A Mortalha - Conto de Horror de Luis Coloma | Fantástica Cultural

Artigo A Mortalha - Conto de Horror de Luis Coloma
C O N T OLiteratura

A Mortalha - Conto de Horror de Luis Coloma

Autores Selecionados ⋅ 18 abr. 2024
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

"Quem compra esse pobre manto que estou usando para enterrar meu filho que nesta tarde morreu?"

morte a mortalha conto de horror de luis coloma

Há muitos anos, na manhã da Sexta-feira Santa, multidões compostas por pessoas de todas as classes sociais enchiam a espaçosa praça de Santiago de Jerez de la Frontera. A cada instante, novas ondas de gente aumentavam a já grande multidão que se apinhava em torno de um alto túmulo erguido no centro. Numerosas senhoras ocupava todas as varandas, salvo uma daquelas sacadas. Nela, um velho frade, de longa barba e venerável aparência, ajoelhava-se, sob um dossel negro, em oração.

Tudo indicava que ali iria realizar-se um ato eminentemente religioso. E era verdade. Mui brevemente, aquele povo — ali congregado pela mais viva fé e pela piedade mais profunda — iria representar um auto sobre o sublime drama do Calvário. Um surdo murmúrio elevou-se na praça, mas em todos os semblantes estampavam-se sinais do mais amargo desconsolo. E era que os nossos padres, inflamados por um profundo amor a Deus e pelo fogo de uma ardente caridade, lastimavam-se pelos próprios pecados, considerando que foram eles, e não o povo judeu, que crucificaram e maltrataram, de forma tão cruel, Aquele em cujo corpo — coberto de chagas e destroçado pelos mais atrozes tormentos — estão impressas, com sangrentos caracteres, estas palavras do Rei profeta: Traspassaram meus pés e mãos e contaram todos os meus ossos!

Outra cena, que contrastava, em parte, com a anterior — mas semelhante à primeira em alguns aspectos —, ocorria, coetaneamente, num quarto baixo da vizinha Rua de la Merced, consequência dolorosa da fome e da miséria que dizimara a cidade. Sobre um mui pobre leito repousava o cadáver de uma jovem, coberta tão-somente por miseráveis farrapos. Suas rígidas mãos seguravam uma negra cruz contra o peito, como se expressassem o seu último pensamento.

Sentado junto a uma mesa estava um homem velho, em cujo semblante e atitude via-se impressa aquela decadência — aquela espécie de inércia física e moral — que se apodera de um homem quando a angústia e o desconsolo lhe oprimem o coração. Sua cabeça, prateada pela neve dos anos, inclinava-se sobre o peito; seus braços caíam ao longo do corpo; seus olhos contemplavam o cadáver com uma fixidez estúpida, que lhe retratava o estado d'alma: embotada pelo ímpeto da dor, a alma não conseguia compreender a extensão da própria desgraça. Mas, de repente, o velho desviou os olhos e lançou-os, ansioso, a um quadro da Virgem das Dores, encostado sobre a mesa, e sua fisionomia mudou completamente: de fria e estúpida, tornou-se ardente e expressiva; então, cruzando as mãos calejadas num gesto de súplica, de seus lábios escaparam palavras entrecortadas, que pareciam pedir algo com aquela fé, com aquela esperança que a religião de Jesus Cristo inspira aos desgraçados. Depois, voltou à imobilidade, e uma lágrima — amarga como azevinho e como fogo abrasador — deslizou por sua face e caiu no chão, que a absorveu e, num átimo, fê-la desaparecer, da mesma maneira como o triste desengano consome e extingue, num só instante, a mais risonha ilusão.

Há outra pessoa naquele enorme antro de dor e desconforto: é uma mulher de cinquenta anos, que parece presa do mais horrível desespero; o seu corpo treme como uma folha débil; suas mãos golpeiam o rosto decomposto pela rigidez dos músculos e seus olhos arregalados não derramam uma lágrima sequer. Ora anda, ora para, ora arroja-se ao leito e beija freneticamente o cadáver da filha. Depois se levanta com uma dor tão terrível que o seu coração parece partir-se em mil pedaços. E ela grita, interrompendo-se com gemidos roucos:

— Morta de fome, a minha filha! Meu Deus! Não poderei, sequer, amortalhá-la?

Imponente, era, pois, a cena que contemplavam alguns curiosos; estes, atraídos pelos gritos da mãe, se tinham aproximado da janela. De um lado via-se a dor calma e resignada, mas amarga e profunda; de outro, as represas rompidas, a dor transbordante, a loucura, o desespero. Mais além, a fria insensibilidade, a morte...

