Ao que parece, nem o público, nem os críticos entenderam bem o polêmico filme Anticristo (2009), de Lars von Trier. Sem dúvida, trata-se de uma experiência cinematográfica escandalosa, até mesmo revoltante, como é de se esperar em se tratando de von Trier. Mas o foco do filme, seu tema principal, foi mal interpretado pela grande maioria.
O consenso é que o título faz referência à obra O Anticristo, de Friedrich Nietzsche. O filme, assim, é entendido como uma crítica ao cristianismo e à opressão das mulheres pelos fanáticos religiosos. Mas uma análise mais cuidadosa revela uma mensagem bem diferente. O foco é, de fato, o feminino — as mulheres. No entanto, von Trier parece estar dizendo algo nada positivo em relação à mulher. E é difícil determinar se sua caracterização horrenda da feminilidade é um alerta acerca de algumas mulheres, ou uma generalização pejorativa sobre o sexo feminino de forma geral.
Vejamos se é possível descobrir o que estava se passando na cabeça do diretor... (atenção: spoilers).
Mulheres & Monstros
Dos únicos três personagens do filme, dois não possuem nome: ele (Willem Dafoe) e ela (Charlotte Gainsbourg). O terceiro personagem, filho do casal ele e ela, é Nic — mas sua participação será breve.
Iniciamos assistindo ao casal (ele e ela) fazendo sexo enquanto seu filho pequeno sai do berço e se acidenta, caindo pela janela do apartamento. Esta sequência trágica é apresentada em câmera lenta, em preto e branco, ao som da opera Tristão e Isolda, de Wagner — uma música de tom glorioso e angelical. Os close-ups do ato sexual são intercalados com imagens do menino caminhando pela casa e escorregando pelo batente. Lars von Trier, com seu gosto pelo choque escandaloso, mostra a genitália do casal em plena interação, e o rosto da mãe em orgasmo, enquanto o filho morre, estatelando-se na rua junto a seu bichinho de pelúcia.
O luto, é claro, vem em seguida.
Durante o restante do filme, quase até o final, Lars von Trier explora os sofrimentos intermináveis da mãe, e as tentativas de seu marido, um terapeuta, de ajudá-la a superar a dor. A perturbação emocional da mulher, porém, é atípica, complexa e misteriosa. O marido, perplexo com aquele quadro anormal de fobias e ataques de pânico, busca descobrir o que se esconde atrás dos sintomas da esposa.
Naturalmente, somos levados a simpatizar com a pobre mulher — apenas para descobrir, ao final, que sua perturbação não provinha do luto, mas da culpa e do remorso.
A mãe assistia enquanto o filho escapava do berço, subia na mesa na sala e caminhava até a beirada da janela. Enquanto transava, ela observava a tragédia encaminhando-se para seu desfecho, sem dizer nada. No momento em que o menino escorrega, caindo pela janela, a mulher chega ao orgasmo, e sorri.
Absolutamente subversivo, von Trier cultiva no espectador a empatia pela mãe, para horrorizar-nos ao final com sua crueldade. Ao juntarmos as peças do enredo, entendemos que a mulher sabia que o menino abria a porta do berço durante a noite, e que ela sabia que ele perambulava pela casa. E descobrimos que ela propositalmente vestia a criança com os tênis trocados (o esquerdo no pé direito, e vice-versa), causando-lhe uma deformidade óssea nos pés — razão que o levou a cambalear pela janela. A mãe havia preparado o cenário da tragédia, e deixara-a transcorrer diante dos olhos.
Em um filme intitulado Anticristo, o que Lars von Trier estaria tentando nos dizer com esta história?
Caos Natural & Bruxarias
Devido à aparente referência ao livro O Anticristo de Nietzsche, o filme de von Trier foi interpretado pela maioria como uma crítica ao cristianismo, em especial à queima de bruxas. Mas se olharmos com atenção, não há crítica alguma nem à Igreja, nem à Inquisição.
O que vemos, na verdade, é uma caracterização da natureza como sendo o fator maligno, diabólico. A natureza mata e tortura, sem qualquer escrúpulo. O protagonista, ele, assiste com horror a uma raposa devorando as próprias entranhas (e ela lhe diz, em meio a seu autocanibalismo: "O caos reina"). Ele vê um cervo fêmea, no bosque, com um feto morto ainda preso a seu corpo, refletindo a situação da própria esposa (que ainda carrega o filho morto na alma, sem conseguir se desvencilhar da prole perdida). O anticristo, portanto, é a própria natureza.
Há inúmeras alusões aos horrores produzidos pelo mundo natural: percevejos devorando a mão do protagonista; sementes caindo de um árvore sobre o telhado, associadas a uma enxurrada de abortos da planta em uma fala da esposa; os impulsos autodestrutivos; as tragédias de morte; o sexo praticado de forma animalesca, bestial. Em determinado momento, a mulher inclusive remove o marido de baixo da terra, em uma aparente metáfora para o parto (o homem nascendo da natureza, o próprio solo, como símbolo feminino).
E junto a esta natureza, Lars von Trier coloca a mulher.
Em primeiro lugar, porque o homem e a mulher não têm nome. O personagem ele parece representar os homens, e ela as mulheres. O fato de o bosque — onde a maior parte da história se passa — ser chamado de Éden é indicativo de que estamos falando de homem e mulher como arquétipos (como Adão e Eva). Enquanto ele é racional, estável e bem-intencionado, ela é emocional, caótica e secretamente cruel. Ele tenta ajudá-la até o final — mas ela irá espancá-lo, torturá-lo e tentar matá-lo.
Antes de revelar seu lado sombrio, ela explica ao marido que as mulheres queimadas pela Inquisição talvez merecessem a punição que tiveram. Ele a contradiz com veemência: elas eram inocentes, não bruxas! Ele explica que "a maldade não é de sua natureza". Von Trier, no entanto, mostra-nos o contrário. Ela sabe que é má. Ela tenta avisá-lo várias vezes. Mais tarde, ela entrega-se à bruxaria (tópico de seus estudos acadêmicos), e à veneração das três entidades esotéricas: a Raposa, o Cervo e o Corvo, representando a dor, o luto e o desespero (indicados no começo do filme por escrito, ao pé de três estatuetas). Os três animais são inclusive identificados como constelações próprias à cultura das bruxas, nos materiais históricos estudados pela esposa.
Assim, não há nada no filme que sugira objeções ao cristianismo. Pelo contrário, a bruxaria (ou paganismo) é que é colocada como antagonista, unida ao caos na natureza — ambos associadas à mulher.
O que von Trier está tentando dizer com isso tudo?
Eva Feminista
Já está claro que o anticristo, no filme, é a mulher. Não tendo nome, "ela" pode referir-se a qualquer mulher, o que nos leva a perguntar: seria Anticristo um retrato grotescamente sexista do feminino?
A mulher, no filme, mata o próprio filho — ou, quem sabe, o aborta com atraso de alguns anos após o parto. Ela goza enquanto sua prole morre, em sinal de pura degeneração moral. Ela golpeia o pênis no marido com uma tora, pondo-o o inconsciente (um ataque ao falocentrismo?); e ao ver o membro do homem ereto, ainda que ferido, ela o estimula até produzir uma ejaculação de sangue, e regozija-se com o que vê (o prazer sexual mesclado com dor e destruição). Mais tarde, ela decepa o próprio clitóris com uma tesoura.
Para além do caráter abominável e subversivo dessas decisões de script, é possível enxergar o arquétipo da radical feminista, pela perspectiva de seus críticos: uma mulher narcisista disposta a sacrificar a própria prole, e tendo uma relação problemática com a sexualidade, oscilando entre o desejo descontrolado por sexo (apresentado em várias cenas do filme), o impulso sexual destrutivo (ela pede para ser agredida pelo marido durante o ato, como se acreditasse merecer punição) e o nojo ao próprio erotismo (que culmina com a mutilação da própria genitália). Ela é emocionalmente caótica, egoísta, e ao final está disposta a torturar e matar o marido para evitar que ele a deixe (ciúmes).
Após incontáveis crueldades e evidente insanidade, ela é estrangulada pelo marido (que sobrevivera, a muito custo, à tortura e às investidas violentas da esposa). Mas ao caminhar pelo bosque, em seguida, ele acaba comendo alguns frutos rasteiros do Éden (o fruto proibido), e como em resposta, incontáveis mulheres surgem de entre as árvores, caminhando em sua direção. O filme acaba.
Uma leitura possível é que, assim como Adão, o marido comeu do fruto proibido (originalmente oferecido por Eva), sendo esta a causa de sua danação. As mulheres que surgem em seguida seriam as novas gerações femininas, indo ao encontro do homem, talvez com o mesmo caráter perverso de sua esposa. Mas estará correta esta leitura do filme?
Afinal, o que von Trier está tentando dizer?!
Conclusões?
Durante as sessões de terapia aplicadas pelo marido, descobrimos que ela sofre de uma fobia misteriosa. Além de tentar curá-la, o homem busca descobrir o que ela teme. Ele arrisca: O Éden? Satã? Árvores, folhas? A natureza? Somente ao final ele entende: ela teme a si mesma.
Ironicamente, é a terapia do marido que leva a mulher à sua condição final de insanidade. Ela teme sua própria natureza, precisamente o fator que a levou a matar o filho. Embora tenha tentado avisar o marido de forma indireta, ele insistiu em tratá-la, para que ela parasse de temer a natureza. E ele é bem-sucedido: é neste momento que ela aceita seus impulsos naturais mais malignos, encarnando, afinal, o arquétipo da bruxa.
Talvez Lars von Trier esteja querendo dizer algo sobre as mulheres, algo nada elogioso. Talvez esteja retratando algo que ocorre com mulheres, e não as mulheres em geral. Talvez esteja expondo o poder cruel e avassalador da natureza sobre a racionalidade humana, e o que ela pode fazer com grupos possuídos por fanatismo, como bruxas satanistas ou feministas extremistas (as quais, não por acaso, frequentemente declaram se identificar com as bruxas). Ou talvez esteja apenas tentando ser provocativo e escandaloso (no que, é claro, obteve sucesso).
Seja como for, em Anticristo há material de sobra para interpretações as mais diversas, assim como para ofender a todos os públicos.