Aventura na Sombra - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Aventura na Sombra - Conto de Sergio Faraco
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Aventura na Sombra - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 10 ago. 2024
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"Longe, na várzea do arroio e como pendurada na lua, viu de novo a cena que no dia anterior estivera a cuidar: o touro brasino perseguindo a novilha magra."

Era um entardecer modorrento, parado, como costuma ser o fim do dia no campo. Na ponta da várzea começava a subir uma fatia de lua, o gado refluía vagarosamente aos paradouros e as galinhas de compridas asas e penas sujas de terra já não ciscavam na frente do galpão, já se recolhiam também e, nas ripas do jirau, encostavam-se umas às outras para esperar a noite. Quase nenhum ruído se ouvia e Cleonir sobressaltou-se quando o piá deu um mangaço na janela.

— Eh, negro, vou ao Bororé.

Cleonir assoprou o braseiro, largou a cuia no tripé. Ergueu-se com dificuldade, careteando um bocejo.

— Bororé, Bororé, todo mundo vai pro Bororé. É Bororé pra cá, Bororé pra lá...

— Tô só avisando, não tô pedindo nada.

O negro velho debruçou-se na janela, subitamente interessado.

— Vai aonde?

O piá arrastava os arreios para a cancelinha do cercado e lançou para trás um olhar arisco.

— Ah, vai viajar — tornou Cleonir.

— Vou. Me empresta tuas maneias de trava?

— Empresto. Quer que pegue o tordilhinho?

— Não, grácias, vou com a Flor-de-lis.

— Flor-de-lis? Aquela que tô vendo ali? O guri se arreliou.

— Quer que eu monte um potro caborteiro? Quer que me estropie num tacuru?

Da janela Cleonir olhava para o tordilho, que se coçava numa trama do cercado, a ossada das ancas despontando. Cavalo velho e aguateiro, muitos anos de trabalho na pipa tinham deformado seu esqueleto: forte de peito, mas lunanco, lombo arqueado para cima e descascado pelo serigote.

— Ai-ai-ai — fez o negro, matreiro.

Capengando, afastou-se para um canto do galpão.

— Freio ou buçal?

— Freio.

Flor-de-lis cochilava na frente das casas e Cleonir a enfrenou com facilidade.

— Aqui tem, pode encilhar. Quer dizer que vai mesmo ao Bororé nessa mancarrona?

— É boa montaria.

— Boa montaria!

— Tem trote apelegado.

— Trote o quê? Ai, minha madrinha.

O guri encilhou, deu de mão nas rédeas e fez a égua arrodear à moda de bagual esquivo. Montou de um salto.

— Diz pra mãe que volto antes da janta.

— Antes da janta! Vai a galope? Negro abelhudo, pensou o piá.

Deu uma espanada de açoiteiras, a égua arrancou num trotezito chasqueiro, cangote baixo e baixava tanto que ele precisava se agarrar no santantônio para não afocinhar.

Longe, na várzea do arroio e como pendurada na lua, viu de novo a cena que no dia anterior estivera a cuidar: o touro brasino perseguindo a novilha magra. Adivinhava a baba fina dele, as ventas de sabão, o bramido surdo e ameaçador. Mais para cá, quase perto, uns urubus se alçaram de um macegal, destapando um corpinho branco. Ficaram voando em círculos, as cabeças medonhas torcidas para baixo, espiando.

Começava a escurecer quando ele chegou ao capãozinho, no lugar que escolhera durante a noite maldormida. A trilha de gado que se enfiava no mato, o chão forrado de bosta de capincho e por ali foi-se adiantando, rédea frouxa, já no passo. Flor-de-lis restolhava de manso, defendendo os troncos e a ramaria, negaceando nalgum perauzinho da sanga interna. A passarada estranhava o roçado novo, debandando forte.

A senda ia de encontro a um alambrado de três fios e se bifurcava. Lugar estreito, sujo, ele apeou devagarinho, um pé no estribo e o outro procurando o chão. De uma cacimba rasa, quase sumida entre inhames e samambaias, ai-que-susto, o rufar das asas de um pombão. Perto, pertinho, a sanga se esfregava em pedras redondas e nas duras raízes do arvoredo.

Era ali.

Lá fora, a meia-lua sobre a várzea e o sol a morrer sua velha morte de langores coloridos. Nas casas, a sombra comprida das árvores. Cleonir mateando no galpão e a brasa do palheiro abrindo uma claridade rubra ao derredor. A mãe rondando a cancela: "Bororé, meu Deus, que é que esse menino foi fazer no povo?" Ela havia de ver na várzea uma língua prateada do arroio, a mesma água que vinha dar no seu costado, sussurrante e noturnal. E ali dentro o mato ia ficando espesso, misterioso, cheio de sons, de vultos. Mais para dentro ainda, seu coração como em suspenso.

Com gestos rápidos, nervosos, maneou a égua e empurrou-a de ré contra o alambrado. Subiu no terceiro fio e se deitou sobre suas ancas. Flor-de-lis trocava de orelha, mas não era desconfiança, não, estava acostumada e para ela essas volteadas nos matos da chacrinha, carregando ginetes sorrateiros, eram menos misteriosas e sem susto algum.

Era noite fechada quando esse ginete voltou para casa, e a lua, com sua minguada teta, já aleitava um magote de estrelinhas em alvoroço. O negro velho dormitava num cepo e ao ouvir o galope levantou-se, espiou pela janela. Na porta da casa apareceu a luz bruxuleante de uma lamparina.

O guri apeou longe, soltou a égua e veio devagar, arrastando as pilchas.

— Buenas — saudou o negro.

— Buenas — disse o piá, engrossando a voz.

— Que tal a viagem?

— De regular pra boa.

— Como estava o povo?

— Como sempre.

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