Um Romance Não Escrito - Conto de Virginia Woolf | Fantástica Cultural

Artigo Um Romance Não Escrito - Conto de Virginia Woolf
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Um Romance Não Escrito - Conto de Virginia Woolf

Autores Selecionados ⋅ 16 maio 2024
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"Desconhecidas figuras! Quem são vocês? Por que andam rua abaixo? Onde vão dormir esta noite, e amanhã?"

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Uma tal expressão de infelicidade era bastante em si mesma para fazer o olhar deslizar pela beira do papel até o rosto da pobre mulher — insignificante sem aquela expressão, quase um símbolo do destino humano com ela. A vida é o que você vê nos olhos dos outros; a vida é o que as pessoas aprendem e, tendo aprendido, nunca, embora o tentem esconder, deixam de estar conscientes de — do quê? De que a vida é assim, ao que parece. Cinco rostos opostos — cinco rostos maduros — e o conhecimento em cada um. Por estranho que seja, como as pessoas querem disfarçar isso! Em todos esses rostos há sinais de reticência: boca fechada, olhos sombrios, cada um dos cinco fazendo alguma coisa para ocultar ou estultificar seu conhecimento. Um fuma; outro lê; um terceiro confere anotações numa agenda; um quarto estuda o mapa da linha pendurado defronte; e o quinto — o que há de terrível em relação ao quinto é que ela não faz absolutamente nada. Fica vendo a vida. Ah, minha pobre, infeliz mulher, não deixe de entrar no jogo — e, em atenção a todos nós, disfarce bem!

Ela olhou para cima, como se tivesse me ouvido, mexeu-se ligeiramente no assento e suspirou. Parecia desculpar-se e ao mesmo tempo dizer-me: "Ah, se você soubesse!" Depois voltou a olhar para a vida. "Bem que eu sei", respondi em silêncio, dando uma olhada no Times para manter as aparências: "Eu sei de tudo. 'Paz entre Alemanha e potências aliadas declarada oficialmente ontem em Paris — Signor Nitti, o primeiro-ministro italiano — um trem de passageiros colidiu em Doncaster com um trem de carga...' Todos nós sabemos — The Times sabe — mas fingimos não saber". Meus olhos tinham se arrastado de novo pela beirada do papel. Ela estremeceu, virou um braço para trás que estranhamente levou até o meio das costas e balançou a cabeça. Mergulhei novamente no meu grande reservatório de vida. "Pegue o que você gosta", prossegui, "nascimentos, casamentos, mortes, notícias da corte, os hábitos das aves, Leonardo da Vinci, o crime de Sandhills, altos salários e o custo de vida — sim, o que você gosta", repeti, "está tudo aqui no Times!" De novo e com infinito cansaço ela moveu de lado a lado a cabeça, até que essa, como uma tampa que ao ser girada se exaure, fosse encaixar-se em seu pescoço.

The Times não era proteção adequada contra um tal sofrimento como o dela. Mas outros seres humanos impediam a comunicação. Contra a vida, nada melhor do que dobrar o jornal para fazê-lo um quadrado crespo, grosso, perfeito, impérvio até à própria vida. Feito isso, dei uma rápida olhada para cima, armada de meu escudo. Mas através do escudo ela me viu; ela me olhou nos olhos, como que procurando, bem lá no fundo, um sedimento de coragem que umedecia em barro. Sua simples postura negava toda esperança, desconsiderava ilusões.

Fomos assim aos solavancos por Surrey para depois da divisa entrar em Sussex. Mas eu, de olhos fitos na vida, não vi que os outros passageiros tinham saltado, um por um, até que, a não ser pelo homem que estava lendo, nós ficamos sozinhas. Chegamos à estação Three Bridges. Passamos lentamente pela plataforma e paramos. Iria ele descer? Rezei para que sim e que não — e finalmente pedi que ele ficasse. Nesse instante ele se levantou, embolou com desprezo seu jornal, como coisa já liquidada, abriu a porta de arranco e nos deixou a sós.

A infeliz mulher, inclinando-se um pouco para a frente, pálida e descoloridamente se dirigiu a mim — falou de estações e feriados, de irmãos em Eastbourne, da época do ano que, se era cedo ou tarde, já nem lembro. Mas olhando por fim pela janela e vendo, como eu sabia, somente a vida, ela tomou fôlego. "E o pior de tudo — é ficar fora de casa —". Ah, agora a catástrofe se aproximava, "Minha cunhada" — o azedume de seu tom era como limão em aço frio, e falando, não para mim, mas para si mesma, ela resmungou: "Ela diria que é bobagem — é isso que todos dizem", e enquanto ia falando se repuxava toda, como se a pele de suas costas fosse igual à de uma galinha depenada na vitrine do açougue.

"Oh, aquela vaca!", ela exclamou nervosamente, como se a grande vaca estatelada no pasto a tivesse chocado e livrado de alguma indiscrição. Depois ela tremeu, e depois de tremer fez o desajeitado movimento angular que eu já tinha visto, como se, após o espasmo, algum ponto entre os ombros lhe coçasse ou ardesse. Depois voltou a parecer a mais infeliz mulher do mundo, e eu, mais uma vez, a censurei, se bem que não com a mesma convicção, pois se houvesse uma razão, e se eu soubesse a razão, o estigma estaria removido da vida.

"Cunhadas", disse eu...

Seus lábios se contraíram, como se fossem cuspir veneno na palavra; e contraídos ficaram. Tudo o que ela fez foi apanhar sua luva para esfregá-la com força num ponto da vidraça. Esfregou-a como se quisesse fazer sumir para sempre alguma coisa — alguma mancha, alguma contaminação indelével. De fato, a mancha lá continuou, malgrado toda sua esfregação, e novamente ela afundou entortando o braço e tremendo, como eu já esperava. Algo impeliu-me a apanhar minha luva para esfregar na minha janela, onde também havia uma manchinha no vidro. A qual, malgrado minha esfregação, lá continuou. E o espasmo então veio por dentro de mim; curvei meu braço e cocei no meio das costas. Minha pele, também, era como a das galinhas, muito úmida, na vitrine do açougueiro; um ponto entre meus ombros coçava e irritava, parecia melado, parecia em carne viva. Será que eu conseguiria alcançá-lo? Tentei-o subrepticiamente. Ela me viu. Um sorriso de infinita ironia, de infinito sofrimento, perpassou-lhe pela face e sumiu. Mas ela havia comunicado, partilhado seu segredo, transmitido seu veneno; não iria mais falar. Recostando-me em meu canto, protegendo dos olhos dela os meus olhos, vendo somente as subidas e os vales, os cinza e os púrpuras, da paisagem de inverno, li sua mensagem, decifrei seu segredo, lendo-a sob seu olhar fixo.

A cunhada é Hilda. Hilda? Hilda? Hilda Marsh — a exuberante Hilda, a peituda, a matrona. Hilda já está à porta quando o cabriolé se aproxima, com dinheiro na mão. "Pobre Minnie, mais do que nunca está parecendo um gafanhoto — com a mesma capa que já estava no ano passado. Mas é isso, com dois filhos, nos tempos que correm, não se pode fazer mais. Não, Minnie. Eu entendo; o do senhor, seu cocheiro — não me venha com nenhuma das suas — aqui está. Vamos lá, Minnie. Oh, eu podia até carregar você, quanto mais a sua cesta!" Entram assim na sala de jantar. "Crianças, a tia Minnie."

Garfos e facas afundam lentamente na vertical. Descem os dois (Bob e Barbara), esticando bem as mãos; e voltam para suas cadeiras, olhando-se enquanto retomam as bocadas. [Isso porém vamos pular; adornos, cortinas, prato de porcelana em forma de trevo, retângulos amarelos de queijo, biscoitos brancos quadrados — vamos pular — mas espere aí! Bem no meio do almoço uma tremedeira daquelas; Bob olha para ela, de colher na boca. "Acabe logo a sobremesa, Bob"; mas Hilda desaprova. "Que ideia é esta de se coçar?" Vamos pular, pular, até chegarmos ao patamar do andar de cima; escada presa com latão; linóleo gasto; oh, sim! o quartinho que dá para os telhados de Eastbourne — telhados ziguezagueantes como as espinhas das lagartas, para lá e para cá, riscados de amarelo e vermelho, feitos de ardósia preta azulada.] Agora, Minnie, a porta está fechada; Hilda desce pesadamente ao porão; você desata as alças da cesta, estende na cama a magra camisola, põe lado a lado os chinelos peludos de feltro. O espelho — não, o espelho você evita. Certa metódica disposição dos grampos de chapéu. Talvez haja alguma coisa na caixinha de conchas. Você balança para ver; é o botão de madrepérola que no ano passado já estava lá — e é tudo. Depois, sentando perto da janela, suspirar e fungar. Três horas de uma tarde em dezembro; a chuva fina; uma luz baixa na claraboia de uma loja de tecidos; outra alta num quarto de empregada — a qual se apaga. Com isso ela não tem o que olhar. Um momento em branco — e depois, em que é que você está pensando? (Eu, do outro lado, vou poder espiá-la; ela está dormindo ou está fingindo que dorme; no que haveria então de pensar, sentando-se à janela às três da tarde? Em saúde, dinheiro, contas; em seu Deus?) Sim, sentando-se bem na beira da cadeira, a contemplar os telhados de Eastbourne, Minnie Marsh reza a Deus. E está tudo muito bem; e ela também pode esfregar a vidraça, como que para ver melhor a Deus; mas que Deus ela vê? Quem é o Deus de Minnie Marsh, o Deus das vielas de Eastbourne, o Deus das três horas da tarde? Eu também vejo telhados, vejo céu; mas esse modo de ver Deuses — mais como o presidente Kruger do que como o príncipe Albert — é o que de melhor posso fazer por ele; vejo-o numa cadeira, de sobrecasaca negra, também não tão alta; posso até arranjar algumas nuvens que lhe sirvam de assento; arrastando-se entre elas, sua mão aí empunha um cajado, ou será um bastão de comando? — preto, grosso, espinhento — um velho e brutal tirano — o Deus de Minnie! Foi ele que mandou a coceira e a tremedeira e a mancha? É por isso que ela reza? É a mancha do pecado que ela limpa no vidro. Oh, ela cometeu algum crime!

Quanto aos crimes, posso escolher. Voam, passam arvoredos — campânulas florescem no verão; naquela clareira lá, quando chega a primavera, florescem prímulas. Foi num adeus, não foi, há vinte anos? Promessas quebradas? Não por Minnie!... Ela foi fiel. Como ela cuidou da mãe dela! Todas as suas economias em lápides — coroas em vidro — narcisos em jarras. Mas eu estou fugindo do assunto. Um crime... Eles diriam que ela segurou sua dor, reprimiu seu segredo — seu sexo, diriam eles — o pessoal da ciência. Mas que bobagem, botar nesta mulher os arreios do sexo. Não — mais do mesmo. Descendo pelas ruas de Croydon há vinte anos, voltas de fita violeta que cintilam à luz elétrica na vitrine da loja de tecidos vão atrair seu olhar. Ela se atarda — passa das seis. Correndo ainda pode chegar em casa. Ela entra pela porta de vaivém de vidro. É época de liquidação. Bandejas rasas transbordam de fitas. Ela faz uma pausa, pega uma, passa os dedos por outra com rosas em relevo por cima — mas não tem de escolher, não precisa comprar, e cada bandeja traz suas surpresas. "Só fechamos às sete", e aí já são sete. Ela corre, vai correndo, chega em casa, mas é tarde demais. Vizinhos — o médico — irmão pequeno — a chaleira — queimado — hospital — morto — ou apenas o choque, a culpa? Ah, mas os detalhes não importam! O que importa é o que vai com ela; a mancha, o crime, a coisa a expiar, sempre lá entre os seus ombros. "Sim", ela parece me dizer com a cabeça, "é a coisa que eu fiz".

Se fez ou não fez, ou o que foi que você fez, não me interessa; não é isso que eu quero. As voltas de violeta na vitrine da loja — isso sim; um pouco fácil talvez, um pouco lugar-comum — quando se tem tal sortimento de crimes, se bem que muitos (deixem-me dar outra espiada — dormindo ainda, ou fingindo que dorme! branca, de boca fechada, exausta — com um toque de obstinação, mais do que se pensaria encontrar — e nenhum sinal de sexo) — muitos crimes porém não são o seu; o seu crime foi banal; só a punição é solene; pois que agora a porta da igreja se abre, o banco duro de madeira a recebe; nos ladrilhos do chão ela se ajoelha; e todos os dias, verão e inverno, bem de tarde e muito cedo (como agora), reza. Seus pecados caem todos, caem, caem para sempre. Mas a mancha os recebe. Vermelha, protuberante, ardente. Depois ela começa a se coçar. Criancinhas apontam. "Bob hoje no almoço" — Mas o pior são as velhas.

