O Culto ao Livro - A estranha idolatria dos leitores modernos | Fantástica Cultural

Artigo O Culto ao Livro - A estranha idolatria dos leitores modernos
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O Culto ao Livro - A estranha idolatria dos leitores modernos

Por Paulo Nunes ⋅ 1 jul. 2023
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Que mágicas sagradas os livros escondem?

livros biblioteca

Talvez você não tenha se dado conta, mas existe uma espécie de culto aos livros, em nossa sociedade. Algo semelhante à idolatria, uma estranha deferência a estes objetos vistos como místicos, que poucos consomem, e que são tratados por muitos como a resposta para os problemas do mundo. O fenômeno envolve doutrinação escolar, ignorância, narcisismo e, frequentemente, um quadro mental descrito pela psicologia como coping (uma forma de autoengano protetivo do ego). Neste breve ensaio, esclarecerei estas intrigantes (e controversas) situações.

Agora, se você é um leitor apaixonado, acredito que já deve estar subindo pelas paredes, indignado. Vamos com calma: eu também sou um leitor entusiasta, daqueles que apreciam o brilho e o cheiro de livros novos — mas que também se divertem procurando edições antigas em sebos, de editoras já extintas, inspecionando o nome do antigo dono assinado na folha de rosto. Eu adoro livros.

Porém, nem tudo é belo no ecossistema dos livros. Algumas situações são inclusive antitéticas à busca de conhecimento, à sabedoria ou mesmo à saúde mental. É disso que irei tratar.

1. Veneração Induzida

Os livros eram apenas um tipo de recipiente
onde guardávamos muitas coisas que temíamos esquecer. Não há nada mágico neles. A mágica está apenas no que os livros dizem, como eles costuraram os remendos do Universo em uma peça para nós. — Ray Bradbury, Fahrenheit 451

O Bibliófago - Arte de Carl Spitzweg (1850)
O Bibliófago - Arte de Carl Spitzweg (1850)

A relação das pessoas com os livros geralmente começa na escola. Professores tendem a convencer seus alunos de que os livros têm algo de mágico, que são a única fonte legítima de todo conhecimento e sabedoria. A marca psicológica deixada pelo ensino tradicional pouco distingue entre tipos de livros: se é impresso e encadernado, é fonte de cultura e saber.

O aluno tende a deixar a escola com uma impressão distorcida do que são os livros, marcada por uma veneração sem embasamento e, muitas vezes, com um sentimento latente de culpa por não ler mais. A insistência dos professores em relação à leitura quase sempre falha em convencer os jovens a ler, mas costuma ser bem-sucedida em fazê-los acreditar que deveriam ler.

A crença é tão difundida que, quando articulada de forma direta, parece ao mesmo tempo óbvia e controversa: "o ser humano que lê é uma pessoa melhor e mais completa".

Mesmo sem usar estas palavras em específico, nossa sociedade e sistema educacional têm martelado tal ideia nas Um livro não passa do discurso de uma pessoa posto em papel. cabeças das pessoas, geração após geração. Em geral, é o que as pessoas acreditam.

Assim, vemos em toda parte gente que aprendeu a venerar os livros da mesmo forma como se aprende a fazer o sinal da cruz ao passar por uma igreja, mesmo quando não se é religioso. Trata-se de um ato reflexo, impensado. E não faro, marcado por certa dose de hipocrisia — considerando o número de pessoas que falam bem da leitura, que cultuam e elogiam "quem lê", mas que nunca abriram um livro.

Arte de Emma Taylor
Arte de Emma Taylor

Um livro, porém, não passa do discurso de uma pessoa posto em papel. Não é mais do que isso. O mesmo conteúdo pode ser transmitido verbalmente, por áudio, por vídeo, etc. O que se aprende em um livro pode ser aprendido diretamente com as pessoas, por exemplo, ou por uma postagem na internet.

A parte estética do livro, embora de grande importância para os bibliófilos, deve ser percebida como subjetiva, e deve ser desvinculada do valor intelectual do livro. Não faria sentido julgar alguém por não apreciar o gosto de tal ou tal alimento, e da mesma forma, o apreço pelo objeto livro (sua forma, textura, encadernação, cheiro, cor, peso, layout, etc.) é uma questão de gosto individual. Portanto, quem prefere absorver o conteúdo de uma obra via audiobook ( escutando, ao invés de lendo) nada tem de intelectualmente inferior em relação ao leitor tradicional.

2. Ignorância Mistificada

Os eruditos são aqueles que leram nos livros; mas os pensadores, os gênios, os iluminadores do mundo e os promotores do gênero humano são aqueles que leram diretamente no livro do mundo. — Arthur Schopenhauer

Arte de Jackie Mantey
Arte de Jackie Mantey

Outra consequência da veneração ao livro é que, não raro, o ato de ler por si só é tratado como uma virtude, e o que está sendo lido pouco importa. Existe, assim, uma noção de que quem lê mais é uma pessoa mais inteligente, mais sábia.

Esta relação, porém, não existe no mundo real. Há quem leia dez livros ao mês, e seja um tolo; e há quem quase nunca toque um livro, e seja um gênio, ou um sábio.

É possível ler toda a obra de Dostoiévski, Nietzsche, Kafka, Descartes, para citar alguns exemplos clássicos, e sair sem entender suas ideias, suas crenças, seus argumentos. É possível passar décadas lendo, sem jamais ser capaz de usar o que foi lido para o aprimoramento pessoal ou Se você é incapaz de explicar em detalhes o que leu, com suas próprias palavras, será que a leitura foi útil ou enriquecedora para você? para construir algo por conta própria — isto é, sem jamais botar em prática as horas investidas, ou ser capaz de produzir algo novo.

A compreensão verdadeira e a articulação das ideias absorvidas em uma leitura são atividades de responsabilidade do leitor. Apenas ler não é o bastante. Por exemplo: Se você é incapaz de explicar em detalhes o que leu, com suas próprias palavras, será que a leitura foi útil ou enriquecedora para você? Nas palavras de John Locke, "ler fornece ao espírito materiais para o conhecimento, mas só o pensar faz nosso o que lemos".

E para além dos livros de qualidade, que frequentemente são incompreendidos pelos leitores, há os livros que contêm informações incorretas, ou de entretenimento barato. Há quem consuma uma dieta literária 100% composta de maus livros, e ainda assim seja considerado como "inteligente", "culto", devido ao misticismo atrelado à leitura.

Aquele que lê maus livros não leva vantagem sobre aquele que não lê livro nenhum. — Mark Twain

leitura livro leitor

Enquanto milhares de leitores devoram páginas sem conta sem jamais tirar proveito do conhecimento a que foram expostos, outras milhares de pessoas, sem nada ler, aprendem com a prática, com a experimentação (empirismo), como testes e ajustes, e com isso melhoram suas vidas e a das pessoas a seu redor. Os livros, portanto, não são fonte exclusiva de conhecimento ou sabedoria, e em diversos casos nem sequer são as melhores fontes.

A leitura, é claro, é um excelente acessório ao ensino. Mas outros tantos acessórios também são cruciais, e como se sabe, nada substitui a prática. Livros também são uma maravilhosa forma de arte e entretenimento. Mas não são necessariamente melhores do que qualquer outra forma de ensino, entretenimento ou arte.

E é fundamental estar ciente de que os livros erram tanto quanto as pessoas. Afinal, eles são fragmentos de pessoas, isto é, de suas ideias, e sofrem o mesmo teor de falhas e preconceitos que qualquer ser humano. O Marquês de Maricá pontuou tal fato sem qualquer clemência nas palavras:

As grandes livrarias são monumentos da ignorância humana. Bem poucos seriam os livros se contivessem somente verdades. Os erros dos homens abastecem as estantes. — Marquês de Maricá

3. O Leitor Narcisista

Garota Lendo - Arte de Charles Edward Perugini (1878)
Garota Lendo - Arte de Charles Edward Perugini (1878)

Como a sociedade parece concordar que quem lê é superior intelectualmente, esta se tornou uma forma comum de ostentação.

A tsunami das redes sociais varreu boa quantidade dos leitores direto para as praias do entretenimento algorítmico, e os que se mantiveram no campo dos livros puderam levantar bandeira e anunciar seu hobby como um diferencial, às vezes um substituto para uma personalidade.

Em postagens na internet, é fácil detectar a ostentação: é quando não há qualquer outro motivo para um post, exceto indicar que o indivíduo lê. Não existem postagens equivalentes para cinema ou música, por exemplo. Ninguém se orgulha de ver filmes ou escutar música — é algo banal. Mas muitos leitores se orgulham de ler, e quando tendem ao narcisismo, adoram sinalizar socialmente seu hobby, como forma de se autoqualificarem.

ego leitura
Confissão via meme.

Há também aqueles da área acadêmica, que de forma semelhante, acumulam leituras como sinal de honra. Estes tendem não apenas a orgulhar-se do número de leituras, mas também a regurgitar o que memorizaram, exibindo seu repertório de informações.

Em geral, estudantes e estudiosos de todos os tipos e de qualquer idade têm em mira apenas a informação, não a instrução. Sua honra é baseada no fato de terem informações sobre tudo, sobre o resumo e o conjunto de todos os livros. Não ocorre a eles que a informação é um mero meio para a instrução, tendo pouco ou nenhum valor por si mesma. — Arthur Schopenhauer

Nestes casos, os indivíduos constroem uma identidade baseada em seu hábito de leitor, identidade esta que é reforçada pela percepção de amigos, família e colegas. Assim, não raro escutamos pessoas que se sentem culpadas por não ler, isto é, por não manterem a postura ideal que projetaram para si mesmas, e que os outros esperam delas.

Arte de Emma Taylor
Arte de Emma Taylor

Ao sentir-se culpado por não ler, e de certa forma inferiorizado, a implicação lógica é que, ao ler, este indivíduo se sente superior aos demais. É sua virtude, o seu mérito pessoal: a leitura.

