Por Marcelo Backes
Os intérpretes de Nietzsche sempre colocaram o filósofo no apogeu de um desenvolvimento, no fim de uma evolução, no auge de um processo histórico.
Karl Jaspers, o filósofo alemão, dividiu a história do pensamento ocidental em dois períodos, fazendo de Nietzsche um divisor de águas. Se antes dele dominava o "conhece-te a ti mesmo" socrático — que perdurou até Hegel, com o qual alcançou o ápice —, depois dele a filosofia se caracteriza por um profundo desengano em relação à racionalidade, pela dissolução de todos os elos e pela queda de todas as autoridades.
Gyorgy Lukács, o crítico literário húngaro, esclareceu Nietzsche como o "destruidor da razão", a "expressão da ideologia reacionária do imperialismo mundial", principalmente no livro intitulado De Nietzsche a Hitler ou o Irracionalismo e a Política Alemã. Martin Heidegger, por sua vez, identificou Nietzsche como o último dos filósofos metafísicos e colocou o divisor de águas em si mesmo, dizendo ter sido ele o primeiro filósofo não metafísico da história da filosofia ocidental.
Max Weber, de sua parte, disse:
O mundo onde nós existimos em termos de pensamento é um mundo cunhado pelas figuras de Marx e Nietzsche.
Michel Foucault desenvolveu a Teoria do Filósofo e a base de todo seu pensamento sobre a visão que desenvolvera a respeito da obra do pensador alemão. Foucault vê Marx e Hegel como os responsáveis pelo humanismo de seu tempo e Nietzsche como a opção não dialética — e, portanto, não humanista — a esse ponto de vista.
Fato é que Nietzsche foi um dos mais importantes pensadores alemães de todos os tempos e estendeu a área de suas influências para muito além da filosofia, adentrando a literatura, a poesia e todos os âmbitos das belas artes. Influenciou movimentos que vão do naturalismo alemão ao modernismo vienense, e escritores tão diferentes quanto Heinrich e Thomas Mann.
Com sua obra quebradiça e aparentemente fragmentária, que no fundo adquire uma vitalidade orgânica que lhe dá unidade através do aforismo, Nietzsche mostrou, desde o início, que todo artista genuíno tem de, de uma maneira ou de outra, conspurcar o próprio ninho. E Nietzsche, que nasceu cercado de moral por todos os lados, fez da moral o alvo de seus combates e considerou sua guerra pessoal contra ela sua maior vitória.
Chispas da obra
Nietzsche viveu sobre a navalha da interpretação. Mal interpretado como filósofo, já em função de seu estilo poético, já devido à exploração de certos aspectos de seu pensamento — malversados pela irmã e pelo nazismo —, Nietzsche foi, na realidade, um dos críticos mais ferozes da religião, da moral e da tradição filosófica do Ocidente.
O vigoroso espírito crítico de Nietzsche dirigiu- se especialmente contra a ética cristã. Se para ela o bom é o humilde, o pacífico, o maleável, e o mau é o forte, o enérgico e o altivo, para Nietzsche essa é a moralidade de um mundo dividido entre senhores e escravos. O valor supremo que deve nortear o critério do que é bom, verdadeiro e belo é, para Nietzsche, a vontade do forte. Trocando em miúdos e esculpindo o pensamento de Nietzsche a grosso modo: é bom o que vem da força, é mau o que vem da fraqueza.
Nos "Ditos e Flechas" de O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche faz um de seus alertas contra a moral, foco de seus ataques desde o princípio da vida filosófica. Ele, que sempre seguiu o mandato de Goethe que dizia que a "humildade é o postulado dos vagabundos", assegura que a humildade é (boa) para os vermes. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche chegaria a corrigir o evangelista Lucas, que dissera no capítulo 18, versículo 14, de seu evangelho: "Quem rebaixa aos outros, quer elevar a si mesmo". Nietzsche alega que melhorou a sentença bíblica com a sua versão, rematadamente irônica e nitidamente realista: "Quem rebaixa a si mesmo, quer ser elevado".
Para Nietzsche o homem aspira à imortalidade, mas isso não significa — nem importa — nada, já que a realidade se repete a si mesma num devir renitente, que constitui o eterno retorno. O homem só se salva pela aceitação da finitude, pois assim se converte em dono de seu destino, se liberta do desespero para afirmar-se no gozo e na dor de existir. De modo que o futuro da humanidade depende dos super-homens, capazes de se sobrepor à fraqueza, e não da integração destes ao rebanho comum dos fracos.
O impressionismo de Nietzsche desvendava o mundo aforisticamente — sobretudo na parte intermediária de sua obra. Na verdade, o autor parece capaz de filosofar apenas através do espasmo do aforismo e do fulgor poético do ditirambo. Nietzsche filosofou em aforismos e ditirambos e — a humildade jamais fez parte de suas características — considerava-se o mestre do gênero na pátria literária de Lichtenberg. Num desses aforismos, o filósofo chegou a dizer:
O aforismo, a sentença, gêneros nos quais eu sou o primeiro entre os mestres alemães, são as formas da Eternidade; minha ambição é dizer, em dez frases, o que todos os outros dizem num livro... o que todos os outros não dizem num livro...
Ecce homo
De quebra — e talvez em resposta antecipada à barafunda de interpretações de que sua filosofia foi vítima — Nietzsche escreveu, ele mesmo, a melhor obra para entender a obra de Nietzsche. É o Ecce homo, sua autobiografia escrita aos quarenta e quatro anos, o último suspiro antes do declínio, um dos mais belos livros da história da literofilosofia universal.
Ecce Homo. De como a gente se torna o que a gente é é a mais poética — e a mais grandiosa — dentre as obras dedicadas ao egocentrismo humano, a mais singular entre as autobiografias que o mundo um dia conheceu. Gerada no limiar — inclusive temporal — entre a razão e a loucura, Ecce homo está longe de ser apenas o produto da insânia, inclusive porque — conforme Freud — preserva o domínio da forma. Além da referência crística do título — Ecce homo —, há a citação pindárica do subtítulo — Como a gente se toma o que a gente é. O Genói hoios essí ("Toma-te aquilo que tu és") de Píndaro fascinou Nietzsche desde os tempos de colegial, serviu de epígrafe a um de seus primeiros trabalhos filológicos, foi usado em diversas ocasiões e virou subtítulo de sua obra mais íntima, o Ecce homo.
Antes de escrever a obra em prosa, Nietzsche escreveu o "Ecce homo" em versos. Ele faz parte de "Chiste, manha e vingança — Prelúdio em rimas alemãs", a maravilha que introduz a Gaia ciência e declara:
Ecce homo
Sim! Eu sei muito bem de onde venho!
Insaciável como a chama no lenho
Eu me inflamo e me consumo.
Tudo que eu toco vira luz,
Tudo que eu deixo, carvão e fumo.
Chama eu sou, sem dúvida.
Nos versos desse poema, Nietzsche resume sua filosofia, mostrando que ousa e arrisca, mandando a humildade às favas. "Ecce homo", o poema, antecipa Ecce homo, a autobiografia definitiva do autor.
"De tudo aquilo que é escrito, me faz gosto de fato apenas aquilo que alguém escreve com sangue. Escreva com sangue e haverás de experimentar que sangue é espírito" — disse Nietzsche em outro de seus aforismos.
Ecce homo é uma obra em sangue, o sumo mais autêntico de um "eu" genial, que fez seu primeiro exercício autobiográfico já aos quatorze anos — com o opúsculo intitulado "Da minha vida" — e jamais deixou de se exprimir autobiografícamente, de buscar em sua própria vida a matéria-prima para a sua obra. Ou alguém é capaz de ler o Zaratustra sem pensar na biografia de Nietzsche? Ou por acaso muitos dos aforismos de Nietzsche não são confissões em três linhas?
Mesmo quando falava dos outros, sem usar o "eu" — caso das Considerações extemporâneas —, Nietzsche chega à conclusão de que no fundo falava "apenas de mim mesmo". Em Além do bem e do mal, as últimas dúvidas a respeito da questão foram dirimidas:
Toda a grande filosofia é a autoconfissão de seu autor e uma espécie de mémoire involuntária e despercebida.