Você agora de fato não pode continuar aí rezando. Kruger afundou sob as nuvens — como que encoberto pelo cinza líquido de um pincel de pintor, ao que ele acrescenta um toque de preto — e até a ponta do bastão sumiu agora. É o que sempre acontece! Basta você o ver, basta senti-lo, para que venha alguém interromper. Agora é Hilda.

Como você a odeia! Ela é bem capaz de deixar a porta do banheiro trancada a noite toda, e o que você quer é só água fria, às vezes, quando era uma noite ruim, parece que adiantava lavar. No café da manhã tem John — as crianças — o pior são as refeições, e há amigos às vezes — as samambaias não dão para escondê-los — eles adivinham também; você então sai andando pela beira-mar, onde as ondas são cinzentas, e os papéis voam, e o vento bate nas cabines verdes de vidro, e se alugam cadeiras por dois pence — é muito — pois deve haver pregadores pela praia. Ah, este é negro — este é um homem gozado — este é um homem com periquitos — coitados dos bichos! Não tem ninguém pensando em Deus por aqui? — bem ali, no cais flutuante, com seu bastão — mas não — não existe nada a não ser o cinza no céu ou, se o céu estiver azul, as nuvens brancas o ocultam, e a música — é música militar — e para que eles estão pescando? Pescam alguma coisa? Como as crianças olham! Bem, bem, então casa, caminho de volta — "Caminho de volta para casa". As palavras têm significado; poderiam ter sido ditas pelo velho barbudo — não, não, na realidade ele não falou; mas tudo tem significado — avisos pendurados na entrada das casas — nomes por cima de vitrines de lojas — fruta vermelha em cestas — cabeças de mulher em cabeleireiros — tudo diz "Minnie Marsh!" Mas aqui há uma contração. "Os ovos são mais baratos!" É o que sempre acontece! Lá ia eu a levá-la pela cachoeira, direto para a loucura, quando, como um bando de carneiros de sonho, ela se vira do outro lado e escorre entre os meus dedos. Ovos são mais baratos. Levada às últimas nas costas do mundo, nenhum dos crimes, padecimentos, rapsódias ou insanidades para Minnie Marsh; nunca atrasada para o almoço; nunca surpreendida por um temporal sem sua capa; nunca totalmente inconsciente da barateza dos ovos. E assim ela chega em casa — limpando as botas.

Eu a li direito? Mas a face humana — a face humana no topo da mais cheia folha de impressão contém mais, comporta mais. Agora, de olhos abertos, ela olha para fora; e no olho humano — como é mesmo que o definem? — há uma quebra — uma divisão — quando você vê o galho, assim, a borboleta já voou — a mariposa que paira à tardinha sobre a flor amarela — mova, levante sua mão, bem longe, bem alto. Pois não levantarei minha mão. Pare então e não pare de tremer, ó vida, alma, espírito, ó você qualquer coisa de Minnie Marsh — como eu em minha flor — o falcão na chapada — sozinha, ou de que valeria a vida? Pular da cama; ficar quieta de tardinha, ao meio-dia; ficar quieta na chapada. A mão que esvoaça — que vai, que sobe! e depois volta à indecisão. Sozinha sem ser vista; vendo tudo tão tranquilo lá em baixo, tão agradável. E ninguém vendo, ninguém ligando. Os olhos dos outros nossas prisões; seus pensamentos nossas gaiolas. Ar em cima, ar embaixo. E a lua e a imortalidade... Oh, mas eu dei um tropeção. E você aí no canto — mulher — como é mesmo seu nome, Minnie Marsh, um nome assim, não é? Você também levou um tombo? Lá está ela, agarrada à sua flor; abrindo sua bolsa de mão, da qual tira uma casca vazia — um ovo — quem estava dizendo que os ovos são mais baratos? Você ou eu? Oh, foi você que disse isso, a caminho de casa, lembra, quando o senhor idoso, abrindo de repente seu guarda-chuva — ou espirrando? Fosse como fosse, Kruger se foi, e você veio pelo "caminho de volta para casa" e limpou suas botas. E agora você estende nos joelhos um lenço no qual deixa cair pequenos e angulosos fragmentos de casca de ovo — fragmentos de um mapa — um quebra-cabeça. Bem que eu gostaria de conseguir juntá-los! Se ao menos você parasse quieta. Ela porém já afastou os joelhos — o mapa está de novo em pedaços. Pelas encostas dos Andes os blocos brancos de mármore vão saltando e ferindo, esmagando até a morte toda uma tropa de carregadores espanhóis, com sua escolta — o butim de Drake, ouro e prata. Mas, para voltar...

A quê? Aonde? Ela abriu a porta e, pendurando sua sombrinha na entrada — isso nem precisa dizer: nem, também, o cheiro de carne que subia do porão; ponto, ponto, ponto. Mas o que eu não posso eliminar assim, o que devo atacar e dispersar, cabeça baixa, olhos fechados, com a coragem de um batalhão e a cegueira de um touro, são, indubitavelmente, as figuras por trás das samambaias, os caixeiros-viajantes. Ali os deixei todo esse tempo ocultos, na esperança de que pudessem desaparecer, ou melhor, emergir ainda, como de fato deverão fazer, se o conto continuar acumulando rotundidade e riqueza, destino e tragédia, como cabe aos contos, arrastando consigo dois, senão três, caixeiros-viajantes e uma touceira de aspidistra. "As folhas da aspidistra só encobriam uma parte do caixeiro-viajante..." Os rododendros o encobririam todo, e me dê nessa troca minha dose de vermelho e branco, pela qual me empenho e definho; mas rododendros em Eastbourne — em dezembro — e na mesa dos Marshes — não, não, eu não me atrevo; tudo é uma questão de cascas e frascos, de samambaias e babados. Mais tarde talvez haja um momento à beira-mar. Sinto além disso, quando agradavelmente me empino pela treliça verde e por cima do glaciz de vidro cortado, um desejo de espiar e espreitar o homem do outro lado — sendo esse o único que eu consigo ver. É James Moggridge, que os Marshes chamam de Jimmy? [Espero que você prometa não se coçar, Minnie, enquanto eu não tiver resolvido isso.] James Moggridge viaja vendendo — botões, vamos dizer? — mas ainda não está na época de trazer de todos — os grandes, os pequenos em grandes cartelas, os de olho de pavão, os de ouro fosco; há uns que parecem montes de pedras, outros, espumas de coral — mas a época, como eu digo, ainda não chegou. Ele viaja e, na quinta-feira, que é o seu dia em Eastbourne, vai fazer suas refeições com os Marshes. Seu rosto vermelho, seus olhinhos sempre fixos — porém jamais vulgares de todo — seu enorme apetite (isso é certo; ele não olha para Minnie antes de o pão bem encharcado secar o molho), guardanapo dobrado em diamante no peito — mas isso é primitivo e, cause o que causar ao leitor, não creia em mim. Vamos seguir para a própria casa da família Moggridge, vamos pô-la na ação. Lá, as botas de todos são remendadas, aos domingos, pelo próprio James, que lê Truth. Mas qual é sua paixão? Rosas — e sua esposa, enfermeira de hospital aposentada — interessante — pelo amor de Deus, deixe-me ter uma mulher com um nome do qual eu goste! Mas não; ela é um dos filhos em gestação da mente, ilícito, nem por isso menos amado, como os meus rododendros. Em cada romance escrito, quantos morrem — os melhores, os mais queridos, enquanto Moggridge vive. Culpa da vida. Aqui está Minnie, comendo seu ovo no momento oposto e na outra extremidade da linha — já passamos de Lewes? — Jimmy deve estar lá — ou por que ela se contorce?

