O Mito das Sereias | Origens e Simbologias | Fantástica Cultural

Artigo O Mito das Sereias | Origens e Simbologias

O Mito das Sereias | Origens e Simbologias

Por Paulo Nunes ⋅ 15 jun. 2023
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Descubra como as sereias ganharam sua cauda de peixe, perderam suas penas e, desde sempre, têm traduzido os receios profundos do inconsciente humano.

A Sereia - Arte de John William Waterhouse
A Sereia - Arte de John William Waterhouse

Talvez por fazerem parte da cultura popular, às vezes esquecemos que as sereias são, antes de mais nada, seres mitológicos. Antes de serem transformadas em mercadorias, como brinquedos e personagens de filmes, as sereias existiam no universo do mito — em uma época em que a realidade e a mitologia eram indistinguíveis dentro do saber humano. Para os navegantes da Antiguidade, histórias sobre sereias pareciam tão reais quanto outras sobre baleias e tubarões.

E apesar desta existência quase tangível dos mitos nas eras passadas, é evidente que as sereias são produto da imaginação humana, e suas características parecem refletir certos fascínios e temores de nosso inconsciente.

O canto da sereia, em específico, carrega uma simbologia rica, podendo ser interpretado de modos diversos, com enfoques variados. O alerta para as tentações, o horror ao desconhecido, o receio da perdição pela incontinência dos desejos, são alguns dos temas mais instigantes deste mito.

Sereias - Arte de Jean Francis Auburtin
Sereias - Arte de Jean Francis Auburtin

Atualmente, o conto infantil de Hans Christian Andersen, A Pequena Sereia, é a referência mais popular às sereias. A história foi publicado pela primeira vez em 1837, na Dinamarca, consolidando na imaginação popular a versão que hoje conhecemos: uma jovem bela, com corpo de peixe da cintura para baixo, que anseia ter pernas e poder viver no mundo dos homens. Mas esta adaptação do mito, apesar de engenhosa e cativante, pouco tem a ver com suas origens.

Isto porque as sereias, na mitologia, não são humanizadas como no conto de Andersen: elas são monstros, e sua relação com a humanidade é a da predação. Sereias caçam seres humanos.

Além disso, não há menções à sua beleza — pelo contrário: a única coisa bela a respeito das sereias, no mito grego, é seu canto. Após atrair os marinheiros com sua voz irresistível, elas, é claro, matam suas presas. Não é de todo claro se o objetivo das sereias é alimentar-se do corpo dos navegantes, embora esta seja a explicação mais provável.

O mundo grego era obcecado por muitos tipos de feiura e maldade. ... É um mundo dominado pelo mal, no qual as criaturas, mesmo as belíssimas, realizam ações "feiamente" atrozes. Neste universo, vagam seres assustadores, odiosos por serem híbridos que violam as leis das formas naturais.

— Umberto Eco (Org.), História da Feiura

A maior diferença, porém, entre a imagem moderna da sereia e sua concepção original é a cauda de peixe. Originalmente, as sereias eram metade mulher, metade ave de rapina, à semelhança das harpias. A famosa pintura de John William Waterhouse, abaixo, representa sua forma física de acordo com o mito grego:

Ulisses e as Sereias - Arte de John William Waterhouse
Ulisses e as Sereias - Arte de John William Waterhouse

Foi apenas na Idade Média que as sereias passaram a ser representadas como mulheres-peixe, devido à junção de dois mitos distintos: o das sirenes e o das mermaids.

Como se pode deduzir, a palavra sereia provém do mesmo vocábulo que produziu o termo sirene (como em siren, em inglês, que pode significar "sereia" ou "sirene"). Mas outra entidade mitológica popularizou-se no período medieval: as donzelas do marseamaids (sea + maids), ou mermaids (mer + maids), junção de sea/mer (mar) e maid (moça).

É por isso que, em inglês, o conto A Pequena Sereia intitula-se The Little Mermaid, apesar de a palavra siren (sereia) existir na mesma língua.