O Ecce homo é — portanto — o último elo de uma cadeia de observações acerca de si mesmo. Nele, conforme o já citado Freud, Nietzsche alcançou um grau de introspecção anímica que jamais foi alcançado por alguém e que dificilmente alguém voltará a alcançar um dia.
Depois de escrever que acha impreterível dizer ao mundo quem Nietzsche de fato é, Nietzsche abre o Ecce homo declarando que seu retrato surgirá da proclamação da diferença existente entre sua própria grandeza e a pequenez de sua época. Ao mesmo tempo em que diz que a última dentre as coisas que desejou com sua filosofia foi a de melhorar o mundo, declara que o que mais fez foi derrubar ídolos, macular deuses.
Já que a humildade nunca fez parte de sua índole, Nietzsche alerta desde logo que a sua é uma obra das alturas, e que se tem de ir muito alto para alcançá-la. Declara, ainda no prefácio, que o Zaratustra é o centro de sua produção, e não só o mais elevado dos livros que a humanidade concebeu, mas que a própria humanidade está numa distância incalculável abaixo dele. Diz também que o Zaratustra é o mais profundo dos livros surgidos do reino interior da verdade, uma fonte inesgotável da qual nenhum balde sobe sem estar carregado de ouro e bondade. E prossegue com a avaliação de sua vida e de sua obra...
Ecce homo. "Eis o homem", pois. Os príncipes dos sacerdotes e os ministros gritaram "Crucifica-o! Crucifica-o!", outros transformaram-no naquilo que ele jamais quis ser, o fundador de uma religião. Lavar as mãos diante dele, ninguém jamais lavou...
Uma vida — e a obra — em largas pinceladas
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) nasceu em Röcken, na Saxônia, filho de uma família de pastores protestantes. Seu pai e seus dois avôs eram pastores. Aos dez anos já fazia suas primeiras composições musicais e aos quatorze tornou-se professor numa Escola Rural em Pforta. Nessa época fez seu primeiro exercício autobiográfico, sinalizando a vinda do Ecce homo, trinta anos depois. "Da minha vida" é o título da obra de um autor que, em rala idade, já se sabia destinado a grandes tarefas. Mais tarde Nietzsche estudou Filologia e Teologia nas Universidades de Bonn e Leipzig.
Aos vinte anos, Nietzsche conheceu de perto a obra de uma de suas influências mais caras: Schopenhauer. Pouco depois prestou o serviço militar e entrou em contato — fascinado — com a música de Wagner. Aos vinte e quatro anos — e isso apenas confirma um gênio que se manifestou sempre precoce — Nietzsche foi chamado para a cadeira de Língua e Literatura Grega na Universidade de Basiléia, na Suíça, ocupando-se também da disciplina de Filologia Clássica. O grau de Doutor — indispensável nas universidades alemãs — seria concedido a Nietzsche apenas alguns meses depois, pela Universidade de Leipzig. Sem qualquer prova e com um trabalho sobre "Homero e a filologia clássica", Nietzsche assumiu o título e mudou-se definitivamente para Basileia.
Com vinte e seis anos, em 1870, Nietzsche desenvolveu os aspectos teóricos de uma nova métrica na poesia, para ele, "o melhor achado filológico que tinha feito até então". Em 1872, escreveu sua primeira grande obra, O nascimento da tragédia, sobre a qual Wagner disse: "Jamais li obra tão bela quanto esta". O ensaio viria a se tornar um clássico na história da estética. Nele, Nietzsche sustenta que a tragédia grega surgiu da fusão de dois componentes: o apolíneo, que representava a medida e a ordem; e o dionisíaco, símbolo da paixão vital e da intuição. Segundo a tese de Nietzsche, Sócrates teria causado a morte da tragédia e a progressiva separação entre pensamento e vida ao impor o ideal racionalista apolíneo. As dez últimas seções da obra constituem uma rapsódia sobre o renascimento da tragédia a partir do espírito da música de Wagner. Daí que, elogiando Nietzsche, Wagner estava, na verdade, elogiando a si mesmo.