Misturado a este narcisismo estão noções como a de que os leitores são pessoas mais éticas; que o mundo seria melhor se todos lessem; e o slogan Mais livros, menos armas.

Trata-se de pura ignorância. Como já vimos, livros são tão propensos a erros quanto pessoas, e boa quantidade deles incitam violência, extremismo, falsidades ou ideologias devastadoras. Os perpetradores da Inquisição, por exemplo, faziam parte da pequena elite de letrados de sua época. Da mesma forma, ditadores totalitários bem conhecidos, como Stalin, Hitler, Mao e Mussolini, comumente eram leitores e escritores, com cultura superior à da população em geral.

Para guerrilheiros que leram O Manifesto Comunista, ou para neonazistas inspirados em Minha Luta, os livros foram justamente o incentivo para pegarem em armas.

Não existe, portanto, qualquer razão para crer que quem lê é mais ético do que quem não lê, ou que livros em geral levam à paz.

4. O Autor Narcisista

Arte de Jonathan Wolstenholme
Arte de Jonathan Wolstenholme

Em relação aos escritores, tenho notado que grande parte das pessoas que desejam publicar livros hoje em dia (pelo Kindle, por exemplo, ou em impressões por encomenda) nem sequer são leitores.

Podemos nos perguntar: Por que alguém que não tem familiaridade ou interesse em livros desejaria escrever e publicar um? Nestes casos, parece tratar-se puramente de adoração pelo texto posto em papel, como se houvesse algo de especial ou nobre nisso — como se algo fosse conquistado com a impressão.

Escrever um livro e publicá-lo: eis uma conquista na vida, na imaginação de muita gente. Imprimir cópias de um texto, porém, é algo acessível para qualquer pessoal, desde que ela esteja disposta a pagar pela impressão. Arte de capa, diagramação, revisão, tudo está disponível para qualquer cidadão, independentemente da qualidade do texto — basta pagar. E no caso dos e-books, o processo pode ser de graça.

Ainda assim, milhares de pessoas pagam pela impressão de seus livros, para os quais não existe público leitor (isto é, ninguém irá ler), apenas para terem a sensação de que publicaram algo. De onde vem este desejo sem sentido?

5. Coping: Fugindo da Realidade

A literatura é a maneira mais agradável
de ignorar a vida. — Fernando Pessoa

Menino lendo história de aventura - Arte de Norman Rockwell (1923)
Menino lendo história de aventura - Arte de Norman Rockwell (1923)

Encerrando nossa lista, temos aqueles leitores que se utilizam dos livros para fugir da realidade, ou para substituir a realidade.

Existem, de fato, alguns indivíduos verdadeiramente misantropos, que preferem viver isolados da humanidade. Mas são casos raros. Quando escutamos alguém dizendo que "prefere a companhia dos livros à das pessoas", o mais provável é que esta pessoa precise de terapia.

A leitura, assim como outras formas de entretenimento, é uma forma de escape do mundo real, de fuga para uma realidade fantástica, inteiramente segura para o leitor, já que é apenas simulada. A diferença é que, quando alguém vive enterrado em games ou redes sociais, sabemos que é algo nocivo. Os livros, porém, parecem inofensivos, e a leitura prolongada confunde-se com virtude ou estudo.

livro terapia
Meme postado em um grupo de leitores no Facebook.

Assim, ler se torna uma forma de morte lenta, quando o leitor se esquece de fazer amigos porque passa seu tempo lendo sobre amizades; quando deixa de viajar para ler sobre viagens; quando não ama, mas lê sobre amor; quando não vence nenhum desafio, porque os protagonistas das histórias o fazem por ele; quando vive menos, para ler mais.

Não, o livro não é seu melhor amigo — não mais do que um sapato, ou um tijolo.

Às vezes, trata-se de uma desilusão com o mundo real, com as pessoas reais, com os desafios reais. O indivíduo busca viver pelos livros, já tendo desistido da realidade, e apoiando-se emocionalmente na fantasia. Às vezes é uma resposta a traumas, à depressão, à solidão: uma mecanismo psicológico de enfrentamento às adversidades, ou coping.

Esta relação entre leitor e livro pode se tornar doentia, de dependência, isolamento e alienação. O indivíduo neste estado é inteiramente passivo: ele consome, e apenas consome. Como Dom Quixote, seu estado mental pode colapsar.

Palavra Final

Os livros sempre foram um símbolo de conhecimento, racionalidade e sabedoria. Portanto, para apreciarmos sua mágica sem nos perdermos no misticismo, devemos primeiro enxergá-los pelo que eles realmente são.

Isto porque existe, sim, uma dimensão mágica do livro: é o nosso fascínio por ele. É a lembrança dos momentos bons que passamos com eles. É a sua presença física, como relíquia, como pequeno tesouro. Não me parece adequado, porém, alimentar este fascínio com idolatria, narcisismo, tribalismo ou alienação — o que seria o contrário de buscar conhecimento, racionalidade e sabedoria.

Agora, feche seu browser e vá ler um livro.

Arte de Jonathan Wolstenholme
Arte de Jonathan Wolstenholme

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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