Hoje, parece óbvio que um deus supremo seja perfeito, infinitamente sábio, bom e justo. Essas características divinas, porém, não eram sequer cogitadas durante a escrita dos primeiros livros da Bíblia. O deus original do cristianismo era tão imperfeito como um ser humano.
Isso porque, antes das adições do Novo Testamento, o deus monoteísta dos hebreus não diferia muito dos deuses pagãos. Entidades como Zeus, Thor e Osíris, entre tantas outras, assemelhavam-se em quase tudo aos seres humanos: eram movidas por prazeres e tentações, exatamente como as pessoas, e não raro entregavam-se a vinganças, mesquinharias, roubos, assassínios e estupros. Os deuses pagãos são basicamente seres humanos com superpoderes. Todas as falhas de caráter presentes na humanidade estão presentes nestes panteões.
O Senhor disse a Moisés: "Endurecerei o coração do faraó, e ele os perseguirá [isto é, a Moisés e aos israelitas]; mas eu triunfarei gloriosamente sobre o faraó e sobre todo o seu exército, e os egípcios saberão que eu sou o Senhor."
(Êxodo 14:1-4)
No trecho acima, por exemplo, deus usa seu poder e força o faraó, como a uma marionete, a atacar Moisés e os israelitas, apenas para depois derrotá-lo e mostrar quem é mais poderoso. Deus cria o problema, resolve o problema e se diz gloriosamente triunfante, em um tom arrogante e megalomaníaco incompatível com o deus puro e perfeito descrito posteriormente pela Igreja.
O deus original também não era onisciente. Assim como ele se surpreende ao descobrir que o homem, sua criação, tinha propensão a fazer maldades, deus também precisa testar a fé de seus seguidores, demonstrando que não é capaz de ler seus corações. Depois de exigir que Abraão matasse o próprio filho para provar sua devoção, deus declara:
" Agora eu sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único." (Gênesis 22:12)
A invenção do deus único, atribuída a Abraão, foi uma inovação filosófica radical que, com o passar dos séculos, alterou profundamente a relação das pessoas com a ideia de divino. Entretanto, Abraão teria vivido quase dois milênios antes de Jesus, e durante este período, diversos traços do deus monoteísta coincidiram com os das divindades pagãs.
Basta lermos a Bíblia para testemunharmos a discrepância entre o deus benevolente e perfeitamente justo, descrito pela Igreja, e o deus retratado no Antigo Testamento. Nele, deus é vingativo, ciumento e irritadiço (como se esperaria de uma figura como Zeus, por exemplo). Ele é responsável pelo Dilúvio, cometendo o genocídio de quase toda a raça humana e de quase todos os animais, e posteriormente promete nunca mais trazer dilúvios.
O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem na terra, e teve o coração ferido de dor. E disse: "Exterminarei da superfície da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e as aves dos céus, porque me arrependo de os haver criado". (Gênesis 6:6-7)
Poderia um deus perfeito e onisciente cometer um erro e se arrepender? Como um deus perfeito pode sentir dor? E com a admissão do erro, não admite ele também que cometeu genocídio por engano?
"Doravente," diz o Senhor, "não mais amaldiçoarei a terra por causa do homem, e não ferirei mais todos os seres vivos, como fiz." (Gênesis 8:21)
Para a época, porém, não há nada de surpreendente em um deus que extermine populações de adultos e crianças inocentes. Esta era a visão que se tinha dos deuses na Antiguidade: entidades caprichosas que raramente se preocupavam com justiça, que ajudavam humanos que fossem seus favoritos, e puniam aqueles de quem não gostassem. Não havia a ideia de "todos são irmãos", " todos são filhos de deus (ou dos deuses)".
"Faço aliança contigo e com tua posteridade," diz o Senhor, "uma aliança eterna para que eu seja o teu Deus e o Deus de tua posteridade." (Gênesis 17:7)
E acrescenta uma exigência cruel e inexplicável, a mutilação da genitália masculina:
"Todo homem, entre vós, será circuncidado. O varão incircunciso, do qual não se tenha cortado a carne do prepúcio, será exterminado de seu povo por ter violado minha aliança." (Gênesis 17:12-14)
Esta visão dos deuses como cruéis e caprichosos está alinhada com as formas mais primitivas de religião, como as que encontramos entre povos indígenas (caçadores-coletores ou pescadores) pelo mundo todo. Na visão destes povos, a natureza é incompreensível, mágica, e possui uma vontade própria, como se fosse um ou vários espíritos. A natureza às vezes parece ajudar, oferecendo boas temperaturas, recursos materiais, alimentação, e às vezes parece enfurecer-se e punir, penalizando as pessoas com secas, fome e doenças. Para a mentalidade dos caçadores-coletores, esses fenômenos não podiam ser aleatórios. O ser humano, por instinto, enxerga e atribui intenção a fenômenos naturais do mundo, imaginando uma vontade por trás da chuva, do trovão, da seca.
Das tribos para as primeiras civilizações, essas crenças não mudaram muito. A chuva ainda era atribuída a alguma vontade da natureza, mas agora havia uma coleção de deuses a quem se poderia atribuir tais fenômenos. O deus das águas controla os rios e mares, o deus da morte controla quem vai e quem fica, por exemplo.
A crença em comum entre os animistas (caçadores-coletores) e os politeístas era que as forças que criaram e que controlam o universo — sejam deuses, sejam espíritos — não operam segundo um sistema de justiça perfeito e universal, semelhante ao que se espera dos direitos humanos. Daí a necessidade de fazer oferendas, implorando a proteção ou a misericórdia das entidades: na ausência de subornos e submissão das pessoas, crê-se que os deuses possam punir os pobres mortais, sem qualquer senso de ética, misericórdia ou justiça.
Parte destas crenças, é claro, continua hoje em dia. Mesmo dentro do cristianismo, existem os santos padroeiros, para quem se reza pedindo ajuda para causas específicas. Assim como o pagão rezará ao deus das águas para pedir chuva, o cristão poderá rezar para o santo casamenteiro para encontrar um parceiro.
Não existe qualquer virtude em rezar, já que este ato resume-se a pedir coisas ou a enaltecer uma entidade que, sendo teoricamente perfeita, não precisa escutar elogios. A reza atua como o ritual de sacrifício de animais, comum em quase todas as culturas primitivas e presente de forma abundante no Antigo Testamento — pois o deus ajudará não a quem merece, mas a quem implorar, ou a quem sacrificar um de seus animais para a glória da divindade.
Os rituais de sacrifício bíblicos pouco diferem do que hoje se conhece como macumba, envolvendo o uso do sangue:
"O animal será sem defeito, macho, de um ano", instrui o Senhor; "poderá tomar tanto um cordeiro como um cabrito. Então toda a assembleia o imolará no crepúsculo. Tomarão do seu sangue e pô-lo-ão sobre as duas ombreiras e sobre a verga da porta das casas em que o comerem." (Êxodo 12:5-7)
Um deus justo e perfeito obviamente não precisaria de solicitações ou sacrifícios para decidir ajudar, nem precisaria ser lembrado de quem precisa do que, dada a sua onisciência.
Apesar dessas inconsistências, é inegável que o deus anunciado pela figura de Jesus no Novo Testamento difere radicalmente do deus do Antigo Testamento. Com a introdução de Cristo, deus parece ter se transformado em entidade perfeita, livre de falhas morais ou de temperamento, e incapaz de cometer qualquer injustiça.
Em certo trecho do Velho Testamento, deus ordena a seu povo escolhido — os hebreus — que invadam um clã vizinho e assassinem todos os homens, mulheres, crianças e animais, e que pusessem fogo em todos os pertences. Não é a única vez em que deus permite ou incentiva genocídios, mas este é um dos casos mais barbáricos.
Nas cidades das nações que o Senhor, o seu Deus, dá a vocês por herança, não deixem vivo nenhum ser que respira. Conforme a ordem do Senhor, o seu Deus, destruam totalmente os hititas, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus. (Deuteronômio 20:16-17)
Outra prática comum era o extermínio dos homens de determinada tribo vizinha, a fim de sequestrar as mulheres (para casamentos forçados e as violações sexuais que isto implicaria), sequestrar crianças e roubar as propriedades encontradas (sem qualquer condenação por parte de seu deus):
Simeão e Levi tomaram cada um sua espada, penetraram na cidade, que de nada desconfiava, e mataram todos os varões. Assolaram a cidade, porque haviam ultrajado sua irmã. Tomaram suas ovelhas, seus bois, seus jumentos e tudo o que havia na cidade como nos campos. E levaram como espólio todos os seus bens, seus filhos, suas mulheres e tudo o que se encontrava em suas casas. (Gênesis 34:25-29)
O feito por si só não é nenhuma surpresa. Até poucos séculos atrás, a norma entre os coletivos humanos (tribos, clãs, nações) era ver os membros do próprio grupo como "nós", dignos de bom tratamento, e os estrangeiros como "eles", a quem qualquer crueldade poderia ser imposta. Das Américas pré-colombianas até as tribos da África, e do Oriente Médio até a Europa medieval, os grupos humanos viviam em constante estado de guerra por territórios e recursos. As tradições barbáricas descritas no Antigo Testamento são apenas uma continuação do que o homo sapiens tem feito desde seu surgimento: a competição e o extermínio de clãs adversários.
Assim, a filosofia presente no Novo Testamento opõe-se à dos textos bíblicos mais antigos, remodelando a figura de deus e introduzindo ideias universalistas e pacifistas. Não apenas os hebreus, mas todos os seres humanos poderiam, devido ao sacrifício de Jesus, ser contemplados por deus da mesma forma.
Aos teólogos, porém, resta encontrar explicações para as crueldades e deslizes de um deus que, conforme a intepretação cristã, sempre foi perfeito. E o que sobra é o dilema: Se este deus de fato cometeu tais atrocidades, seria ético perdoá-lo e venerá-lo? E, pelo contrário, se os eventos do Antigo Testamento são apenas mitos... seria lógico continuar acreditando?