Logo a seguir, Nietzsche entrou em contato com a obra de Voltaire e, depois de uma pausa na produção, escreveu e publicou, em 1878, Humano, demasiado humano — Um livro para espíritos livres. Terminou, ao mesmo tempo, a amizade com o casal Wagner. As dores que Nietzsche já sentia há algum tempo progridem nessa época, e o filósofo escreve numa carta a uma amiga: "De dor e cansaço estou quase morto". Daí para diante a enxaqueca e o tormento nos olhos apenas fariam progredir.
Em 1882, Nietzsche publicou A gaia ciência e conheceu Paul Rée e Lou Salomé, com os quais manteve uma amizade a três, perturbada por constantes declarações de amor da parte dos dois homens a Lou Salomé. Os três viajaram e moraram juntos em várias cidades da Europa. Em 1883, Nietzsche publica Assim falou Zaratustra (Partes I e II), sua obra-prima. Em 1884 e 1885, viriam as partes restantes. Sob a máscara do lendário sábio persa, Nietzsche anuncia sua filosofia do eterno retomo e do super-homem, disposta a derrotar a moral cristã e o ascetismo servil.
Em 1885, Nietzsche leu e estudou as Confissões de Santo Agostinho, e, em 1887, descobriu Dostoiévski. Em 1888, produziu uma enxurrada de obras, entre elas o Ecce homo e O Anticristo. Em janeiro de 1889, sofreu um colapso ao passear pelas ruas de Turim e perdeu definitivamente a razão. Em Basileia, foi diagnosticada uma "paralisia progressiva", provavelmente originada por uma infecção sifilítica contraída na juventude.
Em 1891 — aproveitando-se da fraqueza de Nietzsche —, a irmã faz o primeiro ataque à obra do filósofo, impedindo a segunda edição do Zaratustra. A partir de então, Elisabeth (que voltara à Alemanha depois de viver durante anos no Paraguai com o marido, o líder antissemita Bernhard Forster, que se suicidou depois de ver malogrado seu projeto de fundar uma colônia ariana na América do Sul; Nietzsche sempre foi terminantemente contra o casamento) passou a ditar as regras em relação ao legado de Nietzsche. E assim seria até 1935, quando veio a falecer.
Nacionalista alemã fanática, assim como o marido morto, Elisabeth chegou a escrever uma biografia sobre o irmão. Na biografia, deturpou — a serviço dos ideais chauvinistas — os fatos biográficos e as opiniões políticas de Nietzsche, atribuindo caráter nacionalista às investidas do filósofo contra os valores cristãos e seus conceitos da "vontade de poder" e do "super-homem". A obra póstuma A vontade de poder, abandonada por Nietzsche, foi organizada pela irmã. Elisabeth reuniria arbitrariamente notas e rascunhos de Nietzsche, muitas vezes infiéis às ideias do autor. Antes de publicar uma versão "definitiva" do Ecce homo, a irmã faria fama citando-o em folhetins e ensaios polêmicos, bem como na já referida biografia (1897-1904). Elisabeth chegou a falsificar algumas cartas do filósofo, responsáveis em parte pela má fama que cairia sobre ele anos mais tarde, como profeta da ideologia alemã que veio a culminar no nazismo. (Erich Podach diz que a irmã malversou, sim, o legado de Nietzsche, mas mostra-se coerente ao dizer que ela jamais teria alcançado ludibriar o mundo acadêmico e letrado da Alemanha inteira se esse mesmo mundo não estivesse preparado, e inclusive não sentisse uma espécie de "necessidade" disso.)
Em 1895, os sinais da paralisia avançam definitivamente e Nietzsche passa a apresentar sinais visíveis de perturbação nos movimentos dos membros. Em 25 de agosto de 1900, depois de penar sob o jugo da dor e da irmã, o filósofo falece em Weimar, cidade para a qual a família o levara junto com o arquivo de suas obras e escritos.