Travessia - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Travessia - Conto de Sergio Faraco
C O N T OLiteratura

Travessia - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 11 ago. 2024
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

"Foi de propósito que Tio Joca escolheu aquele dia. Por toda a manhã o ar esteve morno, abafadiço. Antes do meio-dia o tio se resolveu, embarcamos na chalana e cruzamos o rio."

Foi de propósito que Tio Joca escolheu aquele dia. De madrugada já fazia jeito de chuva no céu de Itaqui e sentia-se no ar aquele inchume, prenúncio de que um toró ia desabar a qualquer hora. Por toda a manhã o ar esteve assim, morno, abafadiço. Antes do meio-dia o tio se resolveu, embarcamos na chalana e cruzamos o rio.

O rancho de André Vicente ficava no meio de um matinho, perto do rio, lá chegamos por volta da uma. Dona Zaira, desprevenida, preparou às pressas um carreteiro com milho verde. Para rebater, André Vicente abriu um garrafão de vinho feito em casa, gostosura tamanha que até a mim me deram de beber quarto de caneca. Tio Joca bebeu meio garrafão e, como sempre, contou velhas e belas histórias de lutas de chibeiros contra os fuzileiros do Brasil.

Após a sesta fui à vila comprar pão, salame, queijo, o tio já saíra com André Vicente para buscar as encomendas. Dona Zaira arrumou o farnel numa velha pasta de colégio e fomos nos sentar na varanda para esperar os homens, ela costurando, eu ouvindo a charla dela. A mulher de André Vicente gostava de me dar confiança porque no tenía hijos. Não era a primeira vez que me convidava para morar com ela no Alvear.

Os homens voltaram à noite numa carroça com tolda de lona, puxada por um burro, na bolwia um baixinho de lenço no pescoço que atendia por Carlito. As encomendas eram tantas que fiquei receoso de que a chalana não flutuasse.

Tio Joca consultou Dona Zaira:

— Então, comadre, vem água ou não vem?

Ela disse que durante a tarde tinha erguido vela a Santa Rita e São Cristóvão, na intenção de um chaparrón, o tio retrucou que naquela altura, nove da noite, os santos já não resolviam e carecia negociar mais alto. Os homens deram risada e começaram a descarregar. Também tinham trazido um cesto de peixe.

O tio estava disposto a esperar até a madrugada do outro dia, mas, perto da meia-noite, uma brisa começou a soprar, em seguida virou vento e o vento ventania. De repente parou, como param os cavalos, com os músculos tensos, na linha do partidor. Veio então o primeiro relâmpago, tão forte que parecia ter rachado o rancho ao meio. A ventania recomeçou e logo o primeiro galope do aguaceiro repicou no zinco do telhado.

Tio Joca festejou a chuvarada com uma caneca que passou de mão em mão e disse a Dona Zaira que ali estava o comprovante: nos santos não dava de confiar, não mandavam nada, nos arreglos mais piçudos era preciso tratar direto com o patrão.

André Vicente e Carlito ajudaram a carregar a chalana. A ribanceira era um sabão e ainda era preciso cuidar para não dar água nos embrulhos.

Logo depois da partida de Alvear, Tio Joca mostrou uma pequenina luz vermelha que piscava no outro lado, na margem brasileira.

— Me avisa se ela se mexer.

Era o lanchão dos fuzileiros, que o tio chamava "bote dos maricas", por causa do boné com rabinho da corporação. No canto da proa desfiz o farnel.

— Come também, tio?

— Mais adiante.

É que bracejava com os remos, a chalana ia e vinha sacudida pelas espumantes marolas. Com as chuvas da outra semana o Uruguai tinha pulado fora de seu leito, e além da forte correnteza havia redemoinhos pelo meio do rio, daqueles que podem engolir uma chalana com seu remador.

A chuva continuava forte, chicoteando a cara da gente e varando a gola do capote. Tio Joca deu um assobio.

— A encomenda tá molhando, filho.

Desdobrei uma segunda lona. Me movia com dificuldade entre os pacotes e o cesto de peixe.

