Uma Esquerda contra o Povo? Umberto Eco e a *Legião de Imbecis* | Fantástica Cultural

Artigo Uma Esquerda contra o Povo? Umberto Eco e a *Legião de Imbecis*

Uma Esquerda contra o Povo? Umberto Eco e a "Legião de Imbecis"

Por Paulo Nunes ⋅ 9 nov. 2023
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Umberto Eco defendia, ainda nos anos 80, que o povo ganhasse voz, para se opor ao monopólio de informações da mídia. Quando a internet tornou isso possível, sua opinião virou do avesso: "as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis", que antes "nós fazíamos calar".

umberto eco

Mais conhecido por seu romance histórico O Nome da Rosa, levado aos cinemas em 1986, Umberto Eco foi um escritor, filósofo e linguista italiano sempre engajado em causas de esquerda. Intelectual respeitado, Eco era crítico do monopólio de informações da mídia tradicional. Ele e outros pensadores marxistas, como Stuart Hall, defendiam que o povo precisava ganhar voz e criticar as narrativas "vindas da elite". Mas quando estas críticas populares finalmente se concretizaram, por meio da internet e das redes sociais, a visão de Eco virou do avesso.

É de entendimento comum entre marxistas que as agências de jornalismo, assim como a comunicação de massa em geral (televisão, cinema, etc.), quase sempre trabalham em favor das elites (que as financiam), e que sua função é perpetuar os privilégios destas elites. Umberto Eco explica:

Não muito tempo atrás, se quisessem tomar o poder político num país, era suficiente controlar o exército e a polícia. Hoje um país pertence a quem controla os meios de comunicação.

Eco interpretava a realidade social conforme os pressupostos de Marx, e ao analisar a influência da mídia na sociedade, valia-se da perspectiva da luta de classes (e da terminologia marxista):

Quando o poder econômico passa de quem tem em mãos os meios de produção para quem detém os meios de informação que podem determinar o controle dos meios de produção, também o problema da alienação muda de significado. Cada cidadão do mundo torna-se membro de um novo proletariado.

Os meios [de comunicação] de massa não veiculam ideologias: são eles próprios uma ideologia.

Assim, nas décadas de 70, 80 e 90 os ativistas de esquerda entendiam que seu principal inimigo era quem controlava a comunicação de massa. Segundo Stuart Hall, influente sociólogo britânico-jamaicano, os "jornalistas ajudam a reproduzir e a manter as definições da situação que favorecem os poderosos". E como estes intelectuais querem transformar a sociedade, mais do que entendê-la, advogavam pela quebra do monopólio de informações, para que se pudesse contestar as narrativas dominantes. Eco escreve:

Nós teremos que ser capazes de imaginar sistemas de comunicação complementar que nos permitam atingir cada grupo humano isolado, cada membro isolado do público universal, para discutir a mensagem que chega à luz.

Este sistema de comunicação complementar, imaginado pelo autor nos anos 80, viria a ser a internet e, em especial, as redes sociais. É claro que, na época, seria difícil conceber plataformas como YouTube, Twitter, Facebook, WhatsApp. Mas mesmo sem saber exatamente como se dariam estas comunicações alternativas, Eco conjectura:

Pode parecer pura utopia. Mas se a Era das Comunicações procede na direção que nos parece hoje a mais provável, esta será a única solução para os homens livres. Quais poderiam ser os modos dessa guerrilha cultural, é para se estudar.

Em seu livro Viagem na irrealidade cotidiana, Eco defende a criação de uma solução de guerrilha: em vez de tomar controle dos meios de comunicação, o povo deveria ser capaz de criticar a mensagem recebida da mídia tradicional. O autor entende que o homem livre, que possui responsabilidade individual sobre sua própria vida, deve deixar de ser passivo frente à mídia de massa. Deve questionar, duvidar, desafiar.

Eis que, quando o povo de fato questionou, duvidou e desafiou as narrativas de elite, Umberto Eco mudou completamente de ideia.

O que o escritor descobriu é que nem todo membro do povo (isto é, aqueles que Eco enxergava como proletários) aceitava a narrativa marxista da luta de classes. Em especial, Eco descobriu que simpatizava mais com as mídias de elite do que com estes proletários a quem sempre imaginou defender. Eco descobriu seu gosto pela censura:

As redes sociais deram o direito à palavra a legiões de imbecis que, antes, só falavam nos bares, após um copo de vinho e não causavam nenhum mal para a coletividade. Nós os fazíamos calar imediatamente, enquanto hoje eles têm o mesmo direito de palavra do que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis.

umberto eco biblioteca

Sem dúvida, as redes sociais permitiram que os filtros para a comunicação de massa fossem baixados. Antes, para que um cidadão qualquer desse sua opinião, seria preciso passar pelos critérios rigorosos da empresa de comunicação, e a opinião precisaria se alinhar aos interesses desta entidade, assim como dos patrocinadores, muitas vezes do governo. Junto ao filtro ideológico, havia o filtro de qualidade. Até mesmo o entrevistado mentiroso precisaria ser um bom mentiroso, com credencias ou reputação adequada. Já na internet, qualquer um fala qualquer coisa.

