Este conto é parte do livro A Legião Estrangeira.
...O futuro que estamos aqui inaugurando é uma linha metálica. É alguma coisa que de propósito é destituída. De tudo o que vivemos só ficará esta linha. Ela é o resultado do cálculo matemático da insegurança: quanto mais depurada, menos risco ela correrá, a linha metálica não corre o risco da linha de carne. Só a linha metálica não dará aos abutres do que comer. A nossa linha metálica não tem possibilidade de putrefação. É uma linha que se garante eterna. Nós, os que aqui estamos neste momento, a iniciamos com o propósito de que seja eterna. Você também pode gostar: Leia na Fantástica os Melhores Contos de Clarice Lispector Queremos uma linha metálica porque do princípio ao fim ela é do mesmo metal. Não sabemos com muita certeza se essa linha será forte bastante para salvar, mas é forte para durar. Para durar por si só, como criação nossa. Ainda não se apurou se a linha vergará ao peso da primeira alma que nela se pendure, como sobre os abismos do Inferno.
Como é essa linha? Ela é escorregadia e cilíndrica. E assim como o fio de cabelo, embora tão fino, tem dentro de si lugar para ser oco — assim essa nossa linha é vazia. Ela é deserta por dentro. Mas nós, que aqui estamos, temos um gosto e uma nostalgia pelo deserto como se já tivéssemos sido desapontados pelo sangue. Nós a deixaremos oca para que o futuro a encha. Nós que, por vitalidade, poderíamos tê-la enchido conosco, nós nos abstemos. Assim vós sereis a nossa sobrevivência, mas sem nós: esta nossa missão é missão suicida. A linha metálica eterna, produto de nós todos que aqui estamos reunidos neste momento, essa linha metálica eterna é o nosso crime contra hoje e também o nosso mais puro esforço. Nós a lançamos no espaço, lançamo-la de nosso cordão umbilical, e o arremesso é para a eternidade. A intenção oculta é que, ao arremessá-la, também o nosso corpo — a ela preso pelo cordão umbilical — também o nosso corpo seja arrancado do chão de hoje e se arremesse para o espaço. Esta é a nossa esperança, esta é a nossa paciência. Este é o nosso cálculo de eternidade. A missão é suicida: nós nos voluntariamos para o futuro. Somos homens de negócio que não precisam de dinheiro, mas da própria posteridade. O que temos tirado para nós mesmos do presente não tem de forma alguma desgastado a eternidade. Temos amado, mas isso não desgasta o futuro, pois temos amado exclusivamente à moda de hoje, o que um dia será apenas carne para os abutres; também temos comido pão com manteiga, o que também não rouba do futuro, pois pão com manteiga é apenas o nosso singelo prazer filial; e no Natal temos nos reunido à família. Mas nada disso prejudica a linha eterna, que é o nosso verdadeiro negócio. Somos os artistas do negócio e fazemos o sacrifício como barganha: nosso sacrifício é o mais rendoso investimento. De vez em quando, também sem desgaste da eternidade, nós nos damos à paixão. Mas isso podemos tranquilamente tirar do presente para nós mesmos, pois futuramente seremos apenas os mortos antigos dos outros. Não faremos como os nossos próprios mortos antigos que nos deixaram, em herança e peso, a carne e a alma, e ambas inacabadas. Nós, não. Derrotados por séculos de paixão, derrotados por um amor que tem sido inútil, derrotados por uma desonestidade que não tem dado frutos — nós investimos na honestidade como sendo mais rendosa e criamos a linha do mais sincero metal. Legaremos um duro e sólido arcabouço que contém o vazio. Como no oco estreito de um fio de cabelo, para os que vêm será árduo entrar dentro da linha metálica. Nós, que agora a inauguramos, sabemos que entrar na nossa linha metálica será a porta estreita dos que vêm.
Quanto a nós mesmos, assim como nossos filhos nos estranham, a linha metálica eterna nos estranhará e terá vergonha de nós, que a construímos. Estamos porém cientes de que se trata de missão suicida de sobrevivência. Nós, os artistas do grande negócio, sabemos que a obra de arte não nos entende. E que viver é missão suicida.