— Nada?

— Nada, tio.

— Parece que tudo vai bem.

Uma corrente mais forte botou a chalana de lado. Tio Joca se arreliou:

— Eta, rio de bosta!

Ele continuava preocupado e não era por nada. Estávamos precisados de que tudo desse certo. Fim de ano, véspera de Natal, uma boa travessia, naquela altura, ia garantir o sustento até janeiro.

— Tio — chamei, assustado —, a luz se apagou.

— Se apagou?

Voltou-se, ladeou o corpo, por pouco a chalana não emborca.

— Ah, guri, não vê que é uma chata passando em frente?

Agora eu via a silhueta da chata, ouvia o ronco do motor. Em seguida a luz reapareceu. Acima dela, na névoa, dessoravam as luzes de Itaqui.

— Esse cagaço até que me deu fome.

— Tem queijo e salame.

— Me dá.

Mas estava escrito: aquela travessia se complicava. A chuva foi arrefecendo e parou quando já alcançávamos o meio do rio. Tio Joca nada disse, mas eu adivinhava o desencanto entortando a boca dele. Para completar, olhei outra vez para a margem brasileira e outra vez não avistei a luz.

— Vai passando outra chata, tio.

— Ué, de novo?

Recolheu um remo, o outro n'água a manter o rumo.

— Não tem chata nenhuma.

Mas o farolete do lanchão não reapareceu.

— Agora essa! Não querem gastar a bateria esses malandros?

Cambou a chalana a favor da correnteza, mudando o ponto do desembarque.

— Vê as botas de borracha, vai ter barro do outro lado.

— Falta muito, tio?

Não respondeu. Ainda lutava com a chalana e eu ouvia o sopro áspero de sua respiração.

— Tio?

— Quieto, eles vêm vindo.

Eu nada ouvia. Ouvia sim aquele som difuso e melancólico que vinha das barrancas do rio depois da chuva, canto de grilos, coaxar de rãs e o rumor do rio nas paredes de seu leito. Mas o tio estava à espreita, dir-se-ia que, além de ouvir, até cheirava.

— Mete a encomenda n'água.

Três ventiladores, uma dúzia de rádios, garrafas, cigarros, vidros de perfume e dezenas de cashemeres, nosso tesouro inteiro mergulhou no rio. O tio começou a assobiar uma velha milonga, logo abafada pelo ruído de um motor em marcha lenta. A poucos metros, a montante, um poderoso holofote se acendeu e nos pegou de cheio.

— Tio!

— Quieto, guri.

— Buenas — disse alguém atrás da luz. — Que é que temos por aí?

Sem esperar que mandassem, o tio atirou a ponta do cordame.

— Um rio medonho, doutor tenente.

Um fuzileiro recolheu a corda e prendeu-a no gradeado.

— Que é que temos por aí? — insistiu o tenente.

— Peixe, só uns cascudos para o caldo do guri que vem com fome. O tenente se debruçou na grade.

— Peixe? Com o rio desse jeito?

— O doutor tenente entende de chibo e de chibeiros, de peixe entendo eu — disse Tio Joca, mostrando a peixalhada no cesto.

Alguém achou graça lá em cima.

— Bueno, venham daí, eu puxo essa chalana rio acima.

— Grácias — disse o tio. — Pula duma vez, guri.

O tenente me ajudou a subir e passou a mão na minha cabeça.

— Tão chico e já praticando, hein? Essa é a vida.

— Essa é a vida — repetiu Tio Joca.

Teso, imóvel, ele olhava para o rio, para a sombra densa do rio, os olhos deles brilhavam na meia-luz da popa e a gente chegava a desconfiar de que ele estava era chorando. Mas não, Tio Joca era um forte. Decerto apenas vigiava, na esteira de borbulhas, o trajeto da chalana vazia.

foto do autor

Autores Selecionados

Escritores, ensaístas e jornalistas em destaque



Merlin - Capista de Livros


SÉRIE NUM FUTURO PRÓXIMO

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST