A Dama no Espelho: Reflexo e Reflexão - Conto de Virginia Woolf | Fantástica Cultural

Artigo A Dama no Espelho: Reflexo e Reflexão - Conto de Virginia Woolf
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A Dama no Espelho: Reflexo e Reflexão - Conto de Virginia Woolf

Autores Selecionados ⋅ 16 maio 2024
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"Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem crimes horrorosos."

dama no espelho

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa, assim como não se devem deixar abertos talões de cheques ou cartas que confessem algum crime horroroso. Era impossível não olhar, naquela tarde de verão, no grande espelho que havia no vestíbulo, pendurado para fora. Pura combinação do acaso. Da profundeza do sofá na sala de visitas, podiam-se ver não só, refletidos no espelho italiano, a mesa de tampo de mármore que estava em frente, mas também uma nesga do jardim além. Podia-se ver uma longa trilha de grama que se estendia entre moitas de flores altas até ser cortada em ângulo pela moldura dourada.

Estando a casa vazia, sentia-se alguém, sendo esse alguém a única pessoa na sala de visitas, como um desses naturalistas que, cobertos de capim e folhas, deitam para observar os animais mais tímidos — texugos, lontras, martins-pescadores — e, por não serem vistos, podem se mover à vontade. Nessa tarde a sala estava cheia de tais criaturas tímidas, luzes e sombras, cortinas ao vento, pétalas caindo — coisas que nunca acontecem, ao que parece, se alguém estiver olhando. A velha e calma sala campestre, com seus rústicos tapetes e a lareira de pedra, suas estantes afundadas e os armários de laca, em vermelho e ouro, estava cheia dessas criaturas noturnas. Vinham elas em piruetas pelo assoalho, pisando delicadamente com pés bem levantados, caudas bem abertas e bicos alusivos bicando como se fossem grous ou garças ou grupos de elegantes flamingos cuja cor desbotou, ou leques de pavões raiados de prata. E havia também uns pontos negros e jatos obscuros, como se repentinamente uma siba impregnasse o ar de sépia; e a sala tinha suas paixões e invejas e raivas e mágoas a sobrepujá-la e encobri-la, como um ser humano. Nada continuava o mesmo em dois segundos juntos.

Mas, pelo lado de fora, o espelho refletia a mesa da entrada, os girassóis e a trilha do jardim com tanta fixidez e exatidão, que tais coisas pareciam mesmo estar lá, em sua inescapável realidade. Era um contraste estranho — aqui tudo mudando e, lá, tudo parado. Era impossível não olhar de um para o outro. Enquanto isso, como todas as portas e janelas estavam abertas com o calor, havia um perpétuo som de suspirar e parar, a voz dos transientes, ao que parecia, e dos que se extinguem, indo e vindo como o fôlego humano, ao passo que no espelho as coisas tinham parado de respirar e jaziam imóveis no transe da imortalidade.

Meia hora antes a dona da casa, Isabella Tyson, tinha descido pela trilha de grama, com uma cesta, em seu leve vestido de verão, e sumiu, cortada pela moldura do espelho. Provavelmente fora ao jardim colher flores; ou, como parecia mais natural supor, colher alguma coisa leve e fantástica e rastejante e folhuda, uma clematite ou uma dessas elegantes ramagens de ipomeia que se enroscam em muros desgraciosos para aqui e ali desabrocharem em flores roxas e brancas. Sugeria ela a fantástica e trêmula ipomeia, mais do que o aprumado áster, a engomada zínia ou suas próprias e ardentes rosas, que se acendiam como lâmpadas nos postes retilíneos das roseiras. A comparação mostra quão pouco se sabia a respeito dela, depois de todos esses anos; pois é impossível qualquer mulher de carne e osso, de cinquenta e cinco ou sessenta anos, ser tomada realmente por ramalhete ou gavinha. Tais comparações não são apenas vãs e superficiais — pior que isso, chegam até a ser cruéis por virem a se interpor tremendo, como a própria ipomeia, à verdade e aos olhos. Deve haver uma verdade; deve existir um muro. No entanto era estranho que, conhecendo-a depois de tantos anos, ninguém pudesse dizer qual a verdade referente a Isabella; frases como essas, sobre a ipomeia e a clematite, ainda tinham de ser feitas. No tocante aos fatos, tome-se por fato que ela era rica; que era uma solteirona; que comprara essa casa e com as próprias mãos juntara — não raro nos cantos mais remotos do mundo e a grande risco de picadas venenosas e doenças orientais — os tapetes, as cadeiras, os armários que agora levavam sua vida noturna diante dos olhos do observador. Parecia às vezes que os móveis sabiam mais sobre ela do que a nós, que aí nos sentávamos, que aí escrevíamos e que aí pisávamos com tanto cuidado, era permitido saber. Em cada um desses armários havia muitas gavetinhas, todas, com quase toda a certeza, contendo cartas em maços amarrados com elástico e perfumadas por ramos de lavanda ou folhas de rosa. Pois outro fato — se eram fatos que se queria — é que Isabella conhecera muitas pessoas, tinha tido muitos amigos; assim, alguém que tivesse a audácia de abrir uma gaveta para ler suas cartas encontraria vestígios de agitações sem conta, de compromissos a manter, de exprobrações por o não ter feito, longas cartas de intimidade e afeição, cartas violentas de ciúme e censura, terríveis palavras finais de despedida — pois nenhum daqueles encontros e combinações de encontros levara a nada — ou seja, ela nunca se casara e no entanto, a julgar pela indiferença de máscara que lhe cobria o rosto, passara por um acúmulo de experiência e paixão vinte vezes maior do que o daqueles cujos amores são trombeteados para o mundo inteiro ouvir. Sob a tensão de pensar sobre Isabella, sua sala se tornava mais sombria e simbólica; os cantos pareciam mais escuros, as pernas das cadeiras e mesas, mais espichadas e hieroglíficas.

