O Quarteto de Cordas - Conto de Virginia Woolf | Fantástica Cultural

Artigo O Quarteto de Cordas - Conto de Virginia Woolf
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O Quarteto de Cordas - Conto de Virginia Woolf

Autores Selecionados ⋅ 16 maio 2024
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"Isto é do jovem Mozart... Mas a melodia, como todas as melodias dele, leva ao desespero - ou melhor, à esperança. Que quero dizer? Quero dançar, rir, comer bolos cor-de-rosa, beber vinho suave ou forte."

Quarteto de Cordas, Arte de John Copley
Quarteto de Cordas, Arte de John Copley

Bem, cá estamos, e se você correr os olhos pela sala verá que bondes, metrôs e ônibus, não poucas carruagens particulares e até, ouso crer, landaus puxados por cavalos baios participaram de tudo, trançando fios de uma à outra extremidade de Londres. No entanto, começo a ter minhas dúvidas...

Se de fato for verdade, como estão dizendo, que a Regent Street está fervilhando, que o Tratado foi assinado, que para a época do ano o tempo não está frio, que nem por muito de aluguel se arranja apartamento e que o pior da gripe são as consequências; se me ocorre pensar ter esquecido de escrever sobre a goteira na despensa, e que deixei minha luva no trem; se os laços de sangue mandam-me, a mim que me dobro à frente, aceitar cordialmente a mão que se oferece talvez com hesitação...

"Há sete anos não nos víamos."

"A última vez foi em Veneza."

"E onde você está morando agora?"

"Bem, para mim é melhor no fim da tarde, se bem que, se não fosse pedir muito..."

"Mas eu logo a reconheci."

"É, a guerra abriu uma brecha..."

Se é a mente varada por tais insignificantes flechinhas, e se — pois que a tanto compele a sociedade humana — assim que uma é disparada, já outra pressiona à frente; se isso gera calor e se, em acréscimo, acenderam a luz elétrica; se dizer uma coisa, em tantos casos, deixa por trás uma necessidade de rever, de melhorar, revolvendo além do mais nos lamentos, prazeres, vaidades, desejos — se são todos os fatos a que me refiro, os chapéus, os boás de pele, as casacas dos cavalheiros e os alfinetes de gravata de pérola que vêm à superfície — qual é a chance?

De quê? A cada minuto se torna mais difícil dizer por que, a despeito de tudo, sento-me aqui acreditando que agora eu não posso dizer de quê, nem mesmo me lembrar da última vez em que isso aconteceu. "Você viu o desfile?"

"O rei parecia tão frio."

"Não, não, não. Mas o que era mesmo, hein?"

"Ela comprou uma casa em Malmesbury."

"Que sorte, achar uma!"

A mim, pelo contrário, parece mais que certo ela estar, seja ela quem for, é desgraçada, já que é tudo uma questão de casotas e chapéus e gaivotas, ou assim parece ser para a centena de pessoas bem-vestidas, emparedadas, empelicadas, repletas que aqui tomaram assento. Não que eu possa me gabar, pois também passivamente me sento numa poltrona dourada, e apenas reviro a terra, como fazemos todos nós, sobre uma memória sepulta, pois há sinais, se não me engano, de que todos estamos lembrando de uma coisa, furtivamente à procura de uma coisa. Por que se inquietar? Por que tanta ansiedade sobre o acerto das roupas; das luvas — desabotoá-las ou não? Observe a seguir o rosto idoso, em destaque na tela escura, há um momento cortês e enrubescendo; agora triste e taciturno, como que na sombra. Era o som do segundo violino a se afinar na antessala? Aí vêm eles; quatro negras figuras com instrumentos, que se sentam de frente para os quadrados brancos sob a torrente de luz; pousam as pontas de seus arcos na estante de música; com um movimento simultâneo os levantam; bem de leve os mantêm em suspensão e, olhando para o instrumentista à sua frente, o primeiro violino conta um, dois, três...

Que floresça a primavera, que o broto nasça! Há uma pereira no alto da montanha. Jorram fontes; caem gotas. O Ródano porém corre profundo e célere, precipita-se por sob as arcadas e arrasta as folhas que boiavam sobrando, lançando sombras nos peixes prateados, nos peixes malhados impelidos ao fundo pelas águas velozes e ora puxados por um redemoinho para — como é difícil isto — a conglomeração de todos num poço; peixes que saltam, que espadanam, que afiam suas nadadeiras cortantes; e tal a agitação da corrente que os seixos amarelos rolados vão se tornando cada vez mais redondos, roliços, rotundos — livres agora, quando se precipitam ao fundo, ou mesmo ascendem de algum modo no ar em espirais primorosas; que se enrolam, como aparas tiradas por uma plaina; e não param de subir... Como é bela a bondade em quem, pisando de leve, passa sorrindo pelo mundo! E também em velhas e animadas peixeiras que se agacham debaixo das arcadas, pândegas e obscenas velhotas que, ao andarem de um lado para outro, hum, ah!, riem às gargalhadas, sacudindo-se a mais não poder.

"Isto é do jovem Mozart, naturalmente..."

"Mas a melodia, como todas as melodias dele, leva ao desespero — ou melhor, à esperança. Que é que eu quero dizer? Que o pior da música é isto! Quero dançar, rir, comer bolos cor-de-rosa, bolos amarelos, beber vinho suave ou forte. Ou, agora mesmo, uma anedota indecente — bem que me agradaria. Quanto mais velha uma pessoa fica, mais gosta de imoralidades. Ra-ra-ra! eu estou rindo. De quê? Nem você, nem o senhor idoso do outro lado, nada disseram... Mas suponha que — suponha — Silêncio!"

O rio da melancolia nos leva. Quando a lua penetra por entre os ramos pendentes do salgueiro, vejo seu rosto, ouço sua voz e os passarinhos cantando ao passarmos pelo canteiro de vime. O que dizem seus murmúrios? Aflição, aflição. Alegria, alegria. Trançadas juntas, inextricavelmente mescladas, ligadas pela dor e juncadas de sofrimento — até se romper!

O barco afunda. Soerguendo-se, as figuras ascendem, mas finas como folhas agora, e gradualmente se reduzem a um nevoento espectro que, com as extremidades em fogo, arranca-me do coração sua paixão dobrada. Para mim ele canta, deslacra minha dor, induz à compaixão, inunda de amor o mundo sem sol, não reprime, cessando, sua ternura, mas ágil e sutilmente tece para dentro e para fora, até que neste padrão, nesta consumação, venha unificar as fendas; voar, soluçar, afundar em repouso, aflição e alegria.

Então, por que se atormentar? Pedir o quê? Continuar insatisfeita? Digo que tudo está resolvido; sim; posto para descansar debaixo de uma colcha de folhas de roseira caindo. Caindo. Ah, mas elas param. Uma folha de roseira, caindo de enorme altura, como um pequeno paraquedas lançado de um balão invisível, vira-se, adeja indecisamente. Não conseguirá alcançar-nos.

"Não, não. Não notei nada. O pior da música é isto — estes sonhos absurdos. O segundo violino se atrasou, é?"

"É a velha Mrs. Munro, sentindo que está no fim — cada ano mais cega, coitada — neste piso escorregadio."

Velhice sem olhos, esfinge de cabeça grisalha... Lá está ela na calçada, fazendo sinal, na maior austeridade, para o ônibus vermelho.

"Como foi bom! Como eles tocam bem! Como — como — como!"

A língua não passa de uma matraca. A própria simplicidade. As penas do chapéu a meu lado são reluzentes e deleitam como um matraquear de crianças. A folha do plátano cintila em verde pela fresta da cortina. Muito estranho, muito emocionante.

"Como — como — como!" Chega! Estes aqui são os namorados na grama. "Se aceitar minha mão, madame..."

"Bem que eu lhe confiaria, senhor, meu coração. Mas acontece que deixamos nossos corpos no salão de banquete. São as sombras de nossas almas que se estendem na grama."

"São nossas almas então que assim se acariciam." Os limoeiros acenam em concordância. O cisne se desloca da margem e, sonhador, vai nadando para o meio da água.

"Mas, para voltar. Ele me seguiu pelo corredor abaixo e, quando dobramos a esquina, pisou nas rendas da minha anágua. O que eu podia fazer senão gritar 'Ah!' e parar para ajeitá-las? Nisso ele desembainhou sua espada, deu alguns golpes como se a fosse cravar para matar e gritou: 'Louca! Louca! Louca!'. Tendo eu aí dado um berro, o Príncipe, que estava escrevendo no grande livro em velino à janela em sacada, saiu com seu gorro de veludo e seus chinelos forrados para arrancar da parede uma espada de dois gumes — presente do rei da Espanha, sabe — e foi nessa que escapei, me enrolando bem na capa para esconder os estragos na minha saia — para esconder... Mas ouça! as trompas!"

O cavalheiro responde com tal rapidez à dama, e ela sobe na escala com tão espirituosa troca de atenções, a culminar agora num apaixonado soluço, que as palavras são indistinguíveis, embora seu significado seja bastante claro — amor, riso, arroubo, perseguição, ventura celestial — tudo flutuando às claras no mais alegre encrespar-se de carinhosa estima — até que o som das trompas prateadas, a princípio muito distante, pouco a pouco adquire cada vez mais clareza, como se houvesse senescais saudando a aurora ou proclamando ominosamente a escapada dos amantes... O jardim verde, poça enluarada, os limoeiros, os namorados e os peixes estão todos dissolvidos no céu de opala, pelo qual, quando as trompas se juntam a trompetes e são acompanhadas por clarins, sobem arcadas brancas apoiadas firmemente em pilares de mármore... Caminhar e clarinar. Clangorar e clangor. Firme estabelecimento. Fixas fundações. Marcha de miríades. Confusão e caos postos por terra. A cidade para a qual viajamos não tem pedra nem mármore; mas paira duradoura; permanece inabalável; nenhum rosto, nenhuma bandeira para saudar ou dar as boas-vindas. Deixe então perecer sua esperança; e minha alegria esmorecer no deserto; avance nua. Há nudez nos pilares; jamais auspiciosos; jamais lançando sombras; resplandecentes; severos. Caio pois de regresso, não mais ansiosa, desejando apenas ir, achar a rua, marcar bem os prédios, cumprimentar a vendedora de maçãs, dizer para a empregada que vem abrir a porta: Uma noite estrelada.


"Boa noite, boa noite. Você vai para lá?"

"Ah, não! Vou para cá."

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