No Abismo - Conto de Horror de H. G. Wells | Fantástica Cultural

Artigo No Abismo - Conto de Horror de H. G. Wells
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No Abismo - Conto de Horror de H. G. Wells

Autores Selecionados ⋅ 31 mar. 2024
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Um mergulho às profundezas do oceano e o encontro com uma civilização submarina até então desconhecida.

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O tenente estava de pé diante da esfera de aço e mordia uma lasca de madeira.

— Que pensa disto, Steevens? — perguntou ele.

— É uma ideia como outra qualquer — disse Steevens, em tom de quem quer formar uma opinião sincera.

— Creio que isto vai achatar-se em cheio — continuou o tenente.

— Parece que ele calculou cuidadosamente a coisa — disse Steevens, ainda imparcial.

— Mas lembra-se da pressão — insistiu o tenente. — À superfície da água, ela é de quatorze libras por polegada; trinta pés mais abaixo, é dupla; a sessenta, tríplice; a noventa, quádrupla; a novecentos, quarenta vezes maior; a cinco mil pés, trezentas vezes maior... isto quer dizer que a uma milha de profundidade a pressão é duzentas e quarenta vezes quatorze libras: isto é... espere... um quintal... uma tonelada e meia, Steevens. "Uma tonelada e meia" por polegada quadrada. E o oceano tem aqui cinco milhas de profundidade. Ele suportará uma pressão de sete toneladas e meia...

— Uma bela sondagem! — disse Steevens. — Mas também ele é protegido por uma espessura de aço.

O tenente não respondeu e pôs-se de novo a morder o pedaço de madeira. O objeto da conversação era uma imensa bola de aço, cujo diâmetro exterior era de nove pés, mais ou menos, e que parecia ser o projétil de algum formidável peça de artilharia: achava-se muito trabalhosamente encaixada em um arcabouço monstruoso, armado no madeiramento do navio e os gigantescos cilindros de madeira sobre os quais ela ia em breve resvalar por cima da amurada. Tal aspecto davam à popa da embarcarão, que excitaria a curiosidade todo o marinheiro consciencioso, desde "pool" de Londres até o trópico de Capricórnio. Em dois lugares, um em cima do outro, o aço era substituído por um par de janelas circulares, fechadas com portas de vidro de espessura considerável, e uma delas, encaixilhada em armação de grande solidez, achava-se então parte aparafusada.

Nesse mesmo dia, pela manhã, os dois homens tinham visto primeira vez o interior daquele globo. Ele estava cuidadosamente acolchoado de almofadas de ar comprimido, guarnecidas de botões fixos entre as saliências, e que constituíam o simples mecanismo do aparelho.

Todos os objetos estavam igualmente bem acolchoados, até o aparelho Myers devia absorver o ácido carbônico e substituir o oxigênio aspirado habitante do globo quando, uma vez lá introduzido, estivesse aparafusada a abertura de vidro.

Tudo estava tão perfeitamente acolchoado que uma pessoa, colocada dentro da esfera, se esta fosse atirada por um canhão, poderia suportar com segurança o choque impetuoso. E assim era preciso, porquanto ia lá penetrar pela abertura: ficaria solidamente fechado dentro dela e seria em seguida atirado por cima da amurada, para afundar-se no Oceano até uma profundidade de cinco milhas, como dissera o tenente. A imaginação deste achava-se exclusivamente ocupada com esta ideia; tornara-se para ele uma obsessão, mesmo durante as refeições, e Steevens, o recém-chegado, era companheiro precioso, com que ele ia poder conversar à vontade sobre o objeto da preocupação.

— Tem-se ocorrido à ideia — disse o tenente — de que estes postigos de vidro podem muito bem dobrar, rachar e esmigalhar-se sob semelhante pressão. Daubrée liquefez rochedos sob pressões enormes... e note bem isto...

— Se o vidro quebrar, disse Steevens — que poderá suceder?

— A água entrará como um jato de ferro. Já recebeu alguma vez um jato de grande pressão? É o mesmo que uma bala. Ele seria simplesmente esmagado e achatado. A água entrar-lhe-ia pela garganta, pelos pulmões, penetraria nos ouvidos...

— Que imagem detalhada! — exclamou Steevens, que concebia as coisas ao vivo.

— E a simples exposição de uma coisa inevitável — disse o tenente.

— E o globo?

— Esse deixaria escapar algumas pequenas bolhas e instalar-se-ia confortavelmente, até ao dia do Juízo Final entre o lodo e o limo do fundo... com o pobre Elstead esmagado nas almofadas achatadas, como manteiga em pão.

Repetiu a imagem como se ela lhe tivesse agradado muito:

— Como manteiga em pão.

— Uma vista de olhos na vela traseira — disse uma voz.

E Elstead apareceu atrás deles, vestindo um terno branco, tendo um cigarro na boca e os olhos risonhos sob as grandes abas do chapéu.

— Que está a dizer, a propósito de pão e de manteiga, Weybridge? Estás, como de costume, resmungando sobre o ordenado insuficiente dos oficiais de marinha? Só falta agora um dia para a minha partida. As lingas vão ficar prontas hoje. Este lindo céu e este marulho tranquilo são justamente o que é preciso para se atirar por cima da amurada uma dúzia de toneladas de chumbo e ferro, não é verdade?

— Você não há de perceber muito bem o marulho — disse Weybridge.

— Não. A seiscentos ou oitocentos pés de profundidade... e lá estarei daqui a doze segundos... nem uma só molécula se moverá, ainda que o vento se desencadeie e que a água suba até as nuvens. Não. Lá, no fundo...

Isto dizendo, caminhou para a trincheira da borda, e os outros dois seguiram-no. Todos três se inclinavam, apoiando-se aos cotovelos e contemplaram a água de um verde amarelado.

— ... a paz — disse Elstead, terminando alto o seu pensamento.

— Está absolutamente certo de que o movimento dos relógios será constante? — perguntou inopinadamente Weybridge.

— Ele tem trabalhado trinta e cinco vezes — disse Elstead. — Continuará a trabalhar.

— Mas suponhamos que ele não funcione.

— Por não há de funcionar?

— Eu, nem por vinte mil libras desceria naquela maldita máquina — disse Weybridge.

— São realmente animadoras estas palavras — notou Elstead.

— Ainda não pude compreender de que modo se possa fazer funcionar aparelho — disse Steevens.

— Ora! Em primeiro lugar, entro na esfera e aparafusam a abertura, principiou Elstead. — E, depois de eu ter acendido e apagado três vezes seguidas a luz elétrica para mostrar que tudo vai bem, sou lançado por cima da trincheira da borda por este guindaste, com todos estes grandes pesos de chumbo suspensos em volta de mim. Aquele enorme que está suspenso em cima, é munido de um cilindro no qual estão enroladas cem toesas de sólida corda, e é tudo quanto liga os pesos do fundo à esfera, excetuando as lingas que serão cortadas quando a esfera cair. Sirvo-me de cordas, de preferência a cabos de ferro, porque são mais flutuantes e por serem mais fáceis de cortar — condições necessárias, como já vai ver. Repare, pare todos estes pesos de chumbo são furados; ser-lhes-á adaptada uma barra de ferro que excederá seis pés à extensão da face interior. Logo que esta barra estiver em contato com o fundo, ela baterá em uma alavanca que desprenderá o movimento do relógio do lado em que está o cilindro sobre o qual estão enroladas as cordas... Compreende? Deita-se à água todo o sistema do modo mais simples. A esfera flutua... com o ar que contém, ela fica mais leve que a água... mas os pesos de chumbo continuam a afundar, e a corda se desenrola até ao fim. Logo que a corda fica inteiramente desenrolada, a esfera vai também afundando.

— Mas de que serve a corda? — perguntou Steevens. — Por que razão não se unem diretamente os pesos à esfera?

— Por causa do choque provável do fundo. A esfera e os pesos atingem pouco a pouco uma velocidade vertiginosa e vão ao fundo rapidamente. Se não fora a gorda, ela seria feita em pedaços ao bater no fundo. Desde, porém, que os pesos repousarem no fundo, entrará em jogo a leveza da esfera. Ela continuará a afundar cada vez mais lentamente, parará finalmente, depois tornará a subir. É então que intervém o movimento do relógio. Logo que os pesos de chumbo se achataram no fundo do mar, a barra será empurrada e impulsionará o movimento e de novo a corda se enrolará no cilindro. Destarte, serei levado até ao fundo. Aí ficarei cerca de meia hora, com a luz elétrica acesa, examinando o que estiver em torno de mim. Depois, o movimento do relógio acionará uma faca de mola, a corda será cortada e tornarei à superfície como uma bolha em um sifão. A própria corda auxiliará a flutuação.

— E se, por acaso, a esfera, ao subir, for ter ao fundo de um navio? — perguntou Weybridge.

— Ela levará tal velocidade que o atravessará como uma bala de canhão — disse Elstead. — Sobre esse ponto não há a menor dúvida.

— Suponha que um pequeno crustáceo de grande agilidade se insinue nas molas do relógio.

— Isto seria para mim uma espécie de convite um tanto urgente para eu me deixar ficar na companhia deles — disse Elstead voltando as costas para o mar e contemplando a esfera.

Tinham atirado Elstead por cima da amurada às onze horas. O dia estava calmo e serenamente iluminado, e o horizonte perdia-se no nevoeiro. O brilho das lâmpadas elétricas tinha alegremente aparecido por três vezes dentro do compartimento superior. Foi então que o fizeram descer lentamente até tocar na superfície da água, e um marinheiro, colocado junto dos rebordos da ré, estava pronto a cortar a adriça que retinha o conjunto dos pesos do fundo e da esfera. A esfera, que na tolda do navio parecera enorme, não passava agora de um pequeno objeto de dimensões mínimas, visto sob a popa da embarcação. Ela baloiçou-se um pouco e os seus dois postigos escuros, colocados acima da linha de flutuação, pareciam dois olhos desmesuradamente abertos, contemplando a equipagem que se comprimia contra a amurada. Ergueu-se uma voz, perguntando o que devia pensar Elstead daquele baloiço.

— Estão prontos? — exclamou o capitão.

— Sim, capitão.

— Larguem tudo.

O cabo da adriça retesou-se contra a vaga e foi cortado. Formou-se um rodamoinho sobre a esfera e a água convulsionou-se de um modo grotescamente imponente. Alguém agitou um lenço; outro tentou uma exclamação vã! Um quartel-mestre contou lentamente... oito, nove, dez. Formou-se novo rodamoinho, depois, com um ruidoso marulho e, lançando jatos de água a grande altura, a esfera tomou a posição vertical.

Ela pareceu ficar estacionária um instante, depois tornar-se rapidamente menor; por fim, a água cobriu-a, e ela ficou visível sob a superfície, indistinta e aumentada pela refração. Antes de se ter podido contar até três, tinha ela já desaparecido. Viu-se nas profundezas da água uma trepidação de luz branca que foi diminuindo até não formar mais que um ponto, desvanecendo-se por fim. Depois, nada mais se viu senão o abismo de águas tenebrosas, onde nadava um tubarão.

Rapidamente, a hélice do vapor se pôs em movimento; a água espadanou em borbotões; o tubarão desapareceu na confusão das ondas, e uma torrente de espuma sobre a cristalina limpidez que havia sorvido Elstead.

— Que se vai agora fazer? — disse um marinheiro a outro.

— Vamos afastar-nos um par de milhas para não nos encontrarmos no seu caminho, quando ele subir — respondeu o camarada.

O navio tomou lentamente uma nova posição. A bordo todos os que não estavam de serviço ficaram observando o lugar agitado onde a esfera se tinha afundado. Durante a meia hora que se seguiu, é de crer que nenhuma palavra foi pronunciada que não se referisse a Elstead. O Sol de dezembro estava agora no céu e era grande o calor.

— Creio que ele não deve sentir muito calor lá embaixo — disse Weybridge. — Há quem afirme que, uma certa profundidade, a água do mar está quase sempre em uma temperatura glacial.

— Em que lugar vai ele aparecer? — perguntou Steevens.

— Acolá — disse o comandante, que se orgulhava sua onisciência. E indicou com o dedo um ponto exato para sudoeste. E acrescentou: — Agora não há de tardar. Já se passaram 35 minutos.


* * *


— Quanto tempo é preciso para chegar ao fundo do oceano? — perguntou Steevens.

— Para uma profundidade de cinco milhas, levando em conta, como fizemos, uma aceleração de dois pés por segundo, tanto na ida como na volta, são precisos três quartos de minuto...

— Então, ele está atrasado, — disse Weybridge.

— Mas... quase — disse o comandante. — Suponho que são precisos alguns minutos para que a sua corda se enrole.

— Esqueceu-me isso — disse Weybridge evidentemente aliviado.

Então principiou a expectação. Lentamente, decorreu um minuto e nenhuma esfera surgiu das ondas. Seguiu-se outro minuto e nada veio romper a ondulação untuosa do mar. Os marinheiros explicavam uns aos outros a importância do enrolamento da corda. O cordame estava cheio de fisionomias atentas.

— Sobe, Elstead, sobe! — gritou com impaciência um marinheiro de peito cabeludo, e os outros repetiram e gritaram como se reclamassem a subida do pano de um teatro.

O comandante lançou-lhes um olhar irritado.

— Naturalmente, se a aceleração é menor que dois — disse ele —, levará mais tempo. Não estamos absolutamente certos que seja esse um dado exato. Eu não creio cegamente nos cálculos.

Steevens manifestou laconicamente o seu assentimento. Durante um par de minutos ninguém falou. Então, o do relógio de Steevens fez um ruído.

Quando, vinte minutos mais tarde, o Sol chegou ao zênite, eles esperavam ainda o aparecimento da esfera, e nem um homem a bordo ousava murmurar que estava perdida toda a esperança. Foi Weybridge quem primeiro exprimiu essa certeza.

— Eu nunca tive confiança naqueles postigos, — disse ele, de repente, a Steevens.

— Meus Deus! — exclamou Steevens. — Então não acredita que...

— Palavra que não... disse Weybridge.

— Não tenho grande confiança nos cálculos desse gênero — declarou o comandante em tom de dúvida, de modo que ainda não perdi de todo a esperança.

À meia-noite, o cruzador evoluía lentamente, ao redor do lugar onde a esfera tinha emergido. O clarão branco do foco elétrico perpassava e detinha-se continuadamente sobre a extensão das águas fosforescentes, enquanto cintilavam minúsculas estrelas.

— Se a janela não cedeu e ele não está esmagado — disse Weybridge —, a sua malfadada situação é ainda pior, porque, nesse caso, seria por alta de funcionamento da mola do relógio, e ele estaria agora vivo, a cinco milhas abaixo de nós, acolá, no frio e nas trevas, ancorado na sua pequena bola de aço, lá, onde nunca entrou um raio de luz, e onde nunca ser humano algum viveu, desde que as águas se reuniram. Ele lá sem alimento, sofrendo a tortura da fome e da sede, aterrorizado e imaginando se morrerá de fome ou sufocado. Qual destas duas mortes será a sua? O aparelho Myers deve esgotar-se, parece-me. Quanto tempo resistirá ele?

