Era tempo de Sabá e havia finalmente chegado ao pequeno município de Barra do Corda. Eu iria morar com minha tia, enquanto estudava no Instituto de Ciências Ocultas, que era muito renomado e prestigiado em todo o país pelos grandes nomes que dali saíram, como o gênio e enigmático Alberto Bittencourt que escreveu o livro "Os Sete Selos dos portões de Ghiliate". Meu pai me arranjou um emprego como redatora no jornal "O Norte", o que não foi difícil já que meu pai era um renomado político republicano e também amigo do jornalista Frederico Figueira, que era conhecido por seus textos contra a monarquia. Percebi então que o nome de minha família ainda tinha peso naquela cidade, e eu poderia usar isso a meu favor.
Meu pai me tirou de São Luís, pois havia rumores de guerra, por toda parte podia-se ouvir boatos de conspirações internas e outras muitas politicagens do tipo mais baixo possível. Ele enviou-me a esta cidade no interior dos sertões maranhenses, pois a princesa do sertão, estando no coração do Maranhão, era indiferente aos assuntos à sua volta, seja pela ignorância ou por outros motivos. Era sabido que as elites das cidades no interior do estado, não tinham boa relação com a elite ludovicense da capital, por estes últimos serem portugueses por demais.
Já não vira minha tia desde que era muito pequena e não me lembrava muito de como ela era e provavelmente ela também não se recordaria de mim. As lembranças que resistiram ao tempo me traziam as recordações de uma mulher gentil e engraçada, que me presenteava com doces e brinquedos. Sabia que Claudia Milhomem era uma artista renomada por suas pinturas fantásticas que representavam o mundo dos sonhos, este mundo era oculto para a maioria, mas para Claudia era como uma praça na qual brincara desde a infância, pois ninguém conseguia representar paisagens oníricas como ela. Por ser uma mulher que conseguira fama própria através de seu trabalho, algo que eu almejava, tinha a certeza de que era uma mulher excepcional, que iria me ensinar coisas fantásticas.
O centro da cidade era muito movimentado, era certo que Barra do Corda era uma cidade com futuro próspero. Na feirinha havia diversas barraquinhas envolta do mercado público, vendia-se legumes, frutas e verduras, também havia leiteiros com seus grandes latões de alumínio na frente do açougue que ficava ao lado do mercado. Podia-se sentir o cheiro do pão quente que vinha da Padaria da Dona Benta. A Casa da Pecuária tinha grandes sacos de variados tipos de rações na fachada. Era tudo colorido, tudo vivo. As carroças vinham e partiam trazendo e levando os produtos das famílias agricultoras. Pessoas se espremiam pelas ruas e avenidas daquele pequeno e próspero centro urbano.
A rua que eu procurava ficava próxima da prefeitura da cidade, este edifício por sinal, era a construção mais bela da cidade, pois tentava igualar os moldes helenísticos dos gregos. Eu podia ver o Monte Calvário erguendo-se majestoso, sendo coroado pela capela assentada no topo, havia casinhas espalhadas de forma esporádica em seu entorno.
A rua poderia passar despercebida de tão apertada, parecia um beco, a carroça não poderia passar então desci e o carroceiro, Frank, me ajudou a levar as bagagens. Cada casa do lugar era colada na outra, como se lutassem por um espaço, me senti claustrofóbica e uma agonia se apossou de mim por um momento. Frank, disse-me que o motivo foi o mau planejamento, aquela era uma das primeiras ruas da cidade. Chegamos até a velha casa de minha tia, na porta pendia uma aldrava de ferro que fora moldada no formato de uma gárgula. Olhei para conferir se o endereço estava correto, estava.
Ao bater na porta ela se abriu e uma figura surgiu das sombras, já era de idade avançada, de fato, mas ainda aparentava os belos traços provindos de uma boa família portuguesa. Vestia um lindo vestido negro de veludo de seda com lantejoulas, tinha olhos verdes que eram perfurantes, seus cabelos, agora esbranquiçados, antes foram de um negrume intenso. Um lindo colar pendia em seu pescoço, com uma pedra vermelha, talvez um rubi, em um acabamento de ferro negro. Apesar de não me lembrar de suas feições, ela era exatamente o que imaginava, uma figura imponente.
"O que você quer?" Disse a velha mulher, o som de sua voz soava indiferente, talvez por não ter me reconhecido, afinal, não me vira desde muito tempo também. Éramos duas estranhas uma para outra.
"Sou eu tia, a filha de seu irmão, Emanuel Milhomem." Esperava eu que tal resposta a fizesse finalmente me reconhecer. Porém, a mulher ainda passou um tempo pensando antes de me responder.
"Ah! Agora me lembro, entre, vamos entre..." dizia, me puxando para dentro da residência.
Levamos minhas malas à sala de entrada, o lugar era estranhamente mais espaçoso do que se imaginava. Fazia um frio intenso e o ambiente era escuro, com a exceção de algumas lamparinas iluminando algumas partes dos cômodos. Havia teias de aranha por todo o lugar, a mulher tinha um certo desleixo com a limpeza, pois pelo que percebi não havia nenhuma empregada ali. Um odor estranho cobria o ar, um cheiro de casa velha, madeira podre e uma mera sugestão de algo mais... desprezível. Dispensei o carroceiro, dando-lhe uma quantia generosa, o homem agradeceu e saiu às pressas daquela rua, pensei se algo o assustava.
Tia Cláudia me levou até meu quarto que ficava no andar superior, nos fundos da casa. Havia uma janela que dava vista para o quintal. O odor estranho persistia, na verdade, intensificou-se por todo o lugar, mas o ignorei, casas velhas cheiravam a madeira e barro certo? O meu quarto era modesto, diferente do meu aposento luxuoso no casarão em que morava em São Luís, mas seria suficiente. Arrumei minhas coisas no armário com meticuloso cuidado, queria mostrar que era uma mulher de esmero.
Quando a noite chegou, ela me convidou para a janta, como eu estava muito esgotada da viagem, disse a ela que gostaria de dormir, porém, ela insistiu que eu a acompanhasse na refeição.
"Você já é uma mulher feita e precisa se alimentar direito. Passou esses dias em viagem e deve estar faminta! Venha, venha logo." foi o que disse e não consegui recusar.
A sala de jantar estava como o resto da casa, suja. A mesa estava coberta de poeira e pude até mesmo ouvir o bater de asas dos morcegos no breu a minha volta.
Ela me serviu um prato de ensopado, experimentei a primeira colherada e não gostei nem um pouco, o cheiro era desagradável, senti vontade de cuspir de volta ao prato, mas como a mulher estava me olhando, juntei forças para engolir.
"Então, o que veio fazer na cidade, sobrinha? Planeja ficar muito tempo?"
"Pelo visto meu pai não explicou nada" pensei. "Planejo passar um tempo aqui até completar meus estudos, tia. Meu pai não lhe enviou nenhuma carta?"
Cláudia nada disse, pensou por um momento, deu uma colherada saboreando aquele repugnante ensopado e então falou:
"Se enviou alguma carta, esta não chegou até minhas mãos. No meu tempo a mulher não estudava, era prendada para servir seu marido, o que teu pai tem na cabeça te mandando estudar? É um tolo é o que eu digo, deveria estar mais preocupado em arranjar-lhe um marido adequado." Ela deu a última colherada no ensopado e se levantou, "vejo que não vai comer, não gostou da minha comida? Se não vai comer, então peço que vá dormir, descanse... pois a noite é longa. Peço que não saia do seu quarto durante a noite, a casa é velha e o piso faz muito barulho, meu sono é leve e desperto com facilidade."
Ignorei os comentários desagradáveis de minha tia, pois não seria bom discutir com minha anfitriã. O tom de voz na mulher era um pouco estranho, tinha um certo ar de divertimento e maldade. Eu me levantei e voltei aos meus aposentos, tranquei a porta e me deitei. Não gostaria de ocupar o mesmo aposento daquela senhora novamente. Havia me enganado, acreditei que Claudia Milhomem fosse uma mulher a frente de seu tempo, pronta para receber novas ideias, muito pelo contrário, estava com a mente presa em eras passadas, retrógrada sem dúvidas.
Passei algum tempo refletindo sobre bruxas, não sei bem por quais motivos, me refiro aquelas vilãs dos contos de fadas que meu pai me contava, seria tia Cláudia uma? Ela não tinha a aparência de uma bruxa tradicional, apesar de cheirar e falar como uma, segundo as histórias que papai me contara. Estas fantasias vinham como ondas e invadiam meus pensamentos, atormentando-me no decorrer da noite.
Resolvi investigar o sobrado, não conseguia dormir e estava cheia de curiosidades sobre quais segredos adivinham daquela antiga residência, abri a porta lentamente e nas pontas dos pés passei pelo corredor. Havia lugares peculiarmente espaçosos na casa, outros cômodos eram perturbadoramente apertados, tive de atravessar um certo corredor me arrastando de lado, haviam tantos lugares na casa que tive medo de me perder e não ser mais achada, era um verdadeiro labirinto! Então consegui depois de muito esforço voltar à sala da entrada. Um som peculiar chamou-me a atenção e me levou até a cozinha, notei um brilho vindo do porão que estava com a porta aberta, ao me aproximar, senti um calor que emanava do lugar.
Fui de mansinho descendo a escada, um pé por vez, fiquei no limite da parede que me protegia de ser vista, estiquei-me para tentar olhar o que se passava. Então vi tia Cláudia mexendo um grande caldeirão, dentro um líquido verde borbulhava. Ela assobiava uma canção alegre, estava entretida com tudo aquilo, havia um riso maligno em sua face. Voltei rapidamente ao meu quarto e tranquei a porta.
"Ela é uma Bruxa!" exclamei de forma que só eu mesma poderia ouvir.
Na manhã do dia seguinte fiquei trancada em meu quarto, e não tinha motivos para sair. A mulher não em nenhum momento perguntar-me como estava, em certo momento a curiosidade falou mais alto e resolvi averiguar o que a mulher andava fazendo. Eis que vejo vozes vindo do quarto dela e quando olho pela brecha da porta, vejo que a mulher estava na frente de um grande espelho oval, conversava com ele. Entre algumas frases, uma em especial me chamou a atenção.
"Tudo está pronto! As palavras já me foram reveladas... O quê? Como não pode ajudar-me? Não importa, farei tudo sozinha!"
Acho que podem imaginar o terror que trespassou meu corpo, minhas pernas tremeram e foi com dificuldade que retornei ao meu quarto e tranquei novamente a porta. Quando minha tia bateu na porta e me perguntou se eu estava doente, respondi que só estava cansada. Por todos os deuses, com quem ela falava no espelho? Se é que alguém de fato havia ali. No outro dia a mulher veio até meu quarto.
"Irei estar ocupada durante o dia todo, peço que não saia do seu quarto, mesmo que ouça barulhos estranhos..." disse secamente, o tom era uma advertência ofídica.
Devia ser meia noite quando escutei um barulho no teto, como se algo grande estivesse andando com passos disformes, como uma aranha gigante. Agora os passos estavam mais próximos... e mais próximos do meu quarto. Tive a impressão que a coisa estava tentando abrir a janela para entrar. Antes de ouvir estes passos tarantulescos, lembro das vozes que ouvi, vinham do porão, palavras no que parecia ser um latim arcaico. Me levantei assustada e corri até a porta, ao sair, passei pelo corredor em direção ao quarto de tia Cláudia, mas estava vazio, observei o espelho oval e nada constatei que fosse estranho ou anormal. Exceto pelo fato de ser um espelho muito antigo, provavelmente do século XVIII. Não pude conter a minha curiosidade e abri as gavetas da escrivaninha perto da cama, havia jornais antigos e algumas fotos. Aquele odor que senti quando cheguei, agora era muito forte, e vinha do grande armário. Quando o abri e vi que lá dentro... estava um corpo em decomposição! Não pude conter um grito, eu estava paralisada vendo tal abominação. Devido ao estado avançado de putrefação, já não se podia distinguir se era homem ou mulher. Ouvi passos rápidos vindo do corredor, não poderia ser Cláudia, pois nenhuma senhora daquela idade poderia se mover tão rápido.
"Ora, ora... o que faz em meu quarto, sobrinha?" Uma voz agourenta veio detrás de mim.
Me virei e lá estava, tia Cláudia, completamente nua e segurando uma faca em mãos. Em seu fino pescoço pendia aquele colar, porém, o rubi estava mais brilhante do que nunca. Ela correu em minha direção, berrando de forma grotesca, eu desviei do primeiro golpe, quando ela tentou me acertar novamente, tropeçou, cambaleou e caiu. A faca adentrou sua barriga e um mar de sangue jorrou, escutei a velha gemer de dor e então morreu. Eu corri para fora da casa, na apertada rua os gritos de tia Cláudia haviam acordado à todos, um por um foi saindo os moradores, curiosos para saber o que estava acontecendo, amontoando-se na estreita rua.
Quando me perguntaram o que havia ocorrido, eu expliquei como pude diante do meu atual estado de horror.
"Minha tia tentou me matar! Tia Cláudia tentou me matar!" disse de forma histérica.
Dois homens adentraram a casa e voltaram em estado de espanto, um deles disse ter visto o corpo da mulher moribunda no chão.
"Eu conheço a senhora Cláudia há muito tempo, posso afirmar que aquela jazendo morta no chão não é a dona Cláudia, isto eu garanto."
Depois de alguns dias, quando meu estado de pavor passou, fiquei a par dos fatos. Aquela mulher que me recebeu era na verdade uma insana que havia fugido do Hospício dos Cajuais, seu nome era Ágata Drummond, estava escondida na casa de minha tia, depois de assassiná-la, escondeu seu corpo no armário do quarto e tomou seu lugar.
João de Arlekinom