Por Eli Vieira
Biólogo (UnB)
e geneticista (UFRGS e
University of Cambridge)
Embora a alegação de que várias propriedades humanas são "construção social" tenha se tornado moda em setores das humanidades e ciências sociais, geralmente pouca evidência é fornecida para justificar alegações de construção social. O próprio conceito é frequentemente ambíguo demais.
Depois de remover as maiores ambiguidades, o filósofo Paul Boghossian providenciou uma definição de construção social mais clara e mais alinhada com os próprios interesses dos acadêmicos do ramo. A definição dele pode ser parafraseada assim:
O que se quer dizer quando se alega que uma coisa é socialmente construída é que ela foi criada intencionalmente por uma sociedade em particular para atender a seus próprios interesses, e é contingente aos caprichos dessa sociedade de tal forma que essa coisa não existiria de outro jeito (não existiria, por exemplo, se essa sociedade tivesse interesses diferentes, ou se a construção tivesse sido feita por uma sociedade diferente).
Algumas coisas socialmente construídas ocorrem através de diferentes culturas. O dinheiro, por exemplo, foi construído independentemente por algumas sociedades para fazer a troca de bens, e porque a maioria das sociedades de hoje está interessada em trocar bens eficientemente, o dinheiro se tornou quase universal. Mas se as sociedades que usam dinheiro tivessem interesses diferentes, o dinheiro poderia nunca ter existido. Então é claro o bastante que o dinheiro é construção social.
Mas e as categorias de gênero como homens, mulheres e fa´afafine (uma categoria de Samoa que se aproxima do que chamamos de homens gays afeminados)? São construção social? Eu penso que não. Pelas seguintes razões:
Razão 1. As culturas são criativas, então coisas socialmente construídas costumam ser diversas e numerosas, como as diferentes moedas que o mundo teve na história. Pense também em castas indianas. Há 3000 castas diferentes na Índia, e ainda mais subcastas. Comparado a castas e moedas, o número de categorias de gênero parece ser tediosamente baixo — duas no Brasil, três em Samoa, com nenhuma sociedade tendo atingido números de dois dígitos, até onde sei. As castas indianas parecem ser mais prováveis de serem construções sociais, ao ponto de ser possível explicar sua existência com base em fatos históricos conhecidos sobre as culturas indianas.
Razão 2. As culturas têm certo poder de decisão sobre com quais categorias de gênero trabalharão e quantas existirão. Mas as razões pelas quais elas têm categorias de gênero não são construção social. São elas:
- (1) o dimorfismo sexual (característica das espécies em que existem diferenças visíveis entre machos e fêmeas) dos corpos humanos, seguido estritamente por todos os corpos com exceção de um pequeníssimo número deles.
- (2) um número limitado de orientações sexuais que ocorrem naturalmente e que existem por causa do dimorfismo sexual dos corpos ( homossexualidade, heterossexualidade e bissexualidade) — a herdabilidade da orientação sexual é de moderada a alta e algumas das regiões genômicas envolvidas nisso já foram mapeadas.
- (3) agregados de comportamento que ocorrem naturalmente (além das orientações sexuais), alguns dos quais têm origem evolutiva e são associados a organismos com base em se eles produzem uma abundância de gametas ou se têm poucos gametas e são responsáveis por abrigar o desenvolvimento de fetos.
A pesquisa sobre essas últimas razões está em andamento e as alegações sobre quais exatamente são essas diferenças de comportamento (previstas por causa da evolução) são altamente contestadas. Alguns resultados são consistentes, no entanto: homens tendem a se sair melhor na tarefa de rotacionar mentalmente objetos 3D, enquanto mulheres parecem ter uma vantagem em tarefas relacionadas à empatia, como ler as emoções de alguém. Mas mesmo se diferenças de gênero apontadas no passado se revelarem falsas, podemos ter confiança de que, enquanto foi detalhista ao moldar corpos, a evolução provavelmente não parou acima do pescoço em relação a sexo no cérebro.
É inteiramente possível que, enquanto o gênero em si não é construção social — porque culturas diferentes chegam a categorias similares de gênero com base em diferenças naturais no corpo e no comportamento — algumas coisas associadas como papéis e expressões de gênero provavelmente sejam constructos sociais, ao menos exemplos delas, como a cor que meninas e meninos supostamente preferem, quem é responsável por iniciar flerte, etc.
Há evidência de que homens e mulheres fazem em média decisões de carreira diferentes, mesmo em sociedades igualitárias — o que conta como evidência de que essas categorias não são construção social, enquanto não significa, evidentemente, que um indivíduo em particular devesse ser discriminado por fazer escolhas de carreira atípicas de seu gênero.
É importante reconhecer a diferença entre o cerne não socialmente construído do gênero e suas propriedades auxiliares socialmente construídas, de modo que políticas e decisões morais baseadas em gênero sejam mais justas. Isso ficou claro na medicina, em que há resultados mostrando que cérebros masculinos e femininos podem responder de forma diferente ao mesmo medicamento.
Agora a falha da hipótese da construção social do gênero deve ser reconhecida nos debates culturais também. Muitos ativistas saltam à acusação de sexismo ao menor sinal de que as pessoas estão se comportando de forma típica para seu gênero, revelando uma esperança ilusória e fora de lugar de que seja possível erradicar categorias de gênero da existência.
Para evitar bater de frente com a ciência ainda mais, esses ativistas têm de reconhecer que a ação para mitigar a discriminação injusta não deveria ser acoplada a uma esperança de atingir uma paridade de gênero em tudo. Forçar as pessoas a se comportarem do mesmo jeito onde elas naturalmente divergem não é ativismo, é engenharia social utópica.
Pessoas livres precisam apenas de igualdade de oportunidades para perseguir seus interesses diversos. Homens e mulheres (e fa´afafine etc. onde aplicável), incluindo os que são trans, apreciam-se entre si e uns aos outros sem necessidade de paladinos morais que tentam forçá-los a ser o que não são. E certamente não precisam de falsidades propagandeadas como o único caminho para a justiça — pois a justiça prefere a verdade.
Referências comentadas
As pessoas interessadas no assunto devem estar cientes de que há um pequeno número de grupos de pesquisa dentro da neurociência que tem interesse ideológico de alegar que todas as diferenças no cérebro e no comportamento encontradas por outros pesquisadores são falsas ou infinitesimais. Há também um grupo menor ainda, rejeitado por todos, de cientistas conservadores com papéis de gênero que se apressam em aprovar qualquer diferença biológica alegada, independentemente da qualidade das evidências. Então, às vezes, a revisão por pares falha e estudos de baixa qualidade são publicados e publicizados como verdade revelada por blogs e veículos de mídia interessados em confirmar suas narrativas.
Cientistas como Melissa Hines, Simon-Baron Cohen e Larry Cahill, que estudam gênero cerebral, evidentemente afirmam que as diferenças existem com base em evidências (no caso de Baron-Cohen, também porque tem a ver com autismo, muito mais comum em meninos que em meninas). Em oposição a esses há Cordelina Fine, Daphna Joel e seus colaboradores, que parecem estar interessados em negar as diferenças ou reinterpretá-las como um "mosaico cerebral" inclassificável como masculino ou feminino, em que todas as pessoas são vistas como "intersexuais" no cérebro. Recomendo lê-los todos e decidir por si quais estão amparados em evidências.
Fontes:
Boghossian, Paul (2001). What is social construction?
Cahill, L. (2006). Why sex matters for neuroscience. Nature Reviews Neuroscience, 7(6), 477-484.
Araujo-Jnr, E.V. (Trad.), Cahill, L. (2015). Diferenças de sexo no cérebro humano. Xibolete, Cerebrum, 5.
Hines, Melissa (2005). Brain gender. Oxford University Press.
Bao, A.-M., & Swaab, D.F. (2011). Sexual differentiation of the human brain: relation to gender identity, sexual orientation and neuropsychiatric disorders. Frontiers in Neuroendocrinology, 32(2), 214-226.
Sanders, A.R., Martin, E.R., Beecham, G.W., Guo, S., Dawood, K., Rieger, G., ... Bailey, J.M. (2014). Genome-wide scan demonstrates significant linkage for male sexual orientation. Psychological Medicine, 1-10.
Araujo-Jnr, E. V. (Trad.), Baron-Cohen, S. (2015). Neurossexismo: homens não são de Marte, mulheres não são de Vênus e Cordelia Fine não faz jus à neurociência. The Psychologist, 23.11 (2010): 904-905. [Resenha crítica do livro de Cordelia Fine.]
Joel, Daphna, et al. Sex beyond the genitalia: The human brain mosaic. Proceedings of the National Academy of Sciences 112.50 (2015): 15468-15473. [Artigo mais recente de Joel et al. alegando que não é possível prever o gênero de uma pessoa com base em características cerebrais.]
Del Giudice, Marco, et al. Joel et al.'s method systematically fails to detect large, consistent sex differences. Proceedings of the National Academy of Sciences 113.14 (2016): E1965-E1965 [Respostas a Joel et al. mostrando que estão errados em alegar que cérebros humanos não podem ser categorizados em masculino e feminino.]
Rosenblatt, Jonathan D. (2016). Multivariate revisit to sex beyond the genitalia. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America.
Chekroud, Adam M., et al. (2016). Patterns in the human brain mosaic discriminate males from females. Proceedings of the National Academy of Sciences, 113.14: E1968-E1968.