— Com mil bombas! — exclamou ele. — Que mesquinhas coisas somos! Que ousados diabretes! No abismo! A ilhas e milhas de líquido... só água e mais nada, por baixo de nós em volta de nós, e o céu! Voragens!

Dizendo isto, ergueu os braços, e no mesmo momento uma pequena listra branca apareceu sem ruído no céu, afrouxou pouco e pouco a marcha, deteve-se, tornou-se um pequeno ponto imóvel, como se uma nova estrela tivesse tomado lugar no céu. Pouco depois aquilo principiou a rolar e em breve se perdeu entre o reflexo das estrelas e a pálida e nebulosa fosforescência do mar.

A esta vista, ele ficou estupefato, com os braços estendidos e a boca aberta. Depois, fechou a boca, abriu-a novamente, e agitou os braços em gestos desordenados. Por fim, voltou-se e gritou: "Elstead, olá!" ao primeiro vigia, e correu até Lindley, depois até ao foco elétrico.

— Eu já o vi — clamou — a estibordo, acolá! Tem as lâmpadas acesas. E acaba nesse momento de sair. Procure desse lado com o refletor. Vamos vê-lo perfeitamente a flutuar quando tornar a aparecer à superfície.

Mas não o encontraram antes da aurora. Mesmo então, escaparam de passar por cima dele. Prepararam o guindaste e, com uma chalupa, agarraram as correntes da esfera. Depois de voltarem para bordo, desaparafusaram a abertura dela e exploraram a vista a escuridão interior, pois a câmara do foco elétrico estava disposta de modo a iluminar a água somente ao redor da esfera e estava interceptada pela cavidade geral.

A atmosfera interior estava muito aquecida e a guta-percha que guarnecia a extremidade da abertura estava mole. As perguntas impacientes ficavam sem resposta e nenhum rumor se fazia ouvir. Elstead estava desmaiado, dobrado para diante no fundo do camarim. Aí se introduziu o médico de bordo e tomando-o nos braços o passou para os que se achado lado de fora. Durante certo tempo, não lhes foi possível saber se Elstead estava vivo ou morto. Seu rosto reluzia de suor à luz amarela das lâmpadas. Transportaram-no ao seu camarote de bordo.

Não estava morto, conforme dentro pouco eles puderam notar, mas sim em um estado de absoluto abatimento nervoso e, além disso, cruelmente contundido. Foi preciso deixarem-no ficar deitado e perfeitamente tranquilo durante alguns dias. Passou-se semana antes que ele pudesse contar as suas impressões.

Logo às primeiras palavras, declarou que ia repetir a experiência. A esfera precisava de ser aperfeiçoada, disse, a fim-de lhe permitir desembaraçar-se da corda, se preciso fosse, e mais nada. Esta fora a aventura mais maravilhosa possível.

— Pensavam todos — disse ele — que eu não ia encontrar senão lodo. Zombavam das minhas explorações, pois bem, eu descobri um novo mundo.

E contou a sua história por fragmentos, sem continuação, e quase sempre principiando pelo fim, de modo que é impossível repeti-la textualmente. O que se segue é, porém, uma exata narração do que com ele se passou.

O início da sua viagem foi um tormento. Antes da corda se desenrolar de todo, a esfera não cessou de baloiçar. Ele teve a sensação de ser uma rã encerrada em um balão sobre o qual batessem desenfreadamente com os pés. Não lhe era possível distinguir senão o guindaste de bordo e o céu por cima da sua cabeça, se bem que, de relance, lobrigasse por acaso as pessoas que se achavam na tolda, sendo-lhe de todo impossível prever para que lado a esfera ia voltar-se. Erguia um pé para andar e era arremessado em todos os sentidos contra as almofadas. Qualquer outra forma teria sido mais confortável, mas nenhuma outra teria podido suportar a enorme pressão do abismo. Subitamente, cessou o baloiço; a esfera manteve-se em equilíbrio, e, quando ele se levantou, viu em torno de si o azul esverdeado das ondas, à luz do dia, que, atenuada, filtrava da superfície para o fundo, e uma multidão de coisas pequenas e flutuantes que passavam vertiginosamente contra os vidros, as quais, segundo lhe parecia, subiam em busca da luz. Depois, à proporção que ele olhava, a escuridão ia aumentando, até que, por cima da sua cabeça, tudo se tornou tão escuro como o céu da noite, se bem que de uma tonalidade mais sobre o verde, e, por baixo dele só havia trevas absolutas. De vez em vez, umas coisas pequenas e transparentes desprendendo irradiações luminosas, faziam, ao longo dos postigos, leves listras esverdeadas.

E a sensação de queda! Lembrava a partida súbita de um ascensor, com diferença de durar mais tempo. Cumpre refletir um pouco para se imaginar o que devia ser. Foi só então que Elstead se arrependeu de ter tentado aquela aventura. Viu sob um aspecto completamente novo as probabilidades que se apresentavam contra ele. Pensou nos enormes peixes de serra que existem nas profundidades médias, nesses espécimes terríveis que às vezes se encontram meio digeridos no estômago dos grandes cetáceos, ou flutuando mortos, em estado de decomposição e meio devorados.

Imaginou o que seria um deles se agarrasse à esfera e não mais a largasse. E a mola do relógio? Tinha-a suficientemente experimentado?

Passados cinquenta minutos, tudo no exterior ficou negro como a noite, exceto o espaço que o reflexo do seu foco elétrico alumiava e onde apareciam de vez em vez peixes e fragmentos de objetos que se afundavam. Tudo aquilo desaparecia tão rapidamente que ele não podia perceber o que fosse. Uma vez, pareceu-lhe ver um tubarão. Nesse momento, a esfera principiou a aquecer pelo atrito. Passou-lhe pela mente a ideia de que talvez aquele dado não tivesse sido suficientemente calculado. A primeira coisa que pode notar foi que estava transpirando; percebeu depois uma espécie de assobio que partia de sob os seus pés e ia aumentando de intensidade, e viu em seguida uma grande quantidade de pequenas bolas, muito pequeninas bolas, que subiam em leque para a superfície. Aquilo era evaporação!

Ele apalpou o postigo: o vidro estava escaldante. Imediatamente, ele acendeu a lâmpada elétrica que alumiava a sua cabine, consultou o relógio embutido na parede acolchoada, e viu que a sua viagem durava já dois minutos. Ocorreu-lhe ao espírito que o postigo poderia talvez estalar no conflito das temperaturas, porquanto não ignorava que a água é glacial nas grandes profundidades. Depois, repentinamente, pareceu-lhe sentir uma pressão da parede da esfera contra as palmas dos pés; de fora, o aparecimento de bolhazinhas diminuiu, bem como o assobio. A esfera baloiçou-se levemente. O postigo não havia estalado, nada tinha cedido, e estava certo de que, em todo caso, o perigo de um naufrágio estava passado.

Mais um minuto e ele repousaria no fundo do abismo. Pensou, então, disse, em Steevens, em Weybridge, e nos outros que estavam a cinco milhas acima da sua cabeça, mais altos em relação a ele do que nunca estiveram acima de nós as nuvens mais elevadas que flutuam no céu; sim, pensou que naquele momento, todos eles navegavam lentamente, buscavam sondar a profundeza das águas desejosos de saberem o que lhe podia haver acontecido.

Principiou a olhar pelo postigo. Não se viam mais bolhas, agora, e o assobio havia cessado. Fora só havia profundas trevas, de um negror espesso como veludo, salvo nos pontos em que o jato de luz elétrica penetrava na água e lhe mostrava a cor: era uma cor parda amarelada. Então, três coisas, como formas de fogo, nadaram à vista, seguindo-se. Ele não podia distinguir se eram pequenas, ou enormes e afastadas.

Cada uma delas se desenhava com relevos azulados, quase tão brilhantes como as luzes de uma barca de pesca, luzes que parecia produzirem muita fumaça, e tinham de cada lado manchas da mesma luz, como a das portinholas dos navios. A sua fosforescência pareceu extinguir-se quando eles passaram no espaço iluminado pela luz da lâmpada, e ele viu, então, que eram pequenos peixes de uma espécie desconhecida, com olhos enormes, cujos corpos e caudas terminavam bruscamente. Tinham os olhos voltados para ele. Supondo-os atraídos pela luz, Elstead pensou que o seguiam na sua descida.

Dentro em pouco se lhes reuniram outros do mesmo gênero. À proporção que ia descendo, ele reparava que a água ia tomando um colorido mais desmaiado e que, como átomos em uma réstia de sol, pequeninas manchas de luz brilhavam na irradiação do foco elétrico. Isto era provavelmente causado pela nuvem de lodo e lama que se levantara do fundo em consequência da queda dos pesos de chumbo.

Durante todo o tempo que ele foi arrastado para o fundo por esses pesos, teve sempre em torno de si um nevoeiro branco tão denso, que o projetor elétrico não conseguia atravessar completamente, senão apenas a uma distância de dois pés. E passaram-se alguns minutos antes que as camadas de sedimento em suspensão tornassem a cair ao fundo. Só então, à luz das lâmpadas elétricas, e da passageira fosforescência de um branco distante de peixes, logrou ele ver, sob a imensa escuridão das águas superiores, uma superfície ondulante de lodo de um branco pardacento, interrompida aqui e ali por maciços emaranhados de lírios marítimos agitando os seus tentáculos esfaimados.

Mais ao longe, viam-se os graciosos e transparentes contornos de um grupo de esponjas gigantescas. Sobre esse solo estavam dispersos em grande número tufos eriçados e lisos de uma bela cor purpurina e preta que ele supôs serem de alguma espécie de ouriço marítimo, bem como umas pequeninas coisas com olhos muito grandes ou cegas, apresentando uma curiosa semelhança, umas com os bichos de conta, outras com as lagostas, rastejavam lentamente na esteira de luz e tornavam a desaparecer na escuridão, deixando atrás de si sulcos no lodo.

Súbito, a multidão irrequieta de pequenos peixes mudou de direção e avançou para ele, como um bando de estorninhos. Passaram por cima dele como uma neve fosforescente, e ele viu então, atrás deles, um ente de dimensões maiores, que se dirigia para a esfera.

Primeiramente, não pode distinguir, senão apenas vagamente, aquele vulto de movimentos indecisos, sugerindo a ideia de um homem andando; depois, ele entrou na irradiação que a lâmpada projetava. No momento em que a claridade lhe tocou, ele fechou os olhos, ofuscado. Elstead contemplou-o com grande espanto.

Era um animal estranho, uma cabeça, de um vermelho escuro, lembrava vagamente a de um cameleão, mas a fronte era tão levantada e a caixa craniana tão desenvolvida, que nenhum réptil jamais apresentou semelhantes particularidades. O equilíbrio vertical da sua face dava-lhe mais extraordinária semelhança com um ente humano. Dois olhos grandes e salientes se lhe projetavam das órbitas, à maneira dos de um cameleão, e de sob as pequenas narinas abria-se uma enorme boca de lábios córneos como as dos répteis. No lugar das orelhas havia dois enormes orifícios auditivos, para fora dos quais flutuavam numerosos filamentos de um vermelho de coral, lembrando os ouvidos das arraias muito novas e dos tubarões.

O que, porém, a sua face apresentava de humano não era a particularidade mais extraordinária que apresentava aquela criatura. Ela era bípede; tinha o corpo quase esférico, equilibrando-se em uma espécie de tripeça composta de duas pernas, como as das rãs, e uma longa cauda espessa; os membros superiores, que imitavam grotescamente os braços humanos, muito à maneira das rãs, eram munidas de um longo dardo ósseo guarnecido de cobre. A cor daquela criatura era variegada: a cabeça, as mãos e as pernas eram de cor de púrpura, mas a pele, que pendia flutuante, em volta do corpo, como se foram vestes, eram de um pardo fosforescente. Ficou parada ali, ofuscada pela claridade.

Por fim, aquele desconhecido habitante do abismo entreabriu a custo as pálpebras, abriu depois de todo os olhos; em seguida, levantando a mão acima deles, abriu também a boca e articulou, de modo perfeitamente humano, um grito que penetrou até mesmo o invólucro de aço e o acolchoado interior da esfera. Como um grito pode ser dado sem pulmão, Elstead não se preocupou em explicá-lo. A criatura saiu então da claridade, tornou a entrar no mistério tenebroso que o envolvia de um e outro lado, e, conquanto não a visse, Elstead sentiu que ela se dirigia para ele. Certo de que a luz é que a estava atraindo, interrompeu a corrente elétrica. Um momento após, ressoaram contra o aço pancadas surdas, e a esfera principiou a baloiçar.

Então se repetiu o grito, e pareceu-lhe que lhe correspondia um eco longínquo. Continuaram as pancadas surdas e a esfera tornou a baloiçar e ranger contra o eixo em que estava enrolada a corda. Ele ficou nas trevas, buscando sondar com a vista a eterna noite do abismo. Daí a pouco, principiou a ver erguerem-se contra ele, ainda indistintas e longínquas, outras formas fosforescentes e quase humanas.

Sem saber bem o que fazia, apalpou as paredes da sua prisão instável para procurar o botão do projetor elétrico exterior, mas, por inadvertência, carregou no da pequena lâmpada que alumiava a sua cabine acolchoada. A esfera relou e ele caiu. Nesse instante, ouviu como que uns gritos de surpresa, e, quando se levantou, viu dois olhos atentos que o observavam pelo postigo inferior e refletiam a claridade interior.

No mesmo momento, viu umas mãos que se agitavam vigorosamente contra o invólucro de aço e ouviu — impressão aliás suficientemente horrível na situação em que se achava — pancadas reiteradas sobre o invólucro de metal que protegia a mola do relógio. Ao ouvir isto, sentiu oprimir-lhe o peito uma angústia horrível; porque, se aqueles entes estranhos lograssem fazer parar o relógio, a sua salvação era impossível. Apenas pensou isso, a esfera principiou a baloiçar e pareceu-lhe que a parede se comprimia pesadamente contra os seus pés.

Então, apagou a pequena lâmpada interior e restabeleceu a corrente do refletor exterior. O fundo lodoso e as criaturas quase humanas tinham desaparecido, e passavam apressadamente por diante do postigo dois peixes, um em seguimento do outro.

Logo lhe ocorreu à mente que aqueles estranhos habitantes do mar tivessem cortado a corda e que a esfera estava agora sem governo. Ela subia cada vez mais rápida, depois parou bruscamente, fazendo-o ir de encontro à parede acolchoada que revestia a sua prisão. Durante cerca de meio minuto, impediu-o de refletir.