Lá deve estar Moggridge — culpa da vida. A vida impõe suas leis; a vida barra a passagem; há vida por trás da samambaia; a vida é um tirano; oh, mas não a dona do pedaço! Não, pois lhe garanto que vim por minha livre vontade; vim perseguida sabe Deus por qual compulsão por samambaias e frascos, mesa cheia de borrões e garrafas imundas. Vim irresistivelmente para alojar-me nalgum lugar da carne firme, da espinha rija, algum lugar em que eu possa penetrar ou tomar pé da pessoa, da alma, do homem Moggridge. A enorme estabilidade do arcabouço; a espinha como um osso de baleia, reta que nem um pé de carvalho; as costelas que são galhos lançados; a pele de lona muito bem esticada; as vermelhas reentrâncias; a sucção e regurgitação do coração; enquanto a carne cai do alto em cubos marrons e a cerveja escorre para espumar em sangue de novo — e assim chegamos aos olhos. Que estão vendo uma coisa, por trás da aspidistra: preta, branca, desalentadora; agora outra vez o prato; que por trás da aspidistra estão vendo uma mulher idosa; "A irmã de Marsh. Hilda é mais o meu tipo"; e a toalha da mesa agora. "Marsh saberia o que há de errado com os Morrises..." falam disso; chega o queijo; outra vez o prato; vira-o ao contrário — dedos enormes; agora a mulher do outro lado. "A irmã de Marsh — nem um pouco como Marsh; uma velha muito infeliz... Você devia era ir cuidar das galinhas... Em nome de Deus, por que é que ela está se contorcendo assim? Não foi o que eu disse? Meu Deus, meu Deus, essas velhotas! Santo Deus!"

[Sim, Minnie; sei que você teve uma contração, mas um momento — James Moggridge.]

"Meu Deus, meu Deus!" Que bonito é o som! como a pancada de um malho em madeira bem seca, como a batida do coração de um baleeiro antigo quando o mar engrossa e o verde se anuvia. "Meu Deus, meu Deus!" Que sino tangente para acalmar e consolar a alma dos que se irritam e colocá-los em linha, dizendo: "Adeus, amigos, boa sorte!" e depois: "Querem alguma coisa?" pois se bem que Moggridge fosse capaz de colher uma rosa para ela, isto está feito e acabado. E agora então o que é que vem? "Madame, vai perder seu trem", porque eles não perdem tempo.

Isto é o jeito de homem; isto é o som que reverbera; isto é a basílica de São Paulo e os ônibus a motor. E nós para limpar as migalhas. Oh, Moggridge, você então não vai ficar? Tem de sair? Vai passar por Eastbourne hoje à tarde num desses coches apertados? É você que aí vai emparedado numa caixa de papelão verde, você que às vezes puxa a cortina, que às vezes se senta bem solene para olhar fixamente como uma esfinge, sempre com um toque sepulcral na aparência, com alguma coisa de agente funerário, de caixão, de lusco-fusco em cavalo e cavaleiro? Diga-me — mas as portas bateram. Nunca iremos nos encontrar novamente. Adeus, Moggridge!

Sim, sim, já estou indo. Subindo para o alto da casa. Vou ficar um momento lá. Como entra lama na cabeça e rola — que remoinho esses monstros deixam, as águas agitadas, as moitas que ondulam, aqui verdes, além negras, até baterem na areia, até que os átomos gradualmente se reagrupam, a jazida se depura e o que se vê pelos olhos vem claro e calmo de novo, vindo aos lábios uma espécie de prece pelos que partiram, de obséquias pelas almas das pessoas com as quais trocamos algum sinal de cabeça, e que nunca voltaremos a ver.

Agora James Moggridge está morto, foi-se para sempre. Pois bem, Minnie — "Não aguento mais isso". Se ela disse tal frase — (Deixem-me dar uma olhada nela, que varre a casca de ovo para os declives mais fundos). Com certeza que disse, encostada na parede do quarto e brincando com as bolinhas que orlam a cortina cor de clarete. Mas quando o eu fala com o eu, quem é que fala? — a alma sepulta, o espírito empurrado para dentro, cada vez mais para dentro da catacumba central; o eu que tomou véus e abandonou o mundo — um covarde talvez, contudo belo de algum modo, quando em seu desassossego perpassa de lampião na mão, a subir e descer nos corredores escuros. "Não consigo suportar mais isso", diz o espírito dela. "Aquele homem no almoço — Hilda — as crianças." Oh, céus, seu soluço! É o espírito a deplorar o próprio destino, o espírito impelido de um lado para o outro, que ora se aloja nos tapetes que encolhem — pontos de apoio instáveis — minguados frangalhos de todo o evanescente universo — amor, vida, fé, marido, filhos, não sei que pompas e esplendores reluziam na vida de menina. "Não para mim — não para mim."

Mas aí — os bolinhos, o cachorro velho e careca? Esteiras de contas, imagino eu, e a consolação da roupa de baixo. Se Minnie Marsh fosse atropelada e levada ao hospital, as enfermeiras e até os médicos exclamariam... Há a vista e a visão — há a distância — há no fim da alameda a mancha azul, ao passo que o chá, afinal de contas, é ótimo, o bolinho está quente e o cachorro — "Benny, já para a sua cesta, ouviu, e olhe o que a mamãe trouxe para você!" Assim, tirando a luva que está com o polegar puído, desafiando mais uma vez o espírito abusivo e maligno que a obriga a tapar furos, você renova as fortificações, cosendo com a lã cinzenta, passando-a para lá, para cá.

Passando-a para cá e para lá, de través e por cima, tecendo uma teia pela qual Deus em pessoa — não, não pense em Deus! Como os pontos estão firmes! Você deve estar orgulhosa da sua obra. Que nada a incomode. Que a luz caia mansamente, que as nuvens mostrem vestes íntimas da cor do primeiro verde das folhas. Que o pardal pouse no galho e derrube a gota de chuva pendurada no ponto em que o galho entorta... Por que olhar para cima? Foi um som, uma ideia? Oh, meu Deus! De novo à coisa que você fez, à bandeja com as fitas violeta? Mas Hilda virá. Ignomínias, humilhações, oh! Feche a brecha.

Tendo remendado sua luva, Minnie Marsh vai guardá-la na cômoda. Fecha com decisão a gaveta. Vejo-lhe o rosto de relance no espelho. O queixo está bem erguido. Os lábios, repuxados. Ela amarra, a seguir, os sapatos. Depois toca na garganta. Que broche usa? O de folha ou o em forquilha? E o que é que está acontecendo? A não ser que eu esteja muito enganada, o pulso se acelerou, o momento está chegando, as linhas disparam, Niágara à frente! É a crise! Que Deus lhe acompanhe! Lá vai ela descendo. Coragem, coragem! Não a deixe de enfrentar, torne-se nela! Pelo amor de Deus não fique esperando aí a passar mal agora! Olhe a porta! Eu estou do seu lado. Fale! Confronte-a, confunda-lhe a alma!

"Oh, desculpe-me! Sim, é aqui Eastbourne. Vou pegar para a senhora. Deixe que eu pego pela alça." [Mas, Minnie, apesar de mantermos as aparências, eu li você direitinho — e estou com você agora.]

"É toda sua bagagem?"

"Com certeza, obrigada."

(Mas por que você olha à sua volta? Hilda não virá à estação, nem John; e Moggridge está num coche pelos confins de Eastbourne.)

"Vou esperar junto da mala, madame, é mais seguro. Ele disse que vinha me esperar. Ah, olhe ele ali! É o meu filho."

E juntos lá se vão eles.

Bem, mas estou confusa. Sem dúvida, Minnie, você sabe melhor que eu! Um rapaz estranho... Pare! Eu mesma direi a ele — Minnie! Miss Marsh! — apesar de eu não saber. Tem uma coisa esquisita no casaco dela, quando o vento o levanta. Oh, não, não é verdade, mas que indecência... Veja como ela se inclina quando eles chegam ao portão de saída. Ela achou a passagem. Qual é a graça? E lado a lado eles vão descendo a estrada, depois que saem... Bem, meu mundo caiu! No que me apoio? Que é que eu sei? Esta aí não é Minnie. Nunca houve Moggridge. Quem sou eu? A vida nua, no osso.

No entanto uma última olhada neles — ele a descer do meio-fio e ela a segui-lo pela beira do grande prédio enchem-me de espanto — me inundam de novo. Desconhecidas figuras! Mãe e filho. Quem são vocês? Por que andam rua abaixo? Onde vão dormir esta noite, e depois, amanhã? Oh, como isso cresce e rola — me revigora, me faz flutuar! É deles que eu parto. As pessoas me levam por aqui ou por lá. A luz branca respinga, escorre. As janelas espelham. Cravos; crisântemos. Hera em jardins escuros. Leite entregue na porta. Aonde quer que eu vá, desconhecidas figuras, vejo vocês dobrando a esquina, mães e filhos; vocês, vocês, sempre vocês. Às pressas, vou atrás. Imagino que aqui já seja o mar. É cinzenta a paisagem; cinzenta e fosca como a cinza; a água mexe e murmura. Se eu cair de joelhos, se eu passar pelo ritual, com os antigos trejeitos, são vocês, ignotas figuras, são vocês que eu adoro; se abro os braços, são vocês que eu recebo, é você que eu puxo para mim — mundo adorável.

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