Em meio aos discursos individuais e coletivos que ganharam espaço nas redes sociais, encontramos teorias da conspiração insanas, como o terraplanismo, mas também informações, notícias e evidências que a mídia oficial tenta encobrir ou distorcer. O que Umberto Eco queria realizou-se: o povo agora critica a mensagem, desconstrói as narrativas "vindas de cima" e troca evidências jornalistas coletadas por eles mesmos entre si (fotos, vídeos, documentos), driblando as táticas de controle da percepção da realidade empregadas pelo jornalismo tradicional.

De repente, o marxista Eco começa a soar como um reacionário, falando na importância da ordem, da hierarquia, e que informação demais é um perigo:

A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar.

Não fosse formulado por Eco, o trecho acima poderia ser confundido com o sermão de um clérigo ultraconservador: Cuidado com a internet, é uma selva perigosa, cheia de maus caminhos! É melhor não saber nada do que saber de tais coisas! Onde está a boa e velha hierarquia para pôr ordem na internet?

A implicação óbvia, ou inevitável, é que se deve aplicar alguma forma de censura, no entender de Umberto Eco. "Conhecer é cortar" parece uma desculpa para, novamente, limitar acesso a informações.

Embora tenha pregado, por décadas, que a grande mídia jornalística era apenas uma marionete das elites capitalistas, em seus últimos dias Eco parece esquecer de todas as práticas de desinformação e controle social que repudiava:

Se você sabe que está lendo um jornal como El País, pode pensar que existe um certo controle da notícia, e confia.

E ao final de sua jornada intelectual, Umberto Eco decide que é a mídia de elite que deve criticar o povo, e não mais o contrário:

Defendi recentemente que os jornais, em vez de se tornarem vítimas da internet, repetindo o que circula na rede, deveriam dedicar espaço para a análise das informações que circulam nos sites, mostrando aos leitores o que é sério, o que é um hoax, por exemplo.

Em outras palavras, é um defesa para que as mídias de elite retomem o controle da narrativa "vinda de cima", que Eco combatia. Não é apenas a informação incorreta que será corrigida pelo jornalismo tradicional: todas as críticas à narrativa oficial serão atacadas e deslegitimadas, com uso da autoridade reputacional e do poder financeiro destas instituições.

Mas também é possível pensarmos que Umberto Eco, na verdade, não mudou de opinião. É possível que, desde o início, ele não estivesse defendendo um desafio à narrativa da elite, mas uma oposição à elite específica daquela época. Ainda nos anos 80, ele escreveu:

Um partido político que saiba atingir minuciosamente todos os grupos que assistem a televisão levando-os a discutir a mensagem que recebem pode mudar o significado que a Fonte atribuirá a essa mensagem. Uma organização educativa que conseguisse fazer um determinado público discutir a mensagem que está recebendo poderia inverter o significado dessa mensagem. Ou mostrar que a mensagem pode ser interpretada de diversos modos. Estou propondo uma ação para impelir o público a controlar a mensagem e suas múltiplas possibilidades de interpretação.

Ao se opor ao que antes defendia, parece que Eco apenas queria uma mídia de elite que concordasse com ele. Quando isso ocorreu — quando as universidades, cada vez mais voltadas às ideologias de esquerda, lançaram no mercado jornalistas militantes de esquerda ou mesmo marxistas, que aos poucos tomaram controle da indústria de comunicação —, ele não viu mais motivos para dar voz aos silenciados, aos apartados do poder. Pelo contrário. Ao que parece, a "defesa do povo" não passava de pretexto.

Ele próprio confessa, indicando que, segundo sua preferência, o povo precisaria ser silenciado, e que apenas intelectuais — como ele próprio — que concordam com sua narrativa da verdade deveriam ter direito à palavra:

Nós os fazíamos calar imediatamente, enquanto hoje eles têm o mesmo direito de palavra do que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis.


Fontes:

ECO, Umberto. Guerrilha semiológica. In: ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

HALL, Stuart et al. A produção social das notícias: o mugging nos media. In: TRAQUINA, Nelson. Jornalismo: questões, teorias e estórias. Pontinha: Vegas, 1999.

MELITO, Leandro. Umberto Eco: lembre 15 frases do autor italiano. EBC — Empresa Brasil de Comunicação, 20 fev. 2016. Disponível em: https://memoria.ebc.com.br/cultura/2016/02/umberto-eco-lembre-15-frases-do-autor-italiano

WOLF, Eduardo. Umberto Eco e a legião dos imbecis na internet. Fronteiras, jul. 2021. Disponível em: https://www.fronteiras.com/leia/exibir/umberto-eco-e-a-legiao-dos-imbecis-na-internet

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Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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