De repente, os murmúrios aumentam na praça e todos os olhares se voltam para a Rua Larga, onde a procissão da Irmandade da Piedade avançava lenta e majestosamente. Entre duas fileiras de penitentes, e carregada nos ombros de quatro deles, vinha uma imagem de Cristo morto na cruz; e, um passo atrás, seguiam a Virgem Santa, São João — o discípulo amado — e as três Marias.

Enquanto a procissão abria o passo, dirigindo-se ao sepulcro, uma voz, dominando os murmúrios da multidão, cantou, no tom triste das chamadas saetas, os seguintes versos, que, sem obedecer a nenhuma regra poética, encerram um precioso tesouro de poesia e sentimento:


"Quem compra esse pobre manto
que estou usando
para enterrar meu filho
que nesta tarde morreu?"


O atribulado ancião — a cujos ouvidos a seata havia chegado clara e distintamente —, assim que finda a melodia, levantou-se — como se impelido por uma mola — e saiu correndo, dizendo à esposa, com um tom misterioso e singular:

— Espera!

E com uma agilidade que não parecia própria de seus muitos anos, atravessou rapidamente a rua e chegou ao Arco de Santiago, conseguindo, graças a poderosos esforços, colocar-se num sítio um tanto elevado.

Depois de colocadas as imagens sob o túmulo, o frade, ajoelhado na varanda, levantou-se e iniciou o panegírico da morte do Senhor.

O velho escutava com singular atenção o patético relato dos sofrimentos do Redentor; doces lágrimas, que a compaixão arrancava de sua dor, resvalavam por suas faces e um tremor convulsivo sacudia o seu corpo.

Ao descrever o piedoso e caridoso ato realizado por José e Nicodemos no alto do Calvário, dois sacerdotes, representando aqueles santos homens, aplicaram duas escadas nos braços da cruz, e, subindo por elas, despojaram a imagem da coroa de espinhos, depois a descravaram e, finalmente, envolvendo-a num lençol, puseram-na nos braços da Virgem.

Em seguida, o frade, dirigindo-se aos frades penitentes, disse:

— Irmãos, Cristo morreu; pedi em caridade para o Seu enterro.

E os irmãos, agitando os sinos, disseminaram-se pela praça, implorando a caridade do povo. Naquele ano, em a miséria fora espantosa, poucos foram os que deram esmolas. E, ao percebê-lo, o frade, cujo investigativo olhar perscrutava a praça, arrancou violentamente dos ombros o manto e, jogando-o fora, gritou com enérgica e desgarrada entonação:

— Se vós nada dais para o sepultamento de Cristo, lá vai minha capa!

A estas palavras, um clamor universal elevou-se na praça: muitos choraram e todos ofereceram aos irmãos tudo o que tinham em joias e dinheiro.

O desgraçado velho pai caíra de joelhos e exclamava, batendo no peito:

— Perdoai-me, Deus da minha alma! Atrevi-me a duvidar de vossa providência porque não podia amortalhar a minha filha, mas agora vejo que a vossa Mãe Santíssima se encontra na mesma situação!

Tão profunda era a aflição com que foram pronunciadas estas palavras, tanta era a amargura que se retratava naquele semblante, que atraiu a atenção de algumas pessoas, malgrado a heroica ação do santo frade tivesse embargado o ânimo e todos os presentes. Mas ninguém tinha uma palavra de conforto para aquele pai aflito. Apenas uma senhora, cujo traje e figura denotavam a elevada classe à qual ela, sem dúvida, pertencia, acercou-se do ancião e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. Estas palavras devem ter sido muito doces e consoladoras para aquele infeliz, pois ele respondeu ao segredo com um expressivo olhar de gratidão e, levantando-se, fez-lhe sinal para que ela o seguisse.

A senhora obedeceu ao velho e este logo ofereceu aos seus olhos o horrível espetáculo antes descrito. O assombro e a compaixão estavam impressos no rosto da boa senhora. Todavia, recuperada da emoção que sentira, procurou, com palavras de esperança e de consolo, aplacar a terrível dor daqueles pais, prometendo satisfazer ao máximo os seus desejos.

E não foram em vão as promessas da caridosa dama, pois, poucas horas depois, era muito diferente a aparência que aquele miserável quarto. As paredes e o chão estavam cobertos de negros panos; no centro se levantava pequeno catafalco igualmente negro. Acima dele, e num ataúde branco, estava o cadáver da jovem, rodeado de luzes e flores; sua mortalha também era branca e suas mãos cruzadas seguravam um crucifixo e um lírio-branco...


Tradução de Paulo Soriano


Fonte:

Contos de Terror https://www.contosdeterror.site/2023/10/a-mortalha-conto-classico-funebre-luis.html

foto do autor

Autores Selecionados

Escritores, ensaístas e jornalistas em destaque



SÉRIE NUM FUTURO PRÓXIMO

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST