Antes da Ponte Rio-Niterói - Clarice Lispector | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo Antes da Ponte Rio-Niterói - Clarice Lispector | Conto Completo
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Antes da Ponte Rio-Niterói - Clarice Lispector | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 25 nov. 2023
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Peço desculpa porque além de contar os fatos também adivinho e o que adivinho aqui escrevo, escrivã que sou por fatalidade. Eu adivinho a realidade.

Este conto é parte do livro A Via Crucis do Corpo.


Pois é.

Cujo pai era amante, com seu alfinete de gravata, amante da mulher do médico que tratava da filha, quer dizer, da filha do amante e todos sabiam, e a mulher do médico pendurava uma toalha branca na janela significando que o amante podia entrar. Ou era toalha de cor e ele não entrava.

Mas estou me confundindo toda ou é o caso que é tão enrolado que se eu puder vou desenrolar. As realidades dele são inventadas. Peço desculpa porque além de contar os fatos também adivinho e o que adivinho aqui escrevo, escrivã que Você também pode gostar: Leia na Fantástica os Melhores Contos de Clarice Lispector sou por fatalidade. Eu adivinho a realidade. Mas esta história não é de minha seara. É de safra de quem pode mais que eu, humilde que sou. Pois a filha teve gangrena na perna e tiveram que amputá-la. Essa Jandira, de dezessete anos, fogosa que nem potro novo e de cabelos belos, estava noiva. Mal o noivo viu a figura de muletas, toda alegre, alegria que ele não percebeu que era patética, pois bem, o noivo teve coragem de simplesmente desmanchar sem remorso o noivado, que aleijada ele não queria. Todos, inclusive a mãe sofrida da moça, imploraram ao noivo que fingisse ainda amá-la, o que — diziam-lhe — não era tão penoso porque seria a curto prazo: é que a noiva tinha vida a curto prazo.

E daí a três meses — como se cumprisse promessa de não pesar nas débeis ideias do noivo — daí a três meses morreu, linda, de cabelos soltos, inconsolável, com saudade do noivo, e assustada com a morte como criança tem medo do escuro: a morte é de grande escuridão. Ou talvez não. Não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei. Quem sabe se não tão escura. Quem sabe se é um deslumbramento. A morte, quero dizer.

O noivo, que se chamava pelo nome de família, o Bastos, ao que parece morava, ainda no tempo da noiva viva, morava com uma mulher. E assim com esta continuou, pouco ligando.

Bem. Essa mulher ardente lá um dia teve ciúmes. E era requintada. Não posso negligenciar detalhes cruéis.

Mas onde estava eu, que me perdi? Só começando tudo de novo, e em outra linha e outro parágrafo para melhor começar.

Bem. A mulher teve ciúmes e enquanto Bastos dormia despejou água fervendo do bico da chaleira dentro do ouvido dele que só teve tempo de dar um urro antes de desmaiar, urro esse que podemos adivinhar que era o pior grito que tinha, grito de bicho. Bastos foi levado para o hospital e ficou entre a vida e a morte, esta em luta feroz com aquela.

A virago, chamada Leontina, pegou um ano e pouco de cadeia.

De onde saiu para encontrar-se — adivinhem com quem? pois foi encontrar-se com o Bastos. A essa altura um Bastos muito mirrado e, é claro, surdo para sempre, logo ele que não perdoara defeito físico.

O que aconteceu? Pois voltaram a viver juntos, amor para sempre.

Enquanto isto a menina de dezessete anos morta há muito tempo, só deixando vestígios na mãe desgraçada.

E se me lembrei fora de hora da mocinha é pelo amor que sinto por Jandira.

Aí é que entra o pai dela, como quem não quer nada. Continuou sendo amante da mulher do médico que tratara de sua filha com devoção. Filha, quero dizer, do amante. E todos sabiam, o médico e a mãe da ex-noiva morta. Acho que me perdi de novo, está tudo um pouco confuso, mas que posso fazer?

O médico, mesmo sabendo ser o pai da mocinha amante de sua mulher, cuidara muito da noivinha espaventada demais com o escuro de que falei. A mulher do pai — portanto mãe da ex-noivinha — sabia das elegâncias adulterinas do marido que usava relógio de ouro no colete e anel que era joia, alfinete de gravata de brilhante. Negociante abastado, como se diz, pois as gentes respeitam e cumprimentam largamente os ricos, os vitoriosos, não é mesmo? Ele, o pai da moça, vestido com terno verde e camisa cor-de-rosa de listrinhas. Como é que sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com a adivinhação imaginadora. Eu sei, e pronto.

Não posso esquecer um detalhe. É o seguinte: o amante tinha na frente um dentinho de ouro, por puro luxo. E cheirava a alho. Toda a sua aura era alho puro, e a amante nem ligava, queria era ter amante, com ou sem cheiro de comida. Como é que eu sei? Sabendo.

Não sei que fim levaram essas pessoas, não soube mais notícias. Desagregaram-se? pois é história antiga e talvez já tenha havido mortes entre elas, as pessoas. A escura, escura morte. Eu não quero morrer.

Acrescento um dado importante e que, não sei por quê, explica o nascedouro maldito da história toda: esta se passou em Niterói, com as tábuas do cais sempre úmidas e enegrecidas, e suas barcas de vaivém. Niterói é lugar misterioso e tem casas velhas, escuras. E lá pode acontecer água fervendo no ouvido de amante? Não sei.

O que fazer dessa história que se passou quando a ponte Rio-Niterói não passava de um sonho? Também não sei, dou-a de presente a quem quiser, pois estou enjoada dela. Demais até. Às vezes me dá enjoo de gente. Depois passa e fico de novo toda curiosa e atenta.

E é só.

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