O Voo da Garça-Pequena - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo O Voo da Garça-Pequena - Conto de Sergio Faraco
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O Voo da Garça-Pequena - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 31 ago. 2024
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"O senhor tem caso com mulher daqui?"

Pela segunda vez cruzava o rio naquele dia. Durante a madrugada carregara sete bolsas de farinha na margem correntina e viera entregá-las a um padeiro de Itaqui, numa prainha águas abaixo da cidade. Agora ia buscar mais sete. Serviço duro, mas López estava satisfeito. Por toda a semana estivera cheio, duas cargas por dia, e tinha a promessa de mais trinta se o fornecimento não se interrompesse.

No outro lado, amarrou a chalana no salso que era já seu ancoradouro. Agarrou o pelego que forrava o banco e saltou para a terra, pensando que em seguidinha ia ferrar no sono e descontar a noite maldormida. Mas às vezes dá nisso: um deita, tem sono e não dorme. O rio macio e suspiroso, o cheiro do barro, o verde úmido e o silêncio soltando o pensamento...

Atravessou a faixa de mato pela estreita picada que ele mesmo, dias antes, aviventara a facão, foi dar na estradita vicinal onde mais tarde viria descarregar a Fargo do farinheiro correntino. Os quilombos do Alvear ainda estavam fechados, mas era certo que num deles podia entrar a qualquer hora e até já havia entrado um ror de vezes. Com a vieja Cocona eu me entendo.

Menos de légua costa acima, depois de um banhadal e antes da primeira rua da vila, ficava o La Garza. López entrou por trás, pela cozinha, Cocona fazia pão e ele pronto ficou sabendo que o chinerio tinha saído às compras, só volvia à noitinha. Tomou uns mates com a velha, desacorçoado, já pensava em ir-se quando chegou da vila alguém que ele desconhecia. Era uma mulherinha minga, delgada, figurinha que a natureza regateara em tamanho mas caprichara no desenho. Trazia uma sacola no ombro. Cumprimentou e passou ao corredor dos quartos. López, que dizia qualquer coisa à velha, silenciou. Cocona fez roncar o mate e cabeceou para o corredor: aquela era nova na casa, Maria Rita, tinha sido mulher de um posteiro em Maçambará e o deixara para fazer a vida. Metida a ideias, mas no fundo boa pessoa. Não era certo que ficasse no La Garza, pois se dizia que o marido era violento e não se conformava.

— É um bibelô sem defeito — disse López. — Se ficar, enrica o plantel. Pegou a cuia que a velha oferecia.

— Tá bonito isso — tornou, vendo Cocona cortar a massa em pedaços iguais e dando por cima dois talhos em cruz. — Se não demora, espero.

Hum, fez a velha, então não sabia que a pressa abatumava? López sorriu, quando eu era guri, ele disse, minha mãe fazia pão dia sim dia não. E como demorava, ele disse, no inverno era a noite inteira levedando. Contou que ela largava uma bolinha de massa num caneco d'água e ele ficava cuidando, aflito, pois só quando a bolinha subia o pão era enfornado.

— Às vezes sinto aquele cheiro. Pão de mãe não tem igual, verdade?

Sí, verdad, Cocona sentou-se e fez um gracejo malicioso por causa dos odores que ele dizia sentir. Em seguida Maria Rita apareceu, vestido mudado, chinelinhas. Cocona a chamou, vení chiquita e que aquele era López, o homem dos rádios. A moça o olhou com interesse, ah, o López, comentou que os aparelhos eram bons de fato e pegavam estações de outras cidades. Cocona acrescentou que um mimo como aquele em cada quarto era complemento muito chic e impressionava a freguesia, pois nem mulher de estancieiro tinha rádio de cabeceira, tinham quando muito, e na sala, aquelas velharias tipo caixa de maçã.

— Também quero um rádio — disse Maria Rita. — Quando é que o senhor vai