Manilha de Espadas - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Manilha de Espadas - Conto de Sergio Faraco
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Manilha de Espadas - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 11 ago. 2024
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"O guri saltou da cama, também ele se deitara sem tirar as alpargatas. Decerto revivendo outras madrugadas de um mesmo ritual."

Na rua principal daquele povo havia uma barbearia, um bolicho de miudezas, uma ferraria e a pensão de Pepeu Gonzaga, além de umas poucas casas com quintais profundos e nenhuma cerca divisória. Numa delas funcionava a igreja, noutra o posto de saúde, que só abria às terças, quando vinha plantonear a enfermeira de Itaqui.

Anoitecera, uma grande lua se equilibrava na cumeeira da ferraria e apenas dois focos de luz despontavam da massa escura do casario. Um deles, muito débil, era num rancho meio arretirado, onde agonizava uma criança. O outro, tão forte que até clareava a rua, era a janela da pensão, em cujo refeitório reinava um lampião pendurado no teto.

Nenhuma brisa e só a tropilha dos bichos de luz enveredava pelo janelão escancarado. Alguns homens jogavam cartas, o dono da pensão era um deles e ao todo eram quatro, formando as duplas que se atracavam: o Comissário Boaventura, parceiro de Pepeu na carpeta daquela noite, o mulato Isidoro, cabo da Brigada e chefe do destacamento local, e um forasteiro, hóspede da pensão desde dois dias, cujo nome ninguém sabia ou perguntara.

Era o estranho quem jogava.

— Truco — disse, baixo.

Era um homem de porte amediado e retacudo, mui recheado de pulso e mãos calosas, descascadas pela agrura de algum serviço ingrato. Trazia a barba por fazer, a cabeça enterrada num boné branco e melenas como pouco se viam naquele pago, longas de espanar os ombros e sujas e bem embaraçadas. Calçava alpargatas velhas, e o demais de sua indumentária podia divertir ou inquietar: uma calça puída de um incrível veludo e uma antiga e manchada túnica militar, cuja gola se mantinha erguida nas laterais do queixo.

Pepeu Gonzaga o vigiava com disfarce, tentando convencer-se de que o outro adversário, Cabo Isidoro, dera-lhe a senha dentro dos conformes. Aquela mão era de arremate, podia puxar dois tentos e se chegasse a puxar três empilhava mais um touro na dupla contrária.

— Quero mesmo — disse o dono da pensão, e logo arriscou: — Quero retruco!

— Quero vale-quatro — repicou o forasteiro, batendo com o punho na mesa, olhos ariscos procurando os daquele que, na lei do jogo, devia ser seu companheiro. O cabo olhava para as cartas expostas, quase ausente.

Pepeu Gonzaga conferiu os tentos, indeciso. Nessa volta corria plata de bom peso e com um vale-quatro topava o risco de um final entreverado. O brigadiano dera a senha de um três, cartinha cevada, muito própria para um talho da manilha de espadas, mas quem garantia que o melenudo, desconfiado, não mentira ao companheiro? Fitou de relance o cabo, que continuava quieto, de cabeça baixa.

No envido e no real-envido, na flor e na contra-flor, no truco, retruco e no vale-quatro, assim como nas senhas ou morisquetas que correspondem ao valor das cartas e, principalmente, na charla tramposa dos jogadores, o truco é um jogo que desmuda o homem do avesso. Numa roda às ganhas, seja em cima de mesa, no chão batido de um galpão ou debaixo de carreta, se destapam as grandezas e as miudezas das criaturas, sua nobreza ou sua vilania, e um bom orelhador de almas, naquele refeitório, veria no Comissário Boaventura o servilismo astuto de um lambedor de espora, em Pepeu Gonzaga o covarde que canta de galo quando amadrinhado, veria também que o cabo era mau peixe, tipo acanalhado que vomitava o trunfo para traicionar o companheiro. Deste, porém, não veria nada, exceto vaga determinação para qualquer coisa indefinida. Porque também é assim esse jogo de capricho: vê-se através dele que certas pessoas são como as pedras. E esta era a matéria de que parecia compor-se a fisionomia do forasteiro.

— Aceito — disse Pepeu Gonzaga, ferindo a regra do jogo e só para ganhar tempo.

— Aceito não é quero.

O cabo mordiscou o beiço, era a confirmação do três.

— Quero mesmo — gritou o dono da pensão.

O forasteiro largou o três na mesa com gesto algo enfastiado, Pepeu Gonzaga apontou o queixo para Boaventura.

— Dê-lhe com a manilha, comissário.

— Carta de respeito — disse o forasteiro.

— Mala suerte, amigo — disse Boaventura, desvirando o sete de espadas. — Mas não se aflija, entre gente de bem tudo se arregla.

— Natural — tornou o outro.

— Quando quiser a gente dá o desquite — interveio Pepeu, juntando as cartas. — Vale o mesmo pro cabo.

Convidou a parceria para um trago por conta da casa. Veio a bebida, meia garrafa de canha que serviu em porções rigorosamente iguais, em quatro canecos de alumínio.

— Se mal pergunto — indagou o cabo —, o ilustre trabalha em quê?

— Por conta.

— Ah, sim... e é a primeira vez que vem ao povo, acertei?

— No miolo.

— Eh, cabo, investigando meu hóspede? — mofou Pepeu Gonzaga.

— Nem pense nisso, Seu Pepeu.

O comissário pôs a mão no ombro do forasteiro.

— A gente conhece quem cruza por aqui, é aquela arraia miúda que vai a Uruguaiana pra chibar na ponte internacional.

Não é o caso do amigo, claro.

— Claro — repetiu o forasteiro, e pela primeira vez seu rosto denotou expressão mais forte: como impaciente, arredou o ombro da mão do comissário.

Acertaram as contas, e mais tarde, quando o homem retirou-se para o quarto, Pepeu Gonzaga acompanhou o cabo e Boaventura até a porta da frente. Noite clara, com a lua redondeando já muito acima do telhado da ferraria, mas a rua continuava escura. O lampião do refeitório fora apagado e apenas lá no longe, no ranchinho, persistia a vela do inocente encomendado.

— Quanto tenho aí — cobrou o cabo.

— Mil e duzentas. Confere?

— Confere.

Boaventura viu o dono da pensão contar o dinheiro e entregá-lo ao cabo. Em seguida recebeu sua parte.

— Grácias.

Era um trato antigo. Arribava um visitante à pensão, Pepeu avisava os outros e, de combinação, desbuchavam o infeliz. Às vezes as pessoas eram alertadas, mas se achegavam para orelhar o jogo e quase nunca resistiam. Que outro passatempo encontrariam os homens naquele rincão olvidado pelo mundo? Uma rua principal, descalçada, cortada por outras que eram quase trilhas, uma barbearia, um bolicho, uma ferraria, o remédio era carpetear com Pepeu Gonzaga, pois a Boate Copacabana, lá na ribanceira do arroio, o comissário tivera de fechar porque a proprietária se arrenegava de pagar por mês a proteção. E o já escasso mulherio fora debandando aos poucos, na carroça do leiteiro ou no caminhão do dáier, levando embora os lampiões de tubo vermelho, os vestidos estampados, os cheiros de Amor Gaúcho, o bandônio, as milongas, as emoções e os pequenos tumultos das noites do povoado.

Os três homens despediram-se na beira da valeta que corria junto à porta, carregando os detritos das casas. Pepeu deixou o cabo afastar-se e disse ao comissário:

— Compadre, fique de olho no melenudo.

— Algum problema?

— Não, mas... ele viu que o cabo me passou a senha. Não lhe parece um tipo calavera, meio atrevido?

— Impressão sua, Seu Pepeu.

— Não, não, compadre, eu nunca me engano.

— Bueno, amanhã mando o cabo indagar dele.

No quarto, sentara-se o forasteiro no chão duro, ao lado da cama onde dormia um menino. Dobrou a túnica ao jeito de travesseiro, bem perto o castiçal com a vela e a cantoria dos mosquitos que se bandeavam para sítios mais escuros. Não descalçou as alpargatas. Do bolso da calça tirou um naco de fumo, três ou quatro palhas cuja espessura examinou com os dedos e contra a luz da vela. Seus movimentos descuidados acordaram o menino.

— Tio?

— Te deita, guri.

— Não tá na hora?

— Não.

O piá tornou a deitar-se, sem demora o homem ouviu seu ressonar tranquilo e fitou, como preocupado, aquele rosto pequeno emergindo da penumbra. Continuou a picar fumo, agora com alguma violência e em pedaços maiores do que no costume. Quando ajuntou porção bastante, desfiou-o com gestos rápidos, experientes. Assentou o fumo na palha que escolhera, fechou o cigarro e acendeu-o na chama da vela. Acostou-se, afinal, e fumava devagar, longas tragadas que avermelhavam seu rosto e os olhos abertos, parados. Quando o palheiro mermou a ponto de queimar-lhe os lábios, jogou-o no piso perto da janela. Durante um tempo como sem medida, tempo animal, permaneceu imóvel, mãos atrás da cabeça, e ao apagar-se a vela, desmoronando numa pasta pelos bordos do castiçal, continuou deitado, quieto. Os primeiros galos ainda não tinham cantado quando ele se ergueu e despertou o menino.

— Tio?

— Te alevanta.

O guri saltou da cama, também ele se deitara sem tirar as alpargatas. Decerto revivendo outras madrugadas de um mesmo ritual, juntaram rapidamente meia dúzia de trastes que tinham-se espalhado naqueles dois dias de hospedagem.

O piá saiu primeiro, pela janela, cruzados nos ombros os peçuelos carregados. Embrenhou-se no quintal vizinho e o homem seguiu-o com um olhar comprido até desavistá-lo entre o arvoredo sombrio. Abriu a porta e avançou pelo corredor, não para a rua, mas na direção oposta, para o fundo, onde moradiava Pepeu Gonzaga. Se o guri tivesse ficado, escutaria logo após um estalo de porta, uma voz em falsete entrecortada, um baque surdo, escutaria o silêncio... e passos, depois, no corredor. Mas o guri nada ouviu. Parado na esquina da rua, apenas avistou o tio deixando a pensão pela porta da frente, com aquele andar abalançado que aprendera a conhecer de longe e mesmo nas noites mais fechadas. O homem aproximou-se e entregou-lhe um fornido embrulho, que ele guardou, compenetrado, em seus peçuelos.

— Vamos — disse o homem.

A fronteira, o rio, caminhada de uma hora quando muito. Não era longe, mas à noite e com mato pela frente nem sempre dava de apurar o passo.

— Vê a lanterna.

O guri mexeu e remexeu no seu carregamento, entreparou.

— Ai, tio...

— Que foi?

— Me esqueci da lanterna lá no barco.

— De novo? Que é que tu tem dentro desse teu bestunto? O guri tornou a procurar, agitado.

— Me esqueci mesmo...

— Mas eu não — disse o homem, chumbando-lhe o facho de luz nos olhos.

— Puta merda — reagiu o piá, muito arreliado, e já foi boleando os peçuelos no chão. — Pronto, não carrego mais essa porcaria.

— Carrego eu — disse o homem, divertido. — Toca, chega de conversa fiada.

No fim da rua, ao cruzarem pelo rancho que no começo da noite era um luzeiro, o homem se persignou e cutucou o guri, que o imitou. A noite madrugava num silêncio frágil, quebrado de longe em longe por mugidos de algum touro inquieto, relinchos de potros, guinchos de corujas, notícias do mundo agreste e invisível que eles agora teriam de atravessar.

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