Ilustrações publicada em Monstrorum Historia, de Ulisse Aldrovandi (1642)
Ilustrações publicada em Monstrorum Historia, de Ulisse Aldrovandi (1642)

Acredita-se que foi a mitologia dos teutões, povo germânico que habitava o centro e o norte da Europa da Antiguidade à Idade Média, que deu origem à imagem moderna das sereias. Sua aparição era frequente nos bestiários medievais, livros ilustrados que, como dicionários visuais, elencavam todo tipo de criatura maravilhosa, como unicórnios, homens com cabeça de cão, grifos e outras incontáveis esquisitices.

A beleza feminina da sereia também é proveniente da tradição medieval, provavelmente de origem teutônica. Esta tentação visual é bastante conveniente, visto que, tanto nas iluminuras medievais quanto nas pinturas clássicas, sua capacidade de seduzir os marinheiros pode ser enfatizada pela tentação carnal.

A Sereia de Zennor - Arte de John Reinhard Weguelin
A Sereia de Zennor - Arte de John Reinhard Weguelin

Simbolicamente, esta sereia atraente aos olhos pode representar o temor masculino de arruinar-se devido à provocação sexual e à incapacidade de autocontrole. Não à toa, as sereias têm como presa os marinheiros, homens. E a configuração da mulher-peixe, fortuitamente, permite que a parte inferior de seu corpo fique submersa, o que reflete a cegueira momentânea do homem apaixonado/seduzido, devido a seu foco na tentação hipnótica.

Mas como esta associação não existia ainda na mitologia grega, já que as sereias da Antiguidade tinham uma aparência grotesca, sua simbologia é um tanto diferente. A tentação, neste caso, não era a sexual, mas a da beleza de forma geral. O temor parece mais relacionado à perda do autocontrole, ao enlouquecimento.

Assim é narrada uma das mais antigas aparições das sereias na literatura: a deusa Circe, em Odisseia, instrui o herói Odisseu (Ulisses) sobre como passar pelo habitat das sereias sem ser destruído pela tentação.

Hás de deparar-te primeiro com as sereias, cuja harmonia adormenta e fascina os que a escutam. Quem se aproxima delas, por ignorância, esposa e filhos não mais verá em seus doces lares. A vocal melodia o atrai aos prados, onde se acumulam ossos de humanos e podres carnes. Passe avante. As orelhas dos teus sócios com cera tapes; que ensurdeçam de todo. Ouvi-las tu podes, contanto que esteja atado de pés e mãos no mastro, e se, absorvido pelo prazer, ordenares que te soltem, que os companheiros amarrem-te com mais força.

— Odisseia, XII, 25-45.

Este episódio da Odisseia indica-nos que o ninho das sereias, na tradição grega, não era no mar, mas em um prado — o que é esperado, já que estas criaturas são mulheres com corpo de ave. O que chama mais atenção, porém, é o uso da engenhosidade para satisfazer a curiosidade do herói.

Ulisses e as Sereias - Arte de Herbert James Draper
Ulisses e as Sereias - Arte de Herbert James Draper

Apesar de nosso conhecimento sobre as sereias proceder principalmente do conto de Andersen e de suas adaptações para o cinema pela Disney, este mito está presente em uma quantidade impressionante de outras culturas.

No folclore brasileiro, figura semelhante é Iara, embora esta sereia viva nos rios, em vez do mar, e sua especialidade é caçar pescadores. Criaturas semelhantes são descritas em mitologias da Índia (Suvannamaccha, uma princesa sereia), Japão (ningyo), China, África, Coreia e Indonésia. No Egito Antigo, o equivalente às sereias gregas (metade mulher, metade ave) pode ser visto na ilustração de sarcófagos, como símbolos da alma deixando o corpo. Em As Mil e Uma Noites, clássica coletânea de contos árabes, as sereias são descritas como anatomicamente idênticas aos seres humanos, diferenciadas apenas por sua capacidade de respirar embaixo d'água.

O que exatamente é tão fascinante a respeito das mulheres-peixe, presentes em mitologias e folclores do mundo todo, não está bem claro. O fato é que a imagem mítica, uma vez visualizada ou imaginada, parece gravar-se na mente humana.

Sereia - Arte de Elisabeth Baumann
Sereia - Arte de Elisabeth Baumann

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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