De súbito essas reflexões, sem que houvesse nenhum som, foram violentamente encerradas. Assomou ao espelho uma forma grande e negra que eclipsou tudo o mais; que espalhou sobre a mesa um monte de plaquinhas de mármore, raiadas de rosa e cinza, e se foi. Mas o quadro se alterou por completo. No primeiro momento, era irreconhecível, irracional e inteiramente desfocado. Não havia como relacionar tais plaquinhas a qualquer objetivo humano. Porém, depois, certo processo lógico começava pouco a pouco a entrar em ação a seu respeito, para ordená-las e arrumá-las e trazê-las ao âmbito da experiência comum. Por fim se perceberia que não eram senão cartas. O homem tinha trazido o correio.

Sobre a mesa de tampo de mármore, lá estavam elas, todas a princípio pingando luz e cor, não digeridas nem assimiladas. E era estranho então ver como se contraíam, se harmonizavam, se compunham e se tornavam parte do quadro, recebendo aquela quietude e imortalidade que o espelho conferia. Jaziam investidas de uma nova realidade, de uma nova significação e também de mais peso, como se fosse necessário um formão para desalojá-las da mesa. E, quer isso fosse ou não fantasia, pareciam ter se tornado, não simplesmente um punhado de cartas eventuais, mas sim plaquinhas gravadas com a verdade eterna — sendo possível lê-las, saber-se-ia tudo que havia para ser sabido sobre Isabella, sim, e também sobre a vida. Dentro daqueles envelopes de aparência marmórea, as folhas deviam ser cortadas a fundo e densamente eivadas de sentido. Isabella viria para os apanhar um a um, bem devagar, abri-los para ler com atenção, palavra por palavra, e depois, com um profundo suspiro de compreensão, como se ela já tivesse visto a essência de tudo, rasgar os envelopes em pedacinhos, amarrar as cartas juntas e fechar a chave a gaveta do armário, em sua determinação de ocultar o que não desejava que se tornasse notório.

Tal ideia servia como um desafio. Isabella não queria ser conhecida — mas não conseguiria mais escapar. Era absurdo, era monstruoso. Se ela sabia tanto e ocultava tanto, a alternativa que restava era abri-la à força com a primeira ferramenta de que se dispunha — a imaginação. Nesse exato momento, era preciso fixar a atenção nela. Era preciso retê-la, segurá-la ali onde estava. Recusar-se a continuar a ser descartado por dizeres e afazeres que a ocasião produzia — por jantares e visitas e conversas polidas. Era preciso pôr-se em sua pele, saber onde lhe apertava o sapato. A se tomar literalmente a frase, seria fácil ver os sapatos nos quais estava metida, lá embaixo no jardim, nesse momento. Eram muito estreitos e compridos e à moda — feitos do mais macio e flexível couro. Como tudo que ela usava, eram refinadíssimos. E ela haveria de estar na ponta dos pés, sob a alta cerca-viva na parte mais baixa do jardim, erguendo a tesoura que trazia presa à cintura para cortar uma flor seca ou um galho que crescera demais. O sol lhe bateria em cheio no rosto, nos olhos; mas não, no momento crítico um véu de nuvem cobriria o sol, tornando duvidosa a expressão de seus olhos — seria essa de ternura ou de troça, de fulgor ou de enfado? Podia-se ver apenas o indeterminado contorno de seu rosto fino e definhado a olhar para o céu. Ela estava pensando, talvez, que tinha de encomendar uma nova proteção para os morangueiros; que tinha de mandar flores à viúva de Johnson; que já era tempo de ir fazer uma visita aos Hippesley em sua nova casa. Dessas coisas, com certeza, é que falava no jantar. Mas as coisas das quais ela falava no jantar eram cansativas. Seu modo mais profundo de ser é que se queria captar e converter em palavras, o modo que para o espírito é o que é a respiração para o corpo, o que se chama de felicidade ou infelicidade. À menção dessas palavras se tornava óbvio, decerto, que ela devia ser feliz. Era rica; era distinta; tinha muitos amigos; viajava — comprava tapetes na Turquia e vasos azuis na Pérsia. Aleias de prazer por aqui e ali se aclaravam onde ela erguia a tesoura para podar ramos trêmulos, enquanto as nuvens rendadas lhe velavam a face.

Então, com um brusco manejo da tesoura ela cortou o ramalhete de clematite, que caiu no chão. Ao cair, trouxe junto sem dúvida um pouco de luz também, permitindo penetrar ainda mais em sua vida e pessoa. Ternura e remorso enchiam-lhe a essa altura o espírito... Podar um ramo que crescera demais a entristecia, porque nele houvera vida e a vida lhe era cara. Sim e, ao mesmo tempo, a queda do ramo sugeria que ela também haveria de morrer, que tudo era futilidade e evanescência das coisas. E mais uma vez então, agarrando-se a essa ideia com seu bom senso instantâneo, ela pensou que a vida a tinha tratado bem; sua queda, ainda que inevitável, seria para jazer na terra e suavemente apodrecer nas raízes das violetas. Assim pois, ali em pé, ela ficou pensando. Sem formular qualquer ideia precisa — porque era uma dessas pessoas cujas mentes têm pensamentos enredados em nuvens de silêncio —, via-se repleta de ideias. Sua mente era como sua sala, na qual as luzes avançavam e retrocediam, fazendo piruetas, dando passos delicados, desdobrando caudas e abrindo espaço a bicadas; todo seu ser era banhado, como de novo a própria sala, pela nuvem de algum conhecimento profundo, algum lamento não expresso, e ela se via então cheia de gavetas trancadas, recheada de cartas como seus armários. Falar de "abri-la à força" como se ela fosse uma ostra, aplicar-lhe qualquer ferramenta que não a mais maleável, a mais afiada e penetrante, seria absurdo e ímpio. Era preciso imaginar — ei-la que aparecia no espelho. E isso causava um sobressalto.

A princípio ela estava tão distante que era impossível vê-la com nitidez. Andava lenta e pausadamente, ora endireitando uma rosa, ora levantando um cravo para cheirá-lo, mas não parava nunca; e de instante a instante tornava-se maior no espelho, de modo a completar-se cada vez mais a pessoa em cuja mente se tentava entrar há algum tempo. Gradualmente o observador a examinava — ajustando as características que havia descoberto naquele corpo visível. Lá estavam seu vestido verde-cinza, seus sapatos compridos, sua cesta e algo que cintilava em seu pescoço. Tão devagar ela vinha que nem parecia desarranjar a própria imagem no espelho, mas tão só lhe acrescentar algum elemento novo que suavemente se movia e alterava os demais objetos, como se lhes pedisse, com polidez, que dessem espaço para ela. E assim as cartas e a mesa e a trilha de grama e os girassóis, que já se achavam à espera no espelho, apartavam-se abrindo caminho para admiti-la em seu meio. Finalmente lá estava ela, no vestíbulo. E ali parou completamente. Parou em pé junto à mesa. Parou sem nem se mexer. De imediato o espelho passou a verter por cima dela uma luz que a parecia fixar; que era como um ácido a corroer o que fosse superficial e dispensável, deixando apenas a verdade. Era um fascinante espetáculo. Tudo de si caía — nuvens, vestido, cesta, diamante —, tudo que se havia chamado de trepadeira e ipomeia. Ali estava a parede dura por trás. Ali estava a própria mulher, desnuda e em pé na luz impiedosa. E nada havia. Isabella estava completamente vazia. Não tinha ideias. Não tinha amigos. Não se importava com ninguém. Quanto às suas cartas, não eram todas senão contas. Via-se, nisso que ela ali se plantava, angulosa e idosa, enrugada e veiada, com seu nariz empinado e estrias pelo pescoço, que nem sequer se preocupava em abri-las.

Ninguém deveria deixar espelhos pendurados em casa.

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