Era um entardecer modorrento, parado, como costuma ser o fim do dia no campo. Na ponta da várzea começava a subir uma fatia de lua, o gado refluía vagarosamente aos paradouros e as galinhas de compridas asas e penas sujas de terra já não ciscavam na frente do galpão, já se recolhiam também e, nas ripas do jirau, encostavam-se umas às outras para esperar a noite. Quase nenhum ruído se ouvia e Cleonir sobressaltou-se quando o piá deu um mangaço na janela.
— Eh, negro, vou ao Bororé.
Cleonir assoprou o braseiro, largou a cuia no tripé. Ergueu-se com dificuldade, careteando um bocejo.
— Bororé, Bororé, todo mundo vai pro Bororé. É Bororé pra cá, Bororé pra lá...
— Tô só avisando, não tô pedindo nada.
O negro velho debruçou-se na janela, subitamente interessado.
— Vai aonde?
O piá arrastava os arreios para a cancelinha do cercado e lançou para trás um olhar arisco.
— Ah, vai viajar — tornou Cleonir.
— Vou. Me empresta tuas maneias de trava?
— Empresto. Quer que pegue o tordilhinho?
— Não, grácias, vou com a Flor-de-lis.
— Flor-de-lis? Aquela que tô vendo ali? O guri se arreliou.
— Quer que eu monte um potro caborteiro? Quer que me estropie num tacuru?
Da janela Cleonir olhava para o tordilho, que se coçava numa trama do cercado, a ossada das ancas despontando. Cavalo velho e aguateiro, muitos anos de trabalho na pipa tinham deformado seu esqueleto: forte de peito, mas lunanco, lombo arqueado para cima e descascado pelo serigote.
— Ai-ai-ai — fez o negro, matreiro.
Capengando, afastou-se para um canto do galpão.
— Freio ou buçal?
— Freio.
Flor-de-lis cochilava na frente das casas e Cleonir a enfrenou com facilidade.
— Aqui tem, pode encilhar. Quer dizer que vai mesmo ao Bororé nessa mancarrona?
— É boa montaria.
— Boa montaria!
— Tem trote apelegado.
— Trote o quê? Ai, minha madrinha.
O guri encilhou, deu de mão nas rédeas e fez a égua arrodear à moda de bagual esquivo. Montou de um salto.
— Diz pra mãe que volto antes da janta.
— Antes da janta! Vai a galope? Negro abelhudo, pensou o piá.
Deu uma espanada de açoiteiras, a égua arrancou num trotezito chasqueiro, cangote baixo e baixava tanto que ele precisava se agarrar no santantônio para não afocinhar.
Longe, na várzea do arroio e como pendurada na lua, viu de novo a cena que no dia anterior estivera a cuidar: o touro brasino perseguindo a novilha magra. Adivinhava a baba fina dele, as ventas de sabão, o bramido surdo e ameaçador. Mais para cá, quase perto, uns urubus se alçaram de um macegal, destapando um corpinho branco. Ficaram voando em círculos, as cabeças medonhas torcidas para baixo, espiando.
Começava a escurecer quando ele chegou ao capãozinho, no lugar que escolhera durante a noite maldormida. A trilha de gado que se enfiava no mato, o chão forrado de bosta de capincho e por ali foi-se adiantando, rédea frouxa, já no passo. Flor-de-lis restolhava de manso, defendendo os troncos e a ramaria, negaceando nalgum perauzinho da sanga interna. A passarada estranhava o roçado novo, debandando forte.
A senda ia de encontro a um alambrado de três fios e se bifurcava. Lugar estreito, sujo, ele apeou devagarinho, um pé no estribo e o outro procurando o chão. De uma cacimba rasa, quase sumida entre inhames e samambaias, ai-que-susto, o rufar das asas de um pombão. Perto, pertinho, a sanga se esfregava em pedras redondas e nas duras raízes do arvoredo.
Era ali.
Lá fora, a meia-lua sobre a várzea e o sol a morrer sua velha morte de langores coloridos. Nas casas, a sombra comprida das árvores. Cleonir mateando no galpão e a brasa do palheiro abrindo uma claridade rubra ao derredor. A mãe rondando a cancela: "Bororé, meu Deus, que é que esse menino foi fazer no povo?" Ela havia de ver na várzea uma língua prateada do arroio, a mesma água que vinha dar no seu costado, sussurrante e noturnal. E ali dentro o mato ia ficando espesso, misterioso, cheio de sons, de vultos. Mais para dentro ainda, seu coração como em suspenso.
Com gestos rápidos, nervosos, maneou a égua e empurrou-a de ré contra o alambrado. Subiu no terceiro fio e se deitou sobre suas ancas. Flor-de-lis trocava de orelha, mas não era desconfiança, não, estava acostumada e para ela essas volteadas nos matos da chacrinha, carregando ginetes sorrateiros, eram menos misteriosas e sem susto algum.
Era noite fechada quando esse ginete voltou para casa, e a lua, com sua minguada teta, já aleitava um magote de estrelinhas em alvoroço. O negro velho dormitava num cepo e ao ouvir o galope levantou-se, espiou pela janela. Na porta da casa apareceu a luz bruxuleante de uma lamparina.
O guri apeou longe, soltou a égua e veio devagar, arrastando as pilchas.
— Buenas — saudou o negro.
— Buenas — disse o piá, engrossando a voz.
— Que tal a viagem?
— De regular pra boa.
— Como estava o povo?
— Como sempre.