A Voz do Coração - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo A Voz do Coração - Conto de Sergio Faraco
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A Voz do Coração - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 31 ago. 2024
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"Orlando Faria, o Gordo, era estancieiro no distrito, meio prefeito, meio delegado e meio uma porção de coisas que ele mesmo se nomeava e ninguém dizia que não."

No cair da tarde o rio ainda estava longe e se desdobrava antes dele uma lhanura, receava eu por ela e receavam também meus dois comparsas. Meia légua de pasto grosso, à vista do posteiro da divisa. Cruzar ou não cruzar. E o que se havia de fazer, se atrás vinha o bando numa alopração?

— Não sei, não — este era Pacho. — E se a gente esperar que anoiteça?

— Sou desse acordo — disse o outro, Maidana.

Eu não. Estava seguro de que tão longa espera atossicava o faro dos cachorros. E avisei: não ia ficar nem um minuto mais naquele capão em que, acossados, buscáramos refúgio. Era sair de pronto ao descampado, numa corrida até o Inhanduí, ou o Gordo ia fazer de nós uma saudade.

Pacho olhava para o céu de modo estúpido.

— E então — insisti.

— Mais um nada e a noite fecha — disse Maidana.

Não muito longe, o alarido dos cachorros. Gordo e seus homens deviam andar pelas três restingas que recém cruzáramos.

Coisa de dez minutos, se tanto, a cuscada vinha zebuar no garrão da gente.

— Vou indo — eu disse. Pacho se decidiu:

— Vou também.

— Me quedo — disse o outro.

Maidana achava que passariam ao largo, perdido o rastro no restingal de nossa retaguarda. Era duvidar demais do focinho de um jaguara. E não adiantou pedir, nem implorar, nem declarar que, ficando, já era rato de xilindró ou coisa pior, com mulher e gente miúda miseriando a la cria. Fincou pé e o bando quase ali, já se ouviam o xaraxaxá da folharada, vozes, se vinham mesmo e só o pobre Maidana, por maturrengo, carecia de fé no seu mau fim.

Orlando Faria, o Gordo, era estancieiro de conceito no distrito, meio prefeito, meio delegado e meio uma porção de coisas que ele mesmo se nomeava e ninguém dizia que não. Herdara da família um campinho de pouca bosta que logo começara a inchar. Emprestando a juro, amedrontando, escorraçando, abocanhara uma província ao arredor. Isso sem falar no que fizera ao João Fagundes. Por escassas quarenta braças que estorvavam um caminho, mandara estropiar o pobre velho. Solito no rancho, sem poder andar, morrera à míngua. Na beira do Inhanduí havia uma cruz de pau, diziam que ali fora enterrado o velho. Diziam também que era ele a alma penada que, nas noites de vento, aparecia nos galpões, montada num petiço lunarejo, a mendigar uma tigela de pirão. Ninguém duvidava. Eram tantos os defuntos atribuídos ao Gordo, impossível que pelo menos um não errasse a porteira do céu e cá ficasse a penar sua aflição.

Maidana era novato nas costumeiras do Gordo, e o bando afretado ele nem conhecia: ralé endemoniada, sem coração, que por casa e comida perdia o respeito até pelos parentes. Não se pareciam conosco, isso não. Gentio sem quimeras. E eram eles que a gente trazia desde a tarde com o bafo no cangote.

Partimos silenciosos, Pacho e eu. Às vezes parávamos para escutar os ruídos do mato ou buscar orientação — semanas antes passáramos por ali com uma carga macanuda de penas de avestruz. Já escurecia quando avistamos o fim do mato. Apressamos o passo, meio a trote entre o arvoredo esparso, e naquela ânsia de avançar um mau sucesso: me espetei num galho cortado. No flanco, no sovaco, e que pontaço.

— Quieto — rosnou Pacho, ao ouvir meu gemido.

Em frente, a lhanura. Longe, o rio, a divisa, e lá também, vigiando o descampado, o posteiro do Gordo.

— E foi!

Tiro de meia légua? Dava mais, e se era campo aberto também era pedregoso, mosqueado de cupim e tacuru e cova de touro, impossível bandeá-lo às carreiras sem trompar de pé e encalacrar o peito de seixinho miúdo e estrumeira. Mas ninguém nos viu e ao rio chegamos ressolhados, quase sem poder falar. Vadeamos com água ao peito, acima da cabeça a munição e a armaria.

— Bueno... — Pacho ofegava, satisfeito.

