Noite de Matar um Homem - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Noite de Matar um Homem - Conto de Sergio Faraco
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Noite de Matar um Homem - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 15 ago. 2024
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"Ajoelhado, destravei a arma. Dei um lento volteio com a mira para me afeiçoar ao clarão das brasas."

Faltava mais de hora para amanhecer e caminhávamos, Pacho e eu, como debaixo de imenso poncho úmido. Um pretume bárbaro e o rumo da picada se determinava mais no tato, pé atrás de pé, mato e mato e aquela ruideira misteriosa de estalos e cicios.

— Que estranho — disse Pacho —, às vezes escuto uma musiquinha.

— Decerto é o vento.

— Vem e vai, vem e vai. Também ouviu?

— Não, nada.

— Então é o bicho do ouvido.

Adiante, um lugar em que a picada parecia ter seu fim. Pacho acendeu a lanterna, apontando mais o chão do que o arvoredo. Na orla do facho, que alcançava o peito de um homem, rebrilhavam de umidade as folhas dos galhos baixos e atrás delas a sombra se tornava espessa, como impenetrável.

Não era o fim.

Era um minguado aberto onde o caminho se forqueava. No chão havia restos de esterco seco e a folhagem rasteira vingara em terra pisoteada. Pequenos galhos e a ramaria de última brotação quase fechavam as passagens. Uma era estreita e irregular e suja, aberta pelo gado: em janeiro, fevereiro, quando o sol abrasava os campos e bebia as aguadas, por ela havia de cruzar o bicharedo a caminho do rio. A outra, mais ancha e alta, desbravada pela mão do homem e rumbeando, quem sabe, até lenheiros ou algum pesqueiro. Por esta enveredamos, ladeando, de longe, o curso do Uruguai. O Mouro, pelas nossas contas, estava a menos de quarto de légua em frente.

— Tô ouvindo de novo.

— É o vento.

— Vento? Que vento? Parece um bandônio.

Um bandônio no mato! Se aquilo era noite de alguém ficar ao relento milongueando seus recuerdos...

— Escuta... ouviu?

— Nada.

— Ouve agora... não, agora não... parou.

— Bueno, seja o que for, não há de ser o Mouro. Pacho concordou:

— A música dele é outra.

Vindo de Bagé ou Santiago, ninguém sabia ao certo, esse Nassico Feijó, a quem chamavam Mouro, fizera daquela costa seu rincão. Dado ao chibo como nós, ninguém lhe desfeiteava o afazer, mas, com o tempo, campos e matos da fronteira, por assim dizer, foram mermando, e já não era fácil repartir trabalho. Seguido Tio Joca dava com ele no meio de um negócio, e se o ganho era escasso ficava ainda menor. Ele também se prejudicava e por isso se tornou mais façanhudo, mais violento, tão atrevido que em Itaqui apareceu o nome dele no jornal. Era o que faltava para atiçar a lei. Em nossas casas, um lote de meiáguas cercanas do grande rio, volta e meia apeavam os montados atrás dele. E adiantava dizer que não morava ali? Que não era dos nossos? Reviravam tudo, carcheavam a la farta, e enquanto isso Dom Nassico no bem-bom. Ultimamente desviara um barco nosso que subia de Monte Caseros com uma carga de uísque e cigarro americano. Era demais. Tio Joca armou um cu-de-boi e todos estiveram de acordo em que o remédio era um só.

Mas a música dele era outra, dizia Pacho. E como um sapateador de chula que deitasse o bastão n'água, o Mouro gavionava ora num lado e ora noutro do rio. Andejo sem alarde, costumava sumir depois de um salseiro. Libres, Alvear, Itaqui, Santo Tomé, de uma feita se soube que andava em Santana, doutra em Curuzu Cuatiá, como adivinhar que rumo tomaria? A pendência ia para três meses, por isso o alvoroço da vila quando um guri esmoleiro veio avisar que ele acampara a cinco horas de caminho, desarmado, solito e bem machucado. Os homens se apetrecharam, algariados, o mulherio se agarrou com a Virgem, mas o tio, que de tudo cuidava, amansou o pessoal. Nada de correria na beira do rio, nada de ajuntamento e vozearia, iam só dois e os demais se recolhiam no quieto.

Meia-noite e pico partíramos a pé, tomando estradas de tropas e contornando os bolichos do caminho. Quando as estradas se acabaram e a quietura do mundo apeou nos campos, deu para atalhar por dentro deles, varando alambrados, sangas, pedregais. De volta à costa, no mato, tivemos de achar a picada por onde o tipo se embrenhara, mas o mexerico do guri era miudinho: a duzentas braças da divisa do Eugênio Tourn com o Surreaux, perto do umbu velho arretirado do mato... E lá estávamos, já na segunda picada, debulhando pata num caminho que a cada metro se tornava mais estreito, com o corpo dolorido, as alpargatas encharcadas, tropicando como dois pilungos e encasquetados no sonho guapo de estrombar um taita. Não era assim que se aprendia? Não eram esses os causos que se contavam nos balcões, nos batizados, nos velórios?

Pacho ia na frente, o mato clareava um nada nas primeiras luzes da manhã quando ele se deteve. Assavam carne ali por perto e nos pusemos de quatro, meio de arrasto entre troncos e folhagens que margeavam a picada. Avançamos até avistar entre o arvoredo, a coisa de trinta metros, uma clareira chica, um braseiro, um espeto cravado na terra. E o Mouro estava ali, sentado, vá lambida na palha de um cigarro.

Pacho se imobilizou, e por trás, ajoelhado, destravei a arma e apoiei o cano no ombro dele. Dei um lento volteio com a mira para me afeiçoar ao clarão das brasas e prendi a respiração e não, não era palha o que levava à boca Dom Nassico, era uma gaitinha e já chegava até nós o larilalá da marquinha que ponteava. Então era ele! E quanto capricho, quanto queixume naquela melodia, às vezes quase morria numa nota aguda, como o último alento do mugido de um touro, e logo renascia tristonha e grave, como um cantochão de igreja. Parecia mentira que um puava como aquele pudesse assoprar tanto sentimento, e o mato em volta, com seu silêncio enganador, alçava a musiquinha como o seu mais novo mistério.

— Atira — gemeu Pacho, como se lhe apertassem a garganta.

Sobre nossas cabeças explodiu a fuga de um pombão, sacudindo a folharada. A música cessou. No rosto do Mouro, avermelhado pelas brasas e com manchas escuras, apenas os olhos se moveram. Um olhar arisco, intenso como o da coruja. Não podia nos ver, mas olhava diretamente para nós e era como se nos visse na planura de uma várzea.

Senti a mão de Pacho em meu pescoço, no ombro, no braço, e quase sem querer começamos a retroceder, a rastejar, abrindo caminho com os pés. Impossível que ele não tivesse ouvido. Mas não se movia. E o vigiávamos, e ele não se movia. Quando, finalmente, encontramos espaço para volver o corpo e pô-lo em pé, a claridade da manhã já esverdeava as folhas e dava o contorno dos galhos mais roliços. Retomamos o caminho a passo acelerado e com a sensação de que o mato nos mangueava pelas costas.

— E Tio Joca? Que é que a gente vai dizer?

Pacho não respondeu. A uma distância que nos pareceu segura, abrandamos a marcha. Avistamos a confusa abertura da primeira picada e cruzamos por ela, quedando à escuta. Nada, só os rumores do matagal, murmúrios da vegetação amanhecida, seus bocejos minerais.

— Que é que a gente vai dizer pro tio? Que se achicou?

Pacho teimava em não falar. Estávamos parados e ele me olhou, desviou os olhos, ficou batendo de leve com a coronha da arma no chão.

— Pois pra mim, pro meu governo... — comecei, e emudeci ao perceber que nosso embaraço tinha testemunha, o Mouro encostado num tronco e nos olhando com olhos de curioso. Vê-lo de tão perto, cara a cara... que vaza para dar de taura, como os avoengos, e no entanto estávamos, Pacho e eu, petrificados.

— Quem são ustedes?

Trazia uma ferida aberta no queixo e o nó do lenço ensanguentado. No alto da testa havia outro lanho macanudo, entreverado de cabelo e sangue seco. A manta dobrada num dos ombros escondia seu braço esquerdo, mas o outro estava à vista, pendido e com a mão fechada.

— Quem são ustedes? — repetiu, no mesmo tom.

A mão fechada fez um curto movimento, rebrilhando nela um corisco de prata. Pacho atirou no susto, eu também, e o Mouro, lançado para trás, ficou preso no tronco por um retalho da nuca e nos olhava, esbugalhado, despejando sangue pelo rombo do pescoço. Um estremecimento, outro churrio de sangue, ele se sacudiu violentamente e desabou.

— Pacho — e veio um caldo à minha garganta.

Ele não me ouviu. Sentara-se no chão, abraçado na vinchester, e chorava como uma criança.

Vomitei e vomitei de novo e já vinha outra ânsia, como se minha alma quisesse expulsar do corpo não apenas a comida velha, os sucos, também aquela noite aporreada, malparida, e a história daquele homem que aos meus pés estrebuchava como um porco. Recuei, não podia desviar os olhos e fui-me afastando e me urinava e me sentia sujo e envelhecido e ainda pude ver, horrorizado, que aquela mão agora estava aberta e empalmava só a gaitinha.

Aquele Dom Nassico... que noite!

Quando começamos a voltar ia primando o sol de pico, mas só à tardinha, depois de muito rodopio e outros refolhos, pudemos chegar e entrar novamente em casa. Ninguém veio conversar conosco, fazer perguntas, apenas Tio Joca bateu à porta, noite alta e quando todos já dormiam. Nem entrou.

— Fizeram boa viagem?

Pacho, o pobre, dormia como deleriado, eu também me emborrachara e tinha tonturas, calafrios, quase não podia falar. E adiantava falar? Choramingar que entre el sueño y la verdad o trem da vida cobrava uma passagem mui salgada? Isso o meu tio, na idade dele, estava podre de saber.

— E o homem? — tornou, apreensivo.

— Nem fez mossa — pude responder, segurando-me na porta. — Se tem barco em Monte Caseros, pode mandar subir.

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