inconsciente de muitos leitores — dada a insistente repressão dos desejos naturais em vários períodos históricos. Assim, ao longo da história, Salomé veio a transformar-se em um arquétipo de sensualidade, tentação e perdição, atributos da mulher fatal:
Adorada e execrada, fascinante e terrível, uma deusa de grande beleza e luxúria, diante da qual João não passa de mero adorno, ou simples acessório num teatro de horror.
— Mireille Dottin4
Em finais do século XIX, ela torna-se uma obsessão coletiva representada nas mais diversas formas de arte — literatura, pintura, música e teatro —, além de se tornar uma referência comum entre cronistas e jornalistas. Maurice Krafft chegou a contar 2.789 poemas glorificando Salomé.4 No campo literário, a presença mais marcante do mito encontrava-se entre os simbolistas e os decadentistas, movimentos que influenciaram fortemente o trabalho de Wilde.
Robert Ross, que escreve o prefácio original para a edição inglesa de Salomé, considera que a ideia inicial de retratar o tema da princesa hebreia ocorrera a Wilde a partir de seu contato com uma série de pinturas de Gustave Moreau inspiradas no mesmo tema5. Mas seu fascínio pelo tema é provavelmente anterior, como veremos adiante.
Outro fator determinante para a criação da peça Salomé foi a filosofia de vida de Oscar Wilde — o dandismo6. O dândi, como o define Baudelaire6, pratica um conjunto de costumes — evidentemente aristocráticos — que não estão diretamente ligados à produção artística, mas que implicam uma contemplação máxima do Belo em suas mais diferentes formas. Acima de tudo, o dandismo aprecia o excepcional, tudo o que é raro e que se destaca para além do medíocre. Todo dândi, por definição, é amoral, mas Wilde peita ainda mais diretamente as convenções moralistas da sociedade de sua época e, igualmente influenciado pelas ideias decadentistas, defende:
O objetivo do artista era [ou deveria ser] captar a beleza da maneira que ele considerasse mais adequada, desprezando qualquer preocupação social, ou até mesmo valores associados à esfera ético-moral.
— Oscar Wilde7
Mas se os dândi amavam o excepcional, Wilde deu um passo além e apaixonou-se pelo raro excêntrico, e não apenas pela Belo agradável, mas também pela estética do feio, do aversivo — e, por isso, ele pode ser considerado, em alguns sentidos, como um Você também pode gostar: Das Sacerdotisas às Bruxas: Uma Breve História das Feiticeiras precursor da cultura campy. Considera-se que essa filosofia de vida (e sua concepção de arte derivante) seja uma versão contemporânea do dandismo8.
Susan Sontag, em seu livro Notas sobre o Camp (1964), afirma que esse modo pós-moderno de encarar o mundo tem como característica a concepção de que algo "é belo porque é horrível". Em Salomé, de Wilde, não apenas a personagem parece fascinada pelo horrível, mas a própria escolha do tema e de sua ênfase indicam o fascínio do próprio autor.
Solicitado a entregar à Salomé a cabeça do santo, Herodes fica horrorizado:
— É terrível, é pavoroso pedir-me isso. ... Cabeça de um homem separada do corpo é horripilante de ver-se.3
Segundo Sontag, o camp "recusa a distinção entre belo e feio tópica do juízo estético comum ... Não sustenta que o belo é [necessariamente] feio ou vice-versa. Limita-se a oferecer à arte (e à vida) um conjunto de critérios de juízo diversos, e complementares."8
A filosofia artística do camp é, portanto, um desdobramento contemporâneo do dandismo, na medida em que este último concedia ao dândi a possibilidade de apreciar o que bem entendesse sem os filtros do moralismo, buscando a fruição estética do que quer que fosse. Umberto Eco define: "o Camp não se mede com base na beleza de algo, mas no seu grau de artifício e estilização ..."8. O gosto pelo camp, porém, não é uma inteiramente exclusivo de nossa época, como o nota Sontag8, e muitas de suas características podem ser encontradas entre os autores decadentistas.
No que tange à forma, Oscar Wilde compôs um diálogo simples e cheio de repetições, com uma série de conversas circulares. Muitos críticos atribuíram esses atributos a uma possível fraqueza do autor no idioma francês, língua em que a peça foi originalmente escrita. É mais provável, contudo, que se tratasse de uma opção estética: simplicidade e repetição são duas características do trabalho simbolista de um dos autores que influenciaram a escrita de Wilde, Maurice Maeterlinck9. Um dos efeitos desse tipo de composição é o da musicalidade: os trechos repetidos soam como rimas, e a economia gramatical confere à peça um tom lírico.
No entanto, Salomé é em vários sentidos uma peça decadentista, corrente literária cuja principal característica estética era o verbalismo7 — tendência literária que atribuía maior importância às palavras do que às ideias transmitidas. Mireille Dottin, em seu estudo sobre o mito literário de Salomé, considera que a peça de Wilde "é mais decadente do que simbolista, pela sua sanguinolenta história de mau gosto e seus requintes crepusculares"4. Pois, dentre os decadentistas, as temáticas mais apreciadas eram a perversão sexual, a artificialidade, o egoísmo, a curiosidade mórbida pelas coisas misteriosas e o prazer das sensações raras ou inconfessáveis7.
Sedução, Atração e Morte
Como exemplo de sua notável influência simbolista, Wilde parece trabalhar todos os elementos de sua peça como símbolos — e o mito de Salomé é muito produtivo nesse sentido, tendo em vista a presença de tópicos arquetípicos como mulher, lua, sexualidade, dança, desejo e morte, entre outros tantos. A simbologia é tão intensa e reiterada ao longo da obra que o próprio Herodes a comenta:
Não se deve encontrar símbolos em tudo que se vê. A vida tornar-se-ia impossível.7
Por um lado, a sensatez deste personagem é notável, pois ao considerar que a realidade e os símbolos que a representam são a mesma coisa, uma leitura interpretativa do mundo seria não apenas equivocada, mas não teria fim. Ainda assim, Herodes é uma criação literária e, no contexto em que pode existir, o ficcional, tudo de fato são símbolos. A ironia autoral é evidente: dentro da obra literária, o sistema semiótico é o pressuposto essencial da existência.
Um dos momentos mais simbólicos da peça é a dança de Salomé para o rei. Enquanto escrevia a peça em um café, Wilde conta que chamou um músico e lhe disse o seguinte:
Estou escrevendo uma peça sobre uma mulher dançando com seus pés descalços sobre o sangue de um homem que a desejava e que ela imolou. Eu gostaria que você tocasse algo em harmonia com os meus pensamentos.10
O homem a que Wilde se referia não era João Batista, mas um jovem sírio — invenção sua para o episódio de Salomé.
Esse novo personagem é Narraboth. Ao vislumbrar a princesa na noite do banquete, Narraboth apaixona-se instantaneamente por ela, e seu desejo torna-se uma obsessão. Ciente de que o jovem a desejava, Salomé decide seduzi-lo e manipulá-lo para ter acesso ao cárcere de João Batista. Os soldados do palácio estavam proibidos de deixá-la entrar, mas Narraboth poderia intervir por ela.
Fareis isso por mim, Narraboth. Fareis isso por mim. E amanhã, quando eu passar na minha liteira por sobre a ponte dos compradores de ídolos, olhar-vos-ei através dos véus de mussolina, olhar-vos-ei, Narraboth, e talvez vos sorria. Olhai para mim, Narraboth, olhai para mim. Ah! Bem sabeis que ides fazer o que vos peço. Vós o sabeis... Bem sei que fareis isso.3
A imagem da mulher fatal, desejada e manipuladora, não poderia ser levada a um extremo maior. Pela promessa de um olhar, o jovem sírio aceita ajudá-la, desobedecendo as ordens do rei. Seu servilismo não lhe rende qualquer resultado, entretanto; apesar de tentar agradar Salomé por diversas vezes, ele acaba por suicidar-se frente à rejeição. E a princesa não apenas ignora por completo sua imolação, como dança sem remorsos sobre o seu sangue.
Obstinada e cruel, a Salomé de Wilde não se submete a nada.
Em um momento anterior da peça, ela pede a um soldado que a deixe falar com João Batista. "Desejaria falar-lhe", ela diz. O soldado responde "O Tetrarca não deseja que pessoa alguma o faça. Até mesmo o Sumo Sacerdote está proibido de falar-lhe." Salomé: "Desejo falar-lhe." Torna o soldado: "É impossível, princesa." Salomé decide: "Falar-lhe-ei."3 A progressão dos verbos é também simbólica: desejaria falar-lhe; desejo falar-lhe; falar-lhe- ei.
Se, por um lado, a representação de Salomé reflete uma atitude de poder e autonomia em relação aos homens, o que a torna admirável, sua crueldade e egoísmo a tornam claramente malévola. Essa aparente contradição não é gratuita, e seu valor estético (pelo efeito desconfortável e, por isso, intrigante) é replicado em uma série de outros binômios de opostos na peça: medo/atração, terror/desejo, sagrado/profano, cristianismo/paganismo, natural/artificial, amor/ódio.
Júlio Monteiro, em seu estudo sobre uma das traduções brasileiras de Salomé, aponta para a forte influência que a mãe de Wilde, Jane Francesca Elgee, mais conhecida como Lady Wilde, exerceu sobre sua personalidade e seu trabalho.7
Lady Wilde defendia publicamente ideias feministas e, militante política, professava um discurso bastante subversivo para sua época. Ligada às artes, escrevia poemas revolucionários e gostava de desfilar pela casa como uma diva no palco de um teatro; tinha um gosto especial pela encenação, e chegava a exibir certo esnobismo. Como em outros exemplos históricos e atuais, o empoderamento feminino de Lady Wilde vinha associado ao narcisismo, ao exibicionismo, ao senso de superioridade moral e à arrogância.
Não à toa, Oscar a venerou durante toda a vida.7 Tal fenômeno é comum quando meninos são criados majoritariamente pela mãe, quando esta apresenta traços de narcisismo (o que foi o caso de Wilde). Segundo a doutora e terapeuta Darlene Lancer, a mãe narcisista "usa e explora o filho para lhe dar atenção e admiração e para satisfazer seus desejos e necessidades. Ela o faz se sentir amado, importante e valorizado, reforçando sua dependência."11 Estas características alinham-se perfeitamente à fascinação de Oscar Wilde pela figura da mulher fatal, egoísta e cruel. Se este de fato foi o caso de Lady Wilde, porém, é difícil precisar.
Lady Wilde realizara a tradução de um enigmático romance gótico intitulado Sidonia the Sorceress (Sidônia, a Feiticeira), e Oscar afirmava ter sido "a história dessa feiticeira sádica e necrófila, que sentia prazer dançando sobre caixões, ... uma de suas leituras favoritas quando garoto".7 Os elementos satânicos e misteriosos desse texto parecem ter se enraizado entre os gostos do autor desde cedo, determinando a temática e a estética tanto de Salomé quanto de sua obra mais conhecida, O Retrato de Dorian Gray.
A emancipação da mulher defendida por Lady Wilde implicava, contudo, uma consequente libertação sexual — algo que muitos artistas buscaram abordar durante a era vitoriana, apesar das censuras e da hipocrisia. Mas avesso à função social das artes, Oscar Wilde não se preocupou em evitar a demonização da sexualidade: ele parece ter se enamorado dessa concepção mórbida do sexo e, em Salomé, o desejo coloca-se como sinônimo de perdição.
Ao olhar insistentemente para Salomé, o jovem sírio é advertido por um pajem: "vós a olhais exageradamente. É perigoso olhar-se alguém de tal maneira. Algo terrível pode acontecer".3 Durante toda a peça, o ato de olhar é associado ao desejo e, ao ser praticado, conduzia inexoravelmente à perdição. O poder da imagem, contudo, é exercido de maneira unilateral: o sírio vê Salomé, passa a fazer tudo por ela — e por ela, ele morre; Salomé vê João Batista, passa a fazer tudo para tê-lo — e, como consequência, ele acaba morrendo. João Batista, no entanto, voltava-se para Deus:
Viste o teu Deus — diz Salomé, à cabeça do santo —, porém eu, jamais fui vista por ti. Se me tivesse visto, ter-me-ias amado. Eu, eu te vi, ... e amei-te.3
A sexualidade de Salomé — nada mais do que um mistério nos textos bíblicos — é colocada como sua principal motivação na peça de Wilde, ora associada à divinação da lua, ora contraposta à pureza idealizada pela sociedade vitoriana.
A lua, outro símbolo recorrente em Salomé, é representativa da ambiguidade intentada pelo autor, sendo comumente associada ao feminino, de forma geral, e à fronteira entre a realidade e a loucura. As personagens da peça por diversas vezes se referem à contemplação da lua como um perigo devido à possibilidade de se sucumbir e perder a razão. O pajem da rainha exclama, em dado momento:
Olhai a lua! Como parece estranha! Dá a impressão de uma mulher erguendo-se do túmulo. Assemelha-se a uma mulher morta. Parece cismar com coisas fúnebres.3
O jovem sírio complementa: "parece dançar". Se a lua, aqui, é associada a Salomé, em outros momentos é Salomé quem é associada à lua. A própria princesa observa o astro, e reflete — como se falasse de si mesma: "A lua é fria e casta. Estou certa de que é virgem. Nunca se maculou. Jamais se ofereceu aos homens como as outras deusas."3
Intriga-se Herodes:
A lua tem uma estranha aparência esta noite. ... Parece uma mulher louca, uma mulher louca buscando amantes por toda parte. Está nua também, inteiramente nua. As nuvens procuram velar-lhe a nudez; ela, porém, não consente.3
Não satisfeito em apenas abordar a sexualidade, Oscar Wilde ainda a utiliza como forte provocação à religiosidade. A ideia de pureza, associada à figura santa, é inclusive o fetiche de Salomé, que reflete: "tenho a certeza de que ele [João Batista] é tão puro como a lua. É como um raio de luar, como um dardo de prata. Sua carne deve ser tão fria como o marfim. Quero vê-lo de perto".3 A santidade a atraía, e de modo algum a intimidava. Quando João Batista a aconselha a procurar Jesus, "filho do Homem", a fim de abandonar seus pecados, ela lhe pergunta: "Quem é o filho do Homem? Ele é tão belo como tu?"3 Nem mesmo Cristo escapa a seu desejo carnal.
Em um trecho repleto de simbologia, Salomé declara:
Iocanaan [João Batista], sinto-me atraída pelo teu corpo! ... nada existe neste mundo tão branco como o teu corpo. Deixa-me tocar o teu corpo. ... Não há nada no mundo tão negro como os teus cabelos... Deixa-me tocar os teus cabelos. ... Não há nada nesse mundo, nada tão vermelho como a tua boca... Deixa-me beijar a tua boca.3
Ao final, mesmo desprezada pelo santo, Salomé cisma em obtê-lo como objeto de prazer e, com sua cabeça decepada em uma bandeja, fala-lhe:
Consideraste-me ninguém, Iocanaan. Desprezaste-me. ... Bem, ... eu estou viva; mas tu estás morto e a tua cabeça me pertence. Posso fazer dela o que desejar.3
Oscar Wilde, indiferente às questões sociais no interior de sua arte e sem medo de evocar o que há de mais contraditório no ser humano, dá à princesa hebreia não apenas o direito ao poder e à realização, mas também à crueldade e a uma obstinação sem limites. "Tenho sede da tua beleza" declara Salomé ao homem santo, sem pudor de profaná-lo. "Tenho fome do teu corpo; e nem o vinho e nem os frutos podem saciar os meus desejos."3
Ao final, com a cabeça de João Batista em suas mãos, regozija-se:
Ah! Não me deixaste beijar a tua boca, Iocanaan. Bem! Beijá-la-ei agora. ... Eu te disse, não?"3
Fontes:
1. Evangelho de Marcos VI, 14-29.
2. Evangelho de Mateus XIV, 1-12.
3. WILDE, Oscar. Poemas em prosa e Salomé. Rio de Janeiro: Ediouro.
4. DOTTIN, Mireille. Salomé. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
5. ROSS, Robert. A note on Salomé. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/123407073/A-note-on-Salome-by-Robert-Ross
6. ECO, Umberto. História da beleza. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 333-335
7. MONTEIRO, Júlio César dos Santos. Salomé de Oscar Wilde na tradução brasileira de João do Rio. Florianópolis: UFSC, 2012.
8. ECO, Umberto. História da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 408-419.
9. SPARKNOTES EDITORS. SparkNote on Salomé. SparkNotes LLC. Disponível em: http://www.sparknotes.com/drama/salome/
10. DEAGON, Andrea. Salomé's dance of the seven veils: Oscar Wilde, esoteric thought, and the dancer. Disponível em: http://thebestofhabibi.net/vol-19-no-2-sept-2002/oscar-wildes-salome/
11. LANCER, Darlene. Sons of narcissistic mothers. Codependency, 14 dez. 2019. Disponível em: https://whatiscodependency.com/sons-narcissistic-mothers/