Este conto é parte do livro Primeiras Histórias.
Surpreendi-me. Não é que abusava de minha boa vontade? Por que mantinha ele um ar de tão denso mistério? Podia contar seus segredos sem receio de qualquer julgamento. Meu estado de embriaguez me inclinava especialmente à benevolência e além disso, afinal, ele não passava de um estranho qualquer... Por que não falava ele de sua vida com a objetividade com que pedira o copo de chope ao garçom?
Recusava-me a conceder-lhe o direito de ter uma alma própria, cheia de preconceitos e de amor por si mesmo. Um destroço daqueles, com a inteligência suficiente para saber que era um destroço, não deveria ter claros e escuros, como eu, que podia contar minha vida desde o tempo em que meus avós ainda não se conheciam. Eu possuía o direito de ter pudor e de não me revelar. Você também pode gostar: Leia na Fantástica os Melhores Contos de Clarice Lispector Era consciente, sabia que ria, que sofria, lera obras sobre o budismo, fariam um epitáfio sobre meu túmulo quando morresse. E embebedava-me não puramente, mas com um objetivo: Eu era alguém.
Mas aquele homem que jamais sairia de seu estreito círculo, nem bastante feio, nem bastante bonito, o queixo fugitivo, tão importante como um cão trotando — que pretendia com seu arrogante silêncio? Não o interrogara várias vezes? Ele me ofendia. Mais um instante, não suportaria sua insolência, fazendo-lhe ver que deveria agradecer minha aproximação, porque do contrário nunca eu saberia de sua existência. No entanto ele persistia em seu mutismo, sem sequer emocionar-se com a oportunidade de viver.
Naquela noite eu já bebera bastante. Andava de bar em bar, até que, excessivamente feliz, temi ultrapassar-me: estava por demais ajustado em mim mesmo. Procurei um meio de me derramar um pouco, antes que transbordasse inteiramente.
Liguei o telefone e esperei, mal respirando de impaciência:
— Alô, Ema!
— Oh, meu bem, a essa hora!
Desliguei. Era mentira? O tom era verdadeiro, a energia, a beleza, o amor, aquela ânsia de dar meu excesso eram verdadeiros. Só era mentira a frase imaginada tão sem esforço.
No entanto não estava contente ainda. Ema tinha vaga ideia de que eu era diferente e debitava nessa conta tudo que de estranho eu pudesse fazer. De tal modo me aceitava, que eu ficava só quando estávamos juntos. E naquele momento evitava precisamente a solidão que seria uma bebida forte demais.
Andei pelas ruas, pensando: escolherei alguém que nunca tenha imaginado me merecer.
Procurei um homem ou uma mulher. Mas ninguém me agradava particularmente. Todos pareciam bastar-se, rodar dentro de seus próprios pensamentos. Ninguém precisava de mim.
Até que o vi. Igual a todos. Mas tão igual a todos que formavam um tipo. Este, resolvi, este. E... ei-lo! Embriagado à custa de meu dinheiro e... silencioso, como se nada me devesse...
Movíamo-nos lentamente, as raras palavras — vagas, soltas, sob a luz fraca do botequim que prolongava os rostos em sombras. Ao redor de nós, algumas pessoas jogavam, bebiam, conversavam, em um tom mais forte. O torpor amolecia, sem cintilações. Talvez por isso ele custasse tanto a falar. Mas alguma coisa dizia-me que ele não estava tão embriagado e que silenciava simplesmente por não reconhecer minha superioridade.
Eu bebia devagar, os cotovelos sobre a mesa, perscrutando-o. Quanto ao outro — abandonara-se na cadeira, os pés estirados, atingindo os meus, os braços largados sobre a mesa.
— Então? — disse eu impaciente.
Ele pareceu despertar, olhou para os lados e retomou:
— Então... então... nada.
— Mas o senhor estava falando sobre seu filho!... Ele olhou-me um instante. Depois sorriu:
— Ah, sim. Pois é, ele está mal.
— Que é que ele tem?
— Angina, o farmacêutico disse angina.
— Com quem está o menino?
— Junto da mãe.
— E o senhor não fica junto dela?
— Pra quê?
— Meu Deus... Pelo menos para sofrer com ela... O senhor é casado com a moça?
— Não, não sou casado não.
— Que desgraça! — disse eu, embora sem saber em que consistia ela propriamente. — Precisamos fazer alguma coisa. Imagine se o filho morre, ela fica sozinha...
Ele não se emocionava.
— Imagine-a de olhos ardentes, junto da criança. A criança estertorando, morrendo. Morre. Sua cabecinha está torta, os olhos abertos, fixos na parede, obstinadamente. Tudo está em silêncio e a moça não sabe o que fazer. O menino morreu e ela de repente ficou desocupada. Cai sobre a cama, chorando, rasgando a roupa: "Meu filho, meu pobre filho! É a morte, é a morte!" Os ratos da casa se assustam e começam a correr pelo quarto. Sobem pelo rosto de seu filho, ainda quente, roem sua boquinha. A mulher dá um grito e desmaia, durante duas horas. Os ratos também visitam o seu corpo, alegres, rápidos, os dentinhos roendo aqui e ali.
Estava tão imerso na descrição que me esquecera do homem. Olhei-o de repente e surpreendi sua boca aberta, o queixo encostado no peito, ouvindo.
Sorri triunfante.