Então sentiu que a esfera girava lentamente em torno de si mesma, produzindo uma espécie de balanço, e pareceu-lhe também que avançava dentro d'água em direção horizontal. Abaixando-se contra o postigo, ele conseguiu com o seu peso restabelecer o equilíbrio e tornar a voltar para o fundo aquela parte da esfera; todavia, nada mais conseguiu ver senão o pálido brilho do seu refletor espancando inutilmente as trevas. Pensou, portanto, que lhe seria mais fácil ver sem a luz da lâmpada.

Teve razão neste ponto; pois, no fim de alguns minutos, as trevas aveludadas se transformaram em uma espécie de escuridão translúcida, e então, longínquos e tão pouco perceptíveis como a luz zodiacal de uma noite de verão, viu moverem-se por baixo dele. Supôs que aquelas criaturas tivessem desamarrado o cabo e o levavam agora a reboque ao longo do fundo do mar.

Então, para lá das ondulações da planície submarina, vaga e distante, ele viu um imenso horizonte de uma luminosidade muito desmaiada que se estendia de um e outro lado para tão longe quanto a sua janela lhe permitia avistar. Em direção a esse horizonte era impelido a reboque, tal um balão que conduzem da planície para a cidade. Aproximava-se dele vagarosamente, e muito lentamente, a vaga irradiação se ia definindo em lineamentos mais exatos.

Eram quase cinco horas quando finalmente alcançou aquela área luminosa; e, por esse mesmo tempo, ele pode distinguir uma espécie de disposição que sugeria a ideia de ruas e casas agrupadas em torno de um vasto edifício sem teto, que lembrava grotescamente uma abadia em ruínas. Tudo aquilo se estendia por baixo dele como um mapa. Tosas as casas eram recintos murados sem tetos, e sendo a sua substância, como viu mais tarde, formada de osso fosforescente, essa particularidade proporcionava ao lugar uma aparência de luar vindo do fundo para cima.

Entre as cavidades inferiores, vegetais crinoides estendiam os seus tentáculos, e grandes, esbeltas e frágeis esponjas surgiam como reluzentes minaretes, como lírios de luz membranosa, emergindo na claridade geral da grande cidade. Nos espaços abertos, ele podia avistar uma agitação como de bandos de pessoas, mas, como se achava muito acima, não podia distinguir separadamente as pessoas de que se compunham aqueles bandos. Então, lentamente, sentiu-se puxado para o fundo, e, à proporção que se adiantava, os detalhes dos lugares iam aparecendo mais claramente à sua vista. Reparou que as filas de construções nebulosas eram contornadas por linhas pontuadas de objetos redondos, e, também, que, em vários lugares, por baixo dele, em vastos espaços abertos, havia uns vultos semelhantes a carcaças de navio petrificadas.

Lenta e ininterruptamente ele descia, e os vultos por baixo dele se iam tornando mais brilhantes, mais claros e mais distintos. Levavam-no em direção do vasto edifício que ocupava o centro da cidade, e, de quando em quando, podia perceber a multidão de formas móveis que puxava pela corda. Ficou admirado de ver que um dos navios, que formava um dos traços principais do local, estava coberto de gente que gesticulava, olhando para ele, e depois, que as paredes do edifício subiam silenciosamente em volta dele e lhe ocultavam a vista da cidade.

As paredes eram de madeira endurecida pela água, de cabos de ferro entretecidos, de fragmentos de cobre e de ferro, de ossos e de crânios de náufragos. Os crânios bordavam as paredes do edifício em ziguezagues, em espirais e em curvas fantásticas. Nas suas órbitas vazias, e sobre toda a superfície das paredes brincavam e ocultavam-se uma multidão de pequenos peixes prateados. Inopinadamente entrou pelos ouvidos de Elstead um zumbido surdo, um rumor violento como o do som das trombetas, ao qual se seguiram, em breve, clamores fantásticos. A esfera continuava afundar; passando em frente de imensas janelas pontiagudas, através das quais ele avistava, ainda que vagamente, um grande número daquelas criaturas estranhas e fantasmagóricas que o observava. Por fim a esfera foi assentar, segundo lhe pareceu, sobre uma espécie de altar no centro do recinto.

Desde então, ele se achou em um nível que lhe permitia ver distintamente aqueles estranhos habitantes do abismo. Com grande surpresa sua, ele percebeu que se prostravam todos diante dele, exceto um, trajando, conforme lhe pareceu, uma veste de escamas superpostas e coroado de um diadema luminoso, e que se conservava de pé, abrindo e fechando alternadamente a sua boca de réptil, como se estivesse dirigindo os cânticos dos adoradores.

Um curioso impulso fez com que Elstead acendesse a lâmpada interior, de modo que ele se tornou visível aos habitantes do abismo, e aquela claridade os fez desaparecerem imediatamente na escuridão. A esta inesperada transformação, os cânticos foram substituídos por um tumulto de aclamações delirantes, e Elstead, preferindo observá-los, interrompeu a corrente e desapareceu diante deles. Mas durante um momento, ficou como cego e não pôde perceber o que eles faziam, e quando, enfim, os pode distinguir, estavam de novo ajoelhados. E assim continuaram, ficando a adorá-lo sem descanso nem tréguas durante três horas.

Elstead fez uma narrativa das mais circunstanciadas, relativamente àquela cidade admirável e àquelas criaturas que nunca viram, nem Sol, nem Lua, nem estrelas, nem vegetação verde, nem nenhum vivente do ar, que nada sabem do fogo, e não conhecem outra luz que não a claridade fosforescente de organismos vivos.

Por muito interessante que seja a sua história, mais interessante ainda é saber que homens de ciência, tão eminentes quanto Adams e Jenkins, nada de inacreditável encontram nela. Disseram-me eles que não viam razão alguma para que criaturas vertebradas, inteligentes e respirando a água, acostumadas a uma temperatura muito baixa, a uma pressão enorme e de tão pesada estrutura que, vivas ou mortas, não podem flutuar, que tais seres não possam viver no seio do mar profundo, desconhecidos de nós e, como nós, descendentes do grande Teriomorfo, da Idade da Terra Vermelha.

Todavia, eles devem conhecer-nos como criaturas estranhas e meteóricas, acostumadas a rolar, mortas por acidentes, através das misteriosas trevas do seu céu líquido, e não só nós, pessoalmente, senão também os nossos navios, os nossos metais, nossos aparelhos que chovem incessantemente na noite deles. De vez em quando, alguns objetos devem atingi-los, ao caírem, esmagá-los, como pelo julgamento de alguma potência superior, e outras, devem chegar até eles objetos de uma raridade e de uma utilidade inapreciáveis, ou de formas sugestivas e inspiradoras. Até certo ponto, é lícito admitir que a conduta deles à chegada de um homem vivo fosse a mesma que seria a de um povo bárbaro para com uma criatura luminosa e aureolada que aparecesse de repente no nosso céu, descendo para junto de nós.

É provável que Elstead houvesse uma outra vez completado aos oficiais do Ptarmigan todos os detalhes da sua estranha permanência de doze horas no abismo. É certo também que teve tenção de escrever a narração dela, mas nunca chegou a fazê-lo. E, pois, somos forçados, infelizmente, a coligir os fragmentos dispersos da sua história de acordo com as reminiscências do comandante Simmons, de Weybridge, de Steevens, de Lindley e dos outros. Podemos fazer uma ideia vaga, por meio de imagens fragmentárias, do imenso e lúgubre edifício, das pessoas cantando ajoelhadas com as suas cabeças de cameleão, e suas roupas levemente luminosas; parece-nos também ver Elstead, tentando fazer-lhes compreender que era preciso desamarrar a corda que prendia a esfera. Os minutos passavam um a um, e Elstead, consultando o relógio, conheceu com terror que só tinha oxigênio para quatro horas. Mas continuavam os cânticos em sua honra, cânticos esses que lhe pareceram tão impiedosos como se fossem o hino fúnebre da sua morte próxima.

Ele nunca pode compreender o modo por que se salvou, mas, a julgar pela extremidade da corda que ficara amarrada à esfera, ela devia ter sido cortada em virtude do atrito constante contra a borda do altar. De repente, a esfera soltou-se e ele partiu, como de um salto para longe daquele mundo, como uma criatura etérea envolvida no vácuo atravessaria a nossa atmosfera para voltar ao seu éter natal. Ele devia ter desaparecido aos olhos daqueles entes como sobe ao ar uma bolha de hidrogênio. E aquela sua ascensão lhes devia ter parecido assaz singular.

A esfera subia com velocidade ainda maior do que à descida, porquanto, então, se achava mais pesada, em consequência dos pesos de chumbo, e tornou-se excessivamente quente. Subia com os postigos voltados para cima, e Elstead lembrava-se da torrente de bolhas que se batiam contra o vidro, esperando ele, a cada instante, vê-lo fazer-se em pedaços. Repentinamente, qualquer coisa semelhante a uma roda imensa principiou a girar-lhe dentro da cabeça, o compartimento acolchoado pôs-se a rodar em torno dele e Elstead perdeu os sentidos. Depois disso, de nada mais se recorda até o momento em que voltou a si no camarote de bordo e ouviu a voz do médico.

Tal é a substância da extraordinária história que Elstead contou por fragmentos aos oficiais do Ptarmigan. Tencionara ele escrevê-la mais tarde, mas tinha o espírito preocupado, sobretudo com as reformas a fazer no seu aparelho, reformas essas que foram efetuadas no Rio.

Resta-nos simplesmente dizer que, a 2 de fevereiro de 1896, ele realizou a segunda descida ao abismo do oceano, com os aperfeiçoamentos que lhe tinha sugerido a sua primeira experiência. Talvez nunca se saiba o que aconteceu. Ele não regressou. Ptarmigan bordejou em volta do ponto em que ele submergiu, buscando-a debalde durante treze dias. Depois voltou ao Rio e a notícia foi transmitida a todos os seus amigos. E o caso termina aqui, por enquanto. É, porém, muito pouco provável que se faça nova tentativa para verificar essa esquisita história de cidades, até aqui desconhecidas, existindo no abismo dos mares.


Fonte:

Contos de Terror https://www.contosdeterror.site/2024/02/no-abismo-conto-classico-de-ficcao.html

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