Procurava um lugar seco atrás do barranco, ia se deitar, mas eu ia me boleando de qualquer jeito, exausto, perdendo sangue, só agora notava que trazia uma lasca de pau no costilhar.

— Me feri — eu disse. — Tô mal. Ele se aproximou.

— Onde é que é?

— Aqui.

Tocou na lasca.

— É curta.

— Cuidado, pode causar dano.

Arrancou-a com puxão, meu grito sufocando na mão dele em concha.

— Pronto, pronto, já se foi.

Tirou a camisa, nela trabalhou com a faca e preparou uma bandagem ao contento, tão apertada quanto dava sem rasgar.

Me acomodou no chão, jeitoso como um tio.

— Quer um cigarrinho, mano? — disse ele, deitando-se ao lado.

— Daquele ou do outro?

— Do que faz sonhar. Te quitará el dolor.

— E tem?

— Sempre sobra algum farelo.

Calados, pensativos, o olhar perdido no teto do mundo, era bom e a gente se distraía naquela volteada de alturas. Surgiam as primeiras estrelinhas, chinocas arrepiadas, friorentas, como se a patroa lhes tivesse puxado o cobertor: "Meninas, tá na hora de alumiar os pajonais, os banhados e os trevais". Nuvenzinhas nesguentas pareciam imóveis, só olhando firme que se via a destreza com que cambiavam o fugaz contorno e depois fugiam, com aquela lua leprosa dando de foice atrás. A noite era fachuda, pena que o sonho muito cedo se acabou.

Lá no longe, no capão, um tiro de revólver. Sem se mover, Pacho murmurou:

— Se vieram.

Outro tiro, em seguida vários tiros que pareciam de vinchester. E os ganidos dos cachorros. E risos, gritos, assobios.

— Era uma vez o Maidana — disse ele.

Depois, só o silêncio, que parecia crescer como cresce um som. E naquele silêncio inchado, doloroso, que trazia no seu ventre um cadáver, dava uma vontade de chorar, de sair gritando, de matar também. Que falta iam fazer ao Gordo um que outro avestruz, meia dúzia de nútrias e uns poucos capinchos? Pobre Maidana, a família esperando e ele morrendo ali, a tiro e dentada de cachorro, como morria qualquer zorrilho.

Retomamos o caminho e me sentia tão enfraquecido que Pacho precisou me agarrar pela cintura. Saímos aos tropeços, tendendo para o caponal que ladeava o rio. Pouco adiante vimos a cruz do João Fagundes. Pacho se persignou e me fez passar depressa ao largo.

Que horas seriam? Umas nove, talvez dez. E andávamos agora mais devagar, sem fazer bulha, foi um susto quando chegou até nós o repique de um galope. Pacho se deteve. Me fez sentar e foi-se a rastejar, como um lagarto. Num minuto estava de volta.

— Tá do outro lado.

— Então é deles.

— Olha, veio se apear ali.

Agora eu avistava o homem, o vulto dele e a pesada sombra do cavalo, na outra margem do Inhanduí. Havia desmontado e punha-se de joelhos para beber água.

— É o posteiro — eu disse. — Vai lá e acerta as contas.

E era preciso. Naquele cu do mundo, o que podia fazer um desgraçado senão ouvir a voz do coração? Alguém tinha de pagar e não só pelo Maidana. Também pela mulher que ia cair na vida, também pelo filho que, não morrendo pesteado, ia ser ladrão que nem a gente.

Pacho era um valente, mas naquela vaza se arrenegou.

— Vamos embora — disse, muito agitado.

— Primeiro as contas.

— Vamos embora — e sua voz tremia. — Do homem não vi a feição, mas do cavalo eu juro: é o petiço lunarejo, que Deus me livre e guarde.

No outro lado, o homem já estava em pé, de costas, e apertava os arreios do cavalo.

— Assombração não bebe água — eu disse.

Era preferível uma faca penteando o nervo do pescoço. Mas eu, com aquele estropício nas costelas, se fosse não voltava. Sentado, ergui o revólver, apoiando-o no joelho. Mirei no meio das costas, e ao tiro seguiu-se um bater de asas, uma correria de capincho no mato e o eco se esganiçando em canhadas e barrancas daquele rio amargo.

O homem caiu de bruços entre as patas do cavalo.

— Me mataram — gritou. — Hijo de la gran puta, me mataram!

Como dois bichos, andando de quatro, nos metemos no mato e íamos ouvindo, cada vez mais espaçados, distantes, os gritos do moribundo. De repente um relincho atravessou a noite, e outro, e mais outro, e de repente não se ouviu mais nada. Caminhávamos.

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