— Ela acorda do desmaio e nem sabe onde está. Olha de um lado para outro, levanta-se e os ratos fogem. Então surpreende o menino morto. Dessa vez não chora. Senta-se numa cadeira, junto da caminha e ali fica sem pensar, sem se mover. Os vizinhos, estranhando a falta de notícias, batem à sua porta. Ela atende a todos muito delicadamente e diz: "Ele está melhor." Os vizinhos entram e veem que ele morreu. Temem que ela ainda não saiba e preparam o choque, dizendo: "Quem sabe se é bom chamar o farmacêutico?" Ela responde: "Pra quê? pois se ele morreu." Então todos ficam tristes e tentam chorar. Dizem: "É preciso cuidar do enterro." Ela responde: "Pra quê? pois se ele já morreu." Dizem: "Vamos chamar um padre." Ela responde: "Pra quê? pois se ele já morreu." Os vizinhos se assustam e pensam que ela está louca. Não sabem o que fazer. E como não têm nada com a história, vão dormir. Ou talvez seja assim: o menino morra e ela seja como o senhor, lisa de sentimentos, e não ligue muito. Praticamente de ataraxia, sem o saber. Ou o senhor não sabe o que é ataraxia?
A cabeça deitada sobre os braços, ele não se movia. Por um instante assustei-me. E se estivesse morto?
Sacudi-o com força e ele ergueu a cabeça, mal conseguindo fitar-me com os olhos sonolentos. Adormecera. Olhei-o zangado.
— Ah, então...
— O quê? — Tirou um palito do paliteiro e meteu-o na boca, devagar, completamente bêbedo. Rompi numa gargalhada.
— O senhor está louco? Pois se não comeu nada!...
A cena me pareceu tão cômica que me torci de rir. As lágrimas já me chegavam aos olhos e escorriam pelo rosto. Algumas pessoas voltaram a cabeça para meu lado. Já não tinha mais vontade de rir e no entanto continuava. Já pensava em outra coisa e no entanto ria sem parar. Estaquei de súbito.
— O senhor está brincando comigo? Pensa que vou abandoná-lo, assim, pacificamente? Deixá-lo continuar um caminho fácil, mesmo depois de ter se chocado comigo? Ah, nunca. Se for preciso, farei confissões.
Contarei tanta coisa... Mas talvez o senhor não compreenda: somos diferentes. Sofro, em mim os sentimentos estão solidificados, diferenciados, já nascem com rótulo, conscientes de si mesmos. Quanto ao senhor... Uma nebulosa de homem. Talvez seu bisneto já consiga sofrer mais... Isso não importa, porém: quanto mais difícil a tarefa, mais atraente, como disse Ema antes de nosso noivado. Por isso vou jogar meu anzol dentro do senhor. Talvez ele se ligue ao germe do seu bisneto sofredor. Quem sabe?
— É — disse ele.
Debrucei-me sobre a mesa, procurando-o com fúria:
— Escute-me, amigo, a lua está alta no céu. Você não tem medo? O desamparo que vem da natureza. Esse luar, pense bem, esse luar mais branco que o rosto de um morto, tão distante e silencioso, esse luar assistiu aos gritos dos primeiros monstros sobre a terra, velou sobre as águas apaziguadas dos dilúvios e das enchentes, iluminou séculos de noites e apagou-se em seculares madrugadas... Pense, meu amigo, esse luar será o mesmo espectro tranquilo quando não mais existirem as marcas dos netos dos seus bisnetos. Humilhe-se diante dele. Você apareceu um instante e ele é sempre. Não sofre, amigo? Eu... eu por mim não suporto. Dói-me aqui, no centro do coração, ter que morrer um dia e, milhares de séculos depois, indiferenciado em húmus, sem olhos para o resto da eternidade, eu, EU, sem olhos para o resto da eternidade... e a lua indiferente e triunfante, mãos pálidas estendidas sobre novos homens, novas coisas, outros seres. E eu Morto! — respirei profundamente. — Pense, amigo. Agora mesmo ela está sobre o cemitério também. O cemitério, lá onde dormem todos os que foram e nunca mais serão. Lá, onde o menor sussurro arrepia um vivo de terror e onde a tranquilidade das estrelas amordaça nossos gritos e estarrece nossos olhos. Lá, onde não se tem lágrimas nem pensamentos que exprimam a profunda miséria de acabar.
Debrucei-me sobre a mesa, escondi o rosto nas mãos e chorei. Dizia baixinho:
— Não quero morrer! Não quero morrer... Ele, o homem, mexia com o palito nos dentes.
— Mas se o senhor nada comeu — insisti, enxugando os olhos.
— O quê?
— "O quê" o quê?
— Hein?
— Mas, meu Deus, "hein" o quê?
— Ah...
— O senhor não tem vergonha?
— Eu?
— Ouça, vou dizer mais: eu queria morrer vivo, descendo ao meu próprio túmulo e eu mesmo fechá-lo, com uma pancada seca. E depois enlouquecer de dor na escuridão da terra. Mas não a inconsciência.
Ele continuava com o palito na boca.
Depois foi muito bom porque o vinho estava misturando-se. Peguei também um palito e segurei-o entre os dedos como se fosse fumá-lo.
— Eu fazia assim em pequeno. E o prazer era maior do que o atual, quando fumo realmente.
— É claro.
— É claro coisa alguma... Não estou pedindo aprovação.
As palavras vagas, as frases arrastadas sem significado... Tão bom, tão suave... Ou era o sono?
De repente, ele tirou o palito da boca, os olhos piscando, os lábios trêmulos como se fosse chorar, disse: