Momentos de Ser: Pinos de telha não têm pontas - Conto de Virginia Woolf | Fantástica Cultural

Artigo Momentos de Ser: Pinos de telha não têm pontas - Conto de Virginia Woolf
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Momentos de Ser: Pinos de telha não têm pontas - Conto de Virginia Woolf

Autores Selecionados ⋅ 16 maio 2024
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"Ela queria quebrar o encantamento que se abatera sobre a casa; quebrar a placa de vidro que os separava das demais pessoas."

mulher ao piano

"Pinos de telha não têm pontas — você não nota isso sempre?", disse Miss Craye, virando-se pelo meio quando a rosa caiu do vestido de Fanny Wilmot, que por sua vez se dobrou, com os ouvidos cheios de música, para procurar o pino no chão.

Tais palavras, que Miss Craye disse ao tocar o último acorde de uma fuga de Bach, deram-lhe um choque extraordinário. Então Miss Craye ia de fato ao Telhador comprar pinos?, perguntou-se Fanny Wilmot, paralisada um momento. Pois então ficava lá no balcão, como qualquer um, esperando, e lhe davam moedas embrulhadas na conta, moedas que ela fazia deslizar para a bolsa da qual, uma hora mais tarde, já em pé ao toucador tirava os pinos? Que necessidade tinha de pinos, se em vez de se vestir se encasulava, como um besouro compactado na couraça, de azul no inverno e verde no verão? Que necessidade tinha ela de pinos — Julia Craye —, que vivia, ao que tudo indicava, no mundo frio e vítreo das fugas de Bach, tocando para si o que lhe dava prazer e só consentindo em aceitar um ou dois alunos do conservatório de música da Archer Street (assim dissera a diretora, Miss Kingston) por especial deferência a ela, que nutria "a maior admiração possível" por Miss Craye. Miss Craye ficou em maus lençóis, temia Miss Kingston, com a morte do irmão. Oh, eles tinham coisas tão lindas, quando moravam em Salisbury e o irmão, Julius, era então, decerto, um homem muito conhecido: um famoso arqueólogo. Foi um grande privilégio hospedar-se com eles, disse Miss Kingston ("Minha família os conheceu desde sempre — era tradicional em Salisbury", Miss Kingston disse), mas um pouco assustador para uma criança; todo cuidado era pouco para não bater com a porta nem entrar no quarto às carreiras. Miss Kingston, que fez breves descrições de caráter como essa no primeiro dia de aula, enquanto recebia cheques e assinava recibos, deu aqui um sorriso. Sim, em menina ela era mesmo levada; tinha corrido pela casa, pondo os vidros verdes romanos e todas aquelas coisas para pular nas vitrines. Nenhum dos Crayes era casado. Os Crayes não estavam acostumados com crianças. Criavam gatos. Os gatos, percebia-se, sabiam tanto sobre as urnas romanas e outras coisas como qualquer um.

"Muito mais do que eu!", disse alegremente Miss Kingston, assinando seu nome na estampilha com a caligrafia cheia, impetuosa e bem-disposta que tinha, pois sempre havia sido prática.

Talvez então foi ao acaso, pensou Fanny Wilmot, procurando o pino, que Miss Craye disse aquela frase, "Pinos de telha não têm pontas". Nenhum dos Crayes tinha se casado. Ela não entendia nada de pinos — nada mesmo. Mas queria quebrar o encantamento que se abatera sobre a casa; quebrar a placa de vidro que os separava das demais pessoas. Quando Polly Kingston, aquela garotinha espevitada, fez os vasos romanos balançarem ao bater com a porta, Julius, vendo que não havia estragos (sua primeira reação instintiva), acompanhou-a com os olhos, pois a vitrine ficava bem na janela, enquanto Polly escapulia de casa pelos campos afora; olhou-a com o mesmo olhar que às vezes sua irmã também tinha, prolongado, desejoso.

"Estrelas, lua, sol", parecia dizer aquele olhar, "margarida na grama, fogos, geada na vidraça, meu coração vai logo atrás de você. Mas você", parecia acrescentar sempre, "você escapa, você passa e some". E cobria simultaneamente a intensidade desses dois estados de espírito com um "Eu não consigo lhe alcançar — não consigo chegar até você", dito sôfrega e frustradamente. Desapareciam as estrelas, e a criança também.

Era esse o encantamento, era essa a superfície de vidro que Miss Craye queria quebrar quando mostrava, após tocar Bach com tal mestria para brindar a uma aluna favorita (Fanny Wilmot sabia ser a aluna favorita de Miss Craye), que ela sentia o mesmo que os outros em relação aos pinos. Os pinos de telha não tinham pontas.

Sim, o "famoso arqueólogo" também era assim. "O famoso arqueólogo" — ao dizer isso assinando cheques, certificando-se do dia do mês, falando com tal vivacidade e franqueza, Miss Kingston punha sua voz num tom indescritível, que dava a entender alguma coisa estranha, alguma coisa excêntrica, em Julius Craye. A mesmíssima singularidade que talvez houvesse em Julia também. Eu podia até jurar, pensou Fanny Wilmot, enquanto procurava o tal pino, que em festas, em cultos (o pai de Miss Kingston era pastor), ela captou partes de algum boato, ou quem sabe apenas um sorriso, um certo tom, ao ser mencionado o nome dele, e que isso a deixou com "uma desconfiança" sobre Julius Craye. Desnecessário dizer que ela nunca falara disso a ninguém. Provavelmente mal sabia o que queria dizer com isso. Porém, sempre que se referia a Julius, ou que ouvia menções a ele, era esta a primeira ideia que lhe vinha à cabeça: havia alguma coisa esquisita sobre Julius Craye.

Era assim que Julia olhava também, sentada no banquinho de música, virada pelo meio, sorrindo. Ei-la no campo, na vidraça, no céu — a beleza; e eu não consigo chegar até ela; não a posso ter — eu, parecia acrescentar, com seu jeito ríspido, e tão característico, de ter a mão pronta a pegar, que a adoro com tal paixão, que daria o mundo inteiro para possuí-la! E ela apanhou o cravo que caíra no chão enquanto Fanny procurava o pino. Apanhou-o e voluptuosamente amassou-o, sentiu Fanny, em suas mãos macias e de veias saltadas, cheias de anéis da cor da água e com pérolas. A pressão de seus dedos parecia aumentar na flor o que ela de mais brilhante continha; realçá-lo; torná-lo mais fresco, franzido, imaculado. O que havia de estranho nela, e também em seu irmão, é que essa atividade dos dedos, agarrando e esmagando, combinava-se a uma frustração perpétua. Assim era ainda agora com o cravo. Ela o tinha nas mãos; apertava-o; mas não chegava a possuí-lo, não o desfrutava de todo.

Nenhum dos Crayes se casou, recordou-se Fanny Wilmot. Tinha em mente uma noite, quando a aula durou mais que de hábito e já estava escuro, em que Julia havia dito: "Os homens servem para nos proteger, sem dúvida", dando-lhe aquele mesmo estranho sorriso, quando a ajudava, de pé, a amarrar a capa, o que a tornava, como a flor, consciente até a ponta dos dedos de juventude e brilho, mas, também como a flor, suspeitava Fanny, inibida.

"Oh, mas eu não quero proteção", disse Fanny rindo e, quando Julia Craye, nela fixando seu extraordinário olhar, disse não estar assim tão certa disso, Fanny decididamente corou sob a admiração que ela estampava nos olhos.

Os homens só serviam para isso, dissera ela. Foi então por essa razão, perguntava-se Fanny, de olhos no chão, que ela nunca se casou? Afinal, não tinha passado a vida toda em Salisbury. "De longe a melhor parte de Londres", comentara certa vez, "(mas estou falando de quinze ou vinte anos atrás) é Kensington. A dez minutos dos jardins — como que em pleno campo. Podíamos jantar ao ar livre de chinelos, sem pegar resfriado. Kensington — era então como uma aldeia, sabe", dissera ela.

Nisso se interrompeu, para denunciar acerbamente as correntes de ar nos túneis do metrô.

"Os homens serviam para isso", dissera ela, com uma espúria e aberrante aspereza. Por acaso isso lançava alguma luz sobre o problema de ter ficado solteira? Era possível imaginar cenas de todo tipo em sua juventude, quando ela, com seus bondosos olhos azuis, o nariz firme e reto, as músicas ao piano e as rosas que em casta paixão desabrochavam no peito de seu vestido de musselina, tinha atraído primeiramente os rapazes para quem essas coisas, somadas às xícaras de porcelana, aos candelabros de prata e às mesas de marchetaria (pois os Craigs possuíam tais raridades), eram maravilhosas; rapazes não suficientemente distintos; rapazes da cidade-catedral com ambições. Primeiramente os atraíra e, depois, aos amigos dos seus irmãos de Oxford ou Cambridge. Esses, que viriam no verão, levavam-na pelo rio a remo, prosseguiam por carta a discussão sobre Browning e combinavam talvez, nas raras ocasiões em que ela passava tempos em Londres, de lhe mostrar — os jardins de Kensington?

"De longe a melhor parte de Londres — Kensington. Estou falando de quinze ou vinte anos atrás", ela dissera certa vez. "A dez minutos dos jardins — como que em pleno campo." Disso eu poderia extrair o que bem quisesse, pensou Fanny Wilmot; fixar-me por exemplo em Mr. Sherman, o pintor, velho amigo dela; levá-lo a bater em sua casa, com hora marcada, num dia ensolarado de junho; para levá-la a tomar chá embaixo das árvores. (Encontravam-se também nas festas às quais se ia de chinelos, saltitando e sem medo de pegar resfriado.) A tia ou outra parente idosa ficaria esperando enquanto eles fossem olhar o Serpentine. Deram mesmo uma olhada lá. Podem ter inclusive atravessado de barco o Serpentine, com ele nos remos. Compararam-no ao Avon. Comparação que ela tomaria muito a sério, porque dava importância às considerações sobre rios. Em parte angulosa, em parte arqueada, não obstante graciosa, sentava-se no comando. No momento crítico, pois ele havia decidido que devia falar agora — era sua única chance de estar a sós com ela — já estava falando, com a cabeça virada num ângulo ridículo, em seu grande nervosismo, por cima do ombro — momento exato em que ela o interrompeu com energia. Gritou que ele os levasse até a Ponte. Foi um momento de horror, de desilusão, de revelação para os dois. Não a posso ter, não a consigo possuir, pensava ela. E ele não entenderia por que então tinha vindo. Mas virou o barco, batendo o remo com toda força na água. Apenas para rejeitá-lo? Levou-a de volta e disse adeus.

A locação desta cena poderia variar à vontade, refletiu Fanny Wilmot. (Onde tinha caído o tal do pino?) Tanto fazia ser Ravena — ou Edimburgo, onde ela cuidara da casa para o irmão. Podiam variar a própria cena e o rapaz e a exata maneira como tudo ocorreu; mas uma coisa era constante — sua recusa, seu ar carrancudo, sua raiva de si mesma depois e seus raciocínios e o alívio — sim, certamente seu imenso alívio. No dia seguinte talvez ela se levantasse às seis horas para colocar sua capa e caminhar de Kensington até o rio. Sentia-se agradecida por não haver sacrificado seu direito de ir olhar as coisas no melhor momento — ou seja, antes que se levantem os outros. Ela, se quisesse, poderia ter seu café na cama. Não havia sacrificado sua independência.

Sim, sorriu Fanny Wilmot, Julia não havia posto em risco seus hábitos. Hábitos que permaneciam a salvo e iriam sofrer reveses, caso se casasse. "São ogros", disse ela ao cair de uma noite, meio sorrindo, quando outra aluna, jovem recém-casada, de repente se lembrou de que tinha de encontrar seu marido e saiu às carreiras.

"São ogros", dissera ela, com um riso sinistro. Um ogro talvez interferisse com o café na cama; com caminhadas matinais até o rio. O que teria acontecido (o que mal se podia conceber) se ela tivesse tido filhos? Tomava surpreendentes precauções contra friagem, fadiga, comida muito temperada, a comida errada, correntes de ar, quartos quentes, viagens de metrô, pois nunca conseguia determinar qual dessas era exatamente a causa das terríveis dores de cabeça que transformavam sua vida num verdadeiro campo de batalha. Estava sempre empenhada em ludibriar o inimigo, até lhe parecer que a própria perseguição tinha lá algum interesse; ela acharia a vida um pouco monótona, se pudesse derrotar de vez o inimigo. Tal como era, o esforço de guerra era perpétuo — de um lado, o rouxinol ou a vista que lhe inspiravam paixão —, não era menos que paixão, de fato, o que sentia por panoramas e pássaros; e de outro a trilha úmida ou a lenta e horrível subida de uma ladeira íngreme que por certo não lhe faria bem no dia seguinte, trazendo-lhe uma dor de cabeça. Quando, por conseguinte, de tempos em tempos, ela reunia com acerto suas forças e empreendia uma visita a Hampton Court, na semana em que os açafrões (essas flores tão brilhantes eram as suas prediletas) estavam no máximo esplendor, obtinha uma vitória. Era algo que durava; algo que importava para sempre. Punha a tarde em questão no seu colar de dias memoráveis, que por não ser muito extenso a tornava capaz de recordar-se de alguns; de tal vista, de tal cidade; de tatear, sentir e saborear, suspirando, a qualidade que a tornava única.

"Estava tão bonito na sexta-feira passada", disse ela, "que resolvi ir até lá". Saíra assim para Waterloo a fim de realizar sua façanha — visitar Hampton Court — sozinha. De um modo natural, se bem que tolo, compadeciam-se dela por algo pelo que ela própria nunca pedira compaixão (de hábito, era de fato reticente, só falando de sua saúde como um guerreiro pode falar do adversário) — compadeciam-se dela por sempre fazer tudo sozinha. Seu irmão tinha morrido. Sua irmã, que era asmática, achava bom para si o clima de Edimburgo. Para Julia, era muito frio. Talvez também ela achasse as associações penosas, pois seu irmão, o famoso arqueólogo, tinha morrido lá; e ela adorava aquele irmão. Vivia totalmente só numa casinha perto de Brompton Road.

Fanny Wilmot, vendo o pino no tapete, apanhou-o. E olhou para Miss Craye. Era Miss Craye assim tão solitária? Não, Miss Craye era firme e bem-aventuradamente, ainda que só por um momento, uma mulher feliz. Fanny a surpreendera num instante de êxtase. Sentava-se ao piano, virada para trás até o meio, e mantinha o cravo erguido entre as mãos cruzadas no colo, tendo por trás de si o abrupto quadrado da janela, sem cortinas e roxo no começo da noite, intensamente roxo depois que o brilho das lâmpadas elétricas se esparziu sem sombras pela despojada sala de música. Julia Craye, sentando-se arqueada e compacta a segurar sua flor, parecia emergir da noite londrina, que a envolvia por trás como uma capa. E aquilo parecia ser, pela nudez e intensidade, a efluência de seu espírito, algo que a rodeava e ela tinha feito, algo que era ela mesma. Fanny olhou.

Por um momento tudo pareceu transparente ao olhar de Fanny Wilmot, como se, olhando através de Miss Craye, ela visse a própria fonte de sua vida a jorrar em puras gotas de prata. Viu além dela, muito além, recuando cada vez mais em seu passado. Viu os vasos verdes romanos em suas caixas de vidro; ouviu os coristas jogando críquete; viu a tranquilidade de Julia ao descer para o gramado pelos degraus em curva; viu-a servindo o chá, embaixo do pé de cedro; meigamente encerrando as mãos do velho nas suas; viu-a de um lado para outro pelos corredores da residência da antiga catedral com toalhas na mão para marcá-las; lamentando ao passar a banalidade da vida cotidiana; e envelhecendo lentamente, desfazendo-se de certas roupas, quando o verão chegava, porque, para se usar na sua idade, eram brilhantes demais; e cuidando da doença do pai; e abrindo seu caminho de um modo cada vez mais decidido à medida que seu desejo a impelia, fortificado, à sua meta solitária; viajando só de vez em quando; calculando gastos, avaliando cada quantia que teria de sair de sua bolsa apertada para pagar tal viagem, ou comprar um espelho velho; agarrando-se obstinadamente, dissessem o que dissessem os outros, à escolha de seus próprios prazeres. Ela viu Julia...

Ela viu Julia abrir os braços; viu-a abrasar-se; viu-a crepitar. Vinda da noite ela ardeu como uma estrela branca e morta. Julia a beijou. Julia a possuiu.

"Pinos de telha não têm pontas", disse Miss Craye, rindo de um modo singular e relaxando seus braços, enquanto Fanny Wilmot, com dedos trêmulos, prendia a flor no seu seio.

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