O Vestido Novo - Conto de Virginia Woolf | Fantástica Cultural

Artigo O Vestido Novo - Conto de Virginia Woolf
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O Vestido Novo - Conto de Virginia Woolf

Autores Selecionados ⋅ 16 maio 2024
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"Ela apanhara o velho figurino de sua mãe, um figurino parisiense da época do Império, e, pensando como elas eram mais bonitas então, mais dignas e femininas, resolvera tentar ser daquele jeito, gabando-se de ser modesta e antiquada, mas muito charmosa, dando-se a uma orgia de amor-próprio que merecia ser castigada."

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Mabel teve sua primeira grave suspeita de que alguma coisa estava errada quando tirou a capa e Mrs. Barnet, enquanto lhe passava o espelho, apanhava as escovas e assim chamava sua atenção, de modo um pouco exagerado talvez, para todos os utensílios de arrumar e melhorar o cabelo, a pele, as roupas, que havia no toucador, confirmou a suspeita — de que não estava bom, não muito bom, a qual, tornando-se mais forte quando ela subiu pela escada e assomando-lhe como convicção quando cumprimentou Clarissa Dalloway, a fez ir diretamente até o fundo da sala, a um canto sombreado onde havia um espelho de parede, e olhar. Não! Não estava nada bom. E de imediato a angústia que sempre ela tentava esconder, a profunda insatisfação — a impressão que tinha, desde criança, de ser inferior às outras pessoas — dominou-a impiedosa e implacavelmente, com uma intensidade que ela não podia afastar, como o faria, quando acordava à noite em casa, lendo Borrow ou Scott; porque esses homens, oh, e essas mulheres, oh, estavam todos pensando — "O que Mabel resolveu usar? Ficou que nem um espantalho! Que vestido novo horroroso!" — com aquelas pálpebras tremelicantes que se apertavam depois para fechar-se, quando avançavam para ela. Era sua própria e estarrecedora inadaptação; sua covardia; seu reles sangue borrifado de água que a deprimiam. E de imediato todo o quarto onde, por tantas, tantas horas, ela planejara com a costureirinha como deveria ficar, pareceu sórdido, repulsivo; e sua própria sala de visitas, tão bolorenta, e ela mesma, saindo, inchou de vaidade ao tocar nas cartas sobre a mesa da entrada e disse: "Que chato!" para se mostrar — tudo isso agora parecia indizivelmente tolo, provinciano e desprezível. Tudo isso se tornou evidente, acabado, consumado, no momento em que ela entrou na sala de visitas de Mrs. Dalloway.

Naquela tarde, quando, sentada à mesa do chá, recebera o convite de Mrs. Dalloway, a ideia que lhe tinha ocorrido foi que, naturalmente, ela não podia estar na moda. Ter uma tal pretensão era até mesmo absurdo — moda era corte, era elegância, era um gasto de pelo menos trinta guinéus — mas por que não ser original? Por que não ser ela mesma, fosse lá como fosse? E, levantando-se, ela apanhara o velho figurino de sua mãe, um figurino parisiense da época do Império, e, pensando como elas eram mais bonitas então, mais dignas e femininas, resolvera — oh, mas que bobagem — tentar ser daquele jeito, gabando-se de fato de ser modesta e antiquada, mas muito charmosa, dando-se, sem dúvida alguma, a uma orgia de amor-próprio que merecia ser castigada, e assim se enfarpelara toda.

Mas não ousou se olhar no espelho. Não conseguia encarar tanto horror — o vestido amarelo-claro de seda, insensatamente em desuso, com a saia comprida e as mangas altas e a cintura e tudo o mais que parecia tão lindo no figurino, mas não enfiado nela, não no meio de tanta gente tão comum. Sentia-se ali em pé como um manequim de modista no qual pessoas jovens poderiam espetar alfinetes.

"Mas está uma beleza, querida!", disse Rose Shaw, olhando-a de alto a baixo, como ela já esperava, com um leve e sarcástico franzir dos beiços — uma vez que a própria Rose sempre se vestia pela última moda, exatamente, de resto, como todo mundo.

Somos todas como moscas tentando se arrastar pela beirada do pires, pensou Mabel, e repetiu a frase como se estivesse fazendo o sinal da cruz, como se procurasse alguma fórmula mágica para anular essa dor, para tornar suportável a agonia. Citações de Shakespeare, linhas de livros que lera tempos atrás vinham-lhe bruscamente quando, ao se achar numa dessas agonias, punha-se sem parar a repeti-las. "Moscas tentando se arrastar", disse de novo. Se ela o dissesse tantas vezes até por fim levar-se a ver as moscas, tornar-se-ia indiferente e gélida, entorpecida e muda. Agora de fato já podia ver moscas que lentamente se arrastavam para fora de um pires de leite com as asas muito grudadas; e ela se esforçava ao máximo (em pé diante do espelho, dando atenção a Rose Shaw) para levar-se a ver Rose Shaw e as outras pessoas ali como moscas, tentando içar-se para fora ou então lançar-se dentro de uma coisa qualquer, pobres, insignificantes, laboriosas moscas. Não conseguia porém vê-las assim, as demais pessoas. Era a si mesma que assim via — e, sendo ela mosca, os outros eram borboletas, libélulas, belos insetos adejando, deslizando, dançando, enquanto apenas ela se arrastava para fora do pires. (A inveja e o despeito, os mais detestáveis dos vícios, eram seus maiores defeitos.)

"Sinto-me como uma mosca velha e decrépita, suja, terrivelmente asquerosa", disse ela, fazendo com que Robert Haydon parasse só para ouvi-la dizer isso, só para reanimar a si mesma ao polir uma pobre frase irresoluta e assim mostrar-se tão desprendida, tão espirituosa, que em absoluto não se sentia fora de nada. E Robert Haydon, claro está, respondeu algo bem cortês, bem insincero, que instantaneamente ela viu não ser aquilo, e disse com seus botões (citando de novo um livro), assim que ele se afastou: "Mentiras, mentiras, mentiras!" Pois que uma festa torna as coisas, pensou, ou muito mais ou muito menos reais; ela viu, num relance, o que estava no fundo do coração de Robert; via tudo o que havia por trás. Via a verdade. A verdade era isto, esta sala de visitas, esta pessoa, sendo a outra falsa. Era de fato terrivelmente abafado, quente, sórdido, o quartinho de trabalho de Miss Milan. Cheirava a roupas e a repolho cozido; no entanto, quando Miss Milan lhe deu o espelho na mão e ela se olhou com o vestido acabado, uma extraordinária alegria se manifestou em seu íntimo. Banhada em luz ela tomou existência. Livre de preocupações e rugas, ali se achava tal qual se havia sonhado — uma bela mulher. Apenas por um segundo (não ousou olhar por mais tempo e Miss Milan quis saber sobre o comprimento da saia), uma garota encantadora, de misterioso sorriso, de cabelos nevados, o cerne de si mesma, a alma de sua própria pessoa, emoldurada nos arabescos de mogno, deu-lhe de lá uma olhada; e não foi só a vaidade nem foi somente o amor-próprio que a fizeram achar aquilo bom, terno e verdadeiro. Miss Milan disse que a saia não ficaria bem mais comprida; de todo modo a saia, disse Miss Milan, franzindo a testa, examinando-a com todo seu bom senso e atenção, deveria ser mais curta; e ela, súbita e sinceramente, sentiu-se cheia de amor por Miss Milan, gostando mais, muito mais de Miss Milan que de qualquer outra pessoa no mundo, e poderia ter clamado por compaixão ao vê-la rastejando no assoalho com a boca cheia de alfinetes, o rosto vermelho, os olhos saltados — por ter um ser humano de fazer isso por outro, quando a todos ela via meramente como seres humanos, e ela saindo dali para sua festa, e Miss Milan pondo a capa na gaiola do canário, ou deixando-o pegar de entre seus lábios uma semente de cânhamo, e a ideia disso, desse lado da natureza humana e sua paciência e resignação, seu contentamento com prazeres tão ínfimos, minguados, reles, sórdidos, lhe encheu os olhos de lágrimas.

E agora tudo tinha sumido. O vestido, o quarto, o amor, a compaixão, o espelho cheio de arabescos, a gaiola do canário — tudo tinha sumido e eis que ali se achava ela, num canto da sala de visitas de Mrs. Dalloway, submetida a torturas e desperta, plenamente desperta para a realidade.

Mas quão indigno aquilo, quanta futilidade e fraqueza preocupar-se tanto assim, na idade dela, com dois filhos, depender tão profundamente da opinião alheia e não ter convicções nem princípios, não ser capaz de dizer, como outras pessoas faziam: "Há Shakespeare! E a morte! Nenhum de nós é mais que mofo em pão guardado" — ou fosse lá o que fosse que as pessoas diziam.

Ela então se encarou no espelho, sem mais rodeios; ela deu uma ajeitada em seu ombro esquerdo; e dali ela saiu pela sala como se lanças estivessem sendo atiradas, de todos os lados, em seu vestido amarelo. Porém, em vez de se mostrar impetuosa ou trágica, como faria Rose Shaw — Rose assumiria a aparência de uma Boadiceia —, mostrou-se acanhada e tola, sorriu sem graça como uma menina de escola e com ar desleixado e expressamente furtivo atravessou a sala, como se fosse um vira-lata chutado, para ir olhar um quadro, uma gravura. Como se alguém fosse a uma festa para olhar para um quadro! Todos sabiam por que tinha feito aquilo — foi por vergonha, por humilhação.

"A mosca agora está no pires", disse ela consigo mesma, "bem no meio, e não consegue sair e o leite", pensou, olhando rigidamente para o quadro, "deixou suas asas grudadas".

"É tão antiquado", disse ela a Charles Butt, fazendo-o parar (o que aliás ele odiava) quando ia falar com outra pessoa.

Queria dizer, ou tentava se convencer de que queria dizer, que era o quadro e não seu próprio vestido que estava fora de moda. Uma palavra de elogio, uma palavra de afeição partida de Charles faria enorme diferença para ela na hora. Se ao menos ele tivesse dito "Como você está charmosa hoje, Mabel", tal frase poderia modificar sua vida. Mas então ela deveria ter sido bem direta e sincera. Charles, é claro, não disse nada nessa linha. Ele era a própria malícia. Via por trás de qualquer um, sobretudo quando a pessoa se sentia particularmente fraca, apatetada, insignificante.

"Mabel está de vestido novo!", disse ele, e a pobre mosca foi de uma vez por todas empurrada para o meio do pires. Bem que ele gostaria, acreditou ela, que logo o inseto se afogasse. Não tinha coração, não era fundamentalmente bom, tinha tão só um verniz de amistosidade. Muito mais real e bondosa era Miss Milan. Se ao menos fosse possível sentir assim e ater-se sempre a isso! "Por que", ela se perguntou — respondendo com excesso de atrevimento a Charles, deixando-o ver que estava descontrolada, ou "encrespada", como ele mesmo afirmou ("Um tanto encrespada?", disse ele e foi em frente, para rir dela com outra mulher adiante) — "por que", ela se perguntou, "não consigo sentir sempre a mesma coisa, ter certeza absoluta de que Miss Milan está certa, Charles, errado, e apegar-me a isso, ter certeza quanto ao canário, a compaixão, o amor, e não ficar levando lambadas que vêm de todos os lados, assim que entro numa sala cheia de gente?" Era de novo seu caráter fraco, vacilante, odioso, sempre dando no momento crítico e não se interessando seriamente por concologia, etimologia, botânica, arqueologia, nem por cortar batatas em pedaços e vê-las frutificando, como Mary Dennis, como Violet Searle.

Foi então que Mrs. Holman, vendo-a ali em pé, abriu caminho até ela para importuná-la. Claro que algo como um vestido se punha abaixo da capacidade de observação de Mrs. Holman, cuja família estava sempre descendo aos trambolhões pela escada ou pegando escarlatina. Saberia Mabel dizer-lhe se Elmthorpe já tinha sido alugado para agosto e setembro? Oh, era uma conversa que a aborrecia além da conta! — e ela ficou furiosa por ser tratada como um corretor de imóveis ou um mensageiro, por ser usada assim. Não ter valor, era isso, pensou, tentando apegar-se a alguma coisa real, alguma coisa sólida, enquanto se esforçava para dar respostas sensatas sobre o banheiro e a vista para o Sul e a água quente na parte alta da casa; e o tempo todo ela podia ver pedacinhos de seu vestido amarelo no espelho redondo que reduzia ao tamanho de botões de bota ou girinos os que ali se encontravam; era espantoso pensar o quanto de humilhação e agonia e aversão por si e esforço e apaixonados altos e baixos sentimentais se continham numa coisa do tamanho de uma moedinha irrisória. E o que era ainda mais esquisito é que essa coisa, essa Mabel Waring, estava à parte, desconectada de todo; e, apesar de Mrs. Holman (o botão preto) se inclinar para a frente e lhe contar que seu menino mais velho tinha forçado demais o coração correndo, ela também podia vê-la, no espelho, bem separada, e ao ponto preto, inclinado para a frente, gesticulando, era impossível fazer o ponto amarelo, sentado solitário, autocentrado, sentir o que ele próprio sentia, embora os dois fingissem isso.

"É impossível manter garotos quietos" — eis o tipo de coisa que era dito.

E Mrs. Holman, que nunca conseguia despertar muita simpatia e se agarrava com avidez ao pouco mesmo que houvesse, como se fosse seu direito (mas ela merecia muito mais, pois ainda havia sua garotinha que tinha aparecido com um inchaço no joelho hoje cedo), aceitou a mísera oferta e a examinou suspeitosa, relutante, como se fosse meio pêni, quando deveria ser uma libra, para guardá-la então na bolsa, tendo de conformar-se com ela, mesmo mísera e reles como era, por ser difícil, tão difícil, a época; e Mrs. Holman, prejudicada e chiando, não parava de falar da garota que tinha as juntas inchadas. Ah, que trágica essa ganância, esse clamor de seres humanos que, como um bando de cormorões, batem asas e berram a pedir simpatia — era trágica, caso se pudesse realmente sentir, e não apenas fingir que se sentia tal coisa!

Mas essa noite ela não podia espremer nem uma gota de seu vestido amarelo; queria tudo, tudo para si. Sabia (continuando a olhar no espelho, mergulhava na poça azul de exibições enfadonhas) que estava condenada, que a desprezavam, que fora deixada assim num remanso por ser assim como era, uma criatura vacilante e frágil; e tinha a impressão de que o vestido amarelo era uma penitência merecida e que, se estivesse vestida como Rose Shaw, num belo verde colante com uma pala de algodão pregueada, teria merecido isso também; e pensou não ter saída — nenhuma saída mesmo. Mas não era de todo culpa dela, afinal de contas. Era por ser mais uma de uma família de dez; porque o dinheiro, sempre escasso, raspado, nunca foi suficiente; e sua mãe a carregar grandes latas e nas quinas da escada o linóleo gasto e pequenas e sórdidas tragédias domésticas em sucessão contínua — nada de catastrófico, a fazenda de criação de carneiros fracassando, mas não completamente; seu irmão mais velho se casando abaixo, mas não tão abaixo assim, de seu próprio nível — não havia romantismo, nada de excessivo, em relação a eles. Respeitavelmente iam todos à exaustão nas praias; cada balneário tinha ainda agora uma de suas tias dormindo numa pensão qualquer onde as janelas da frente não davam bem para o mar.

Isso aliás combinava muito com eles — que sempre tinham de olhar as coisas de esguelha. E ela fizera o mesmo — era tal e qual suas tias. Pois todos os seus sonhos de viver na Índia, casada com algum herói como Sir Henry Lawrence, com algum construtor de império (a visão de um nativo de turbante a enchia de romantismo ainda), tinham dado em nada. Ela se casara com Hubert, com seu emprego de subalterno, seguro e permanente, no Tribunal de Justiça, e eles se arranjavam razoavelmente numa casa muito apertada, sem boas empregadas, e em grande confusão quando ela estava sozinha, ou só no pão com manteiga, mas de vez em quando — Mrs. Holman, agora ao longe, tomava-a pela magricela mais seca e antipática que jamais conhecera, vestida além disso de maneira ridícula, e falaria a todos da fantástica aparência de Mabel — de vez em quando, pensou Mabel Waring, deixada sozinha no sofá azul, mexendo na almofada para parecer ocupada, pois não iria juntar-se a Charles Burt e Rose Shaw, que tagarelavam como gralhas, rindo dela talvez perto da lareira — de vez em quando lhe vinham, sim, uns deliciosos momentos, ao ler de noite na cama, por exemplo, ou na areia e ao sol, à beira-mar, na Páscoa — que ela o recorde pois — um grande tufo de vegetação praiana a erguer-se todo retorcido como um embate de lanças contra o céu, que era azul e liso como um ovo de porcelana, tão firme, tão duro, e ademais a melodia das ondas — "Silêncio, silêncio!", eles diziam, e a gritaria das crianças que se divertiam na água — sim, esse era um momento divino, e ela ali se achava então, sentia, nas mãos da Deusa que era o mundo; uma Deusa de coração meio duro, mas belíssima, um cordeirinho posto no altar (a gente pensava essas bobagens, mas não tinha importância, desde que as não dissesse nunca). E também com Hubert ela às vezes e inesperadamente vivia — ao cortar a carne do almoço de domingo, ou sem razão, ao abrir uma carta, ao entrar num quarto — seus momentos divinos, quando disse a si mesma (pois jamais o diria a outra pessoa): "É isso aí. Foi o que aconteceu. É isso mesmo!" E era igualmente surpreendente o contrário disso — ou seja, quando tudo estava em ordem — música, tempo, férias, quando havia razões de sobra para ser feliz — nada de nada acontecia. A felicidade não vinha. Tudo era chato, apenas chato, e pronto.

De novo sua deplorável pessoa, sem dúvida! Ela sempre tinha sido uma mãe rabugenta, fraca, insatisfatória, uma esposa vacilante, que se recostava indolentemente numa espécie de crepuscular existência com nada de muito claro ou de ousado, ou de mais isso que aquilo, como seus irmãos e irmãs, à exceção talvez de Herbert — todos eles eram as mesmas e pobres criaturas que tinham água nas veias e que nada faziam. Porém em meio àquela vida rastejante e lenta subitamente ela se achava na crista de uma onda. A desditosa mosca — onde foi que lera o conto, que insistia em lhe voltar à lembrança, sobre a mosca e o pires? — se debatia para fora. Sim, ela tinha tais momentos. Mas, agora que estava com quarenta anos, eles poderiam se tornar cada vez mais raros. E ela cessaria pouco a pouco de continuar seu esforço. Só que isso era deplorável! Não era para ser aguentado! Isso a fazia sentir-se envergonhada de si!

Amanhã ela iria à Biblioteca de Londres. E encontraria algum livro proveitoso, maravilhoso, surpreendente, por mero acaso, um livro escrito por um clérigo, por um americano de quem ninguém jamais ouvira falar; ou andaria pela Strand, para também por acaso entrar num auditório onde um trabalhador falava sobre a vida nas minas, e de repente haveria de tornar-se uma nova pessoa. Ela seria completamente transformada. Ela usaria um uniforme; ela pertenceria a uma irmandade qualquer; não voltaria nunca mais a pensar em roupas. Depois disso nunca lhe faltaria uma perfeita clareza no tocante a Charles Burt e a Miss Milan, a esta sala e àquele quarto; e seria assim para sempre, dia após dia, tal qual se cortasse a carne ou estivesse deitada ao sol relaxando. Assim seria!

Assim ela se levantou do sofá azul onde estava, e o botão amarelo, no espelho, levantou-se também, e dali acenou para Charles e Rose, para mostrar que não dependia deles em nada, e o botão amarelo saiu do espelho e as lanças todas se juntaram para cravar-se em seu peito quando ela andou em direção a Mrs. Dalloway e disse: "Boa noite".

"Mas ainda é tão cedo", disse Mrs. Dalloway, que era sempre a delicadeza em pessoa.

"Tenho mesmo de ir", disse Mabel Waring. "Mas lamento", acrescentou em sua voz vacilante e fraca, que só soava ridícula quando ela tentava reforçá-la, "porque eu tive um imenso prazer".

"Tive um imenso prazer", disse a Mr. Dalloway, quando cruzou com ele na escada.

"Mentiras, mentiras, mentiras!", disse a si mesma, nisso que continuou a descer, e "Bem no meio do pires!", disse ainda consigo, ao agradecer a ajuda que Mrs. Barnet lhe dava, para então enrolar-se toda, e mais, e mais, naquela capa chinesa que ela usava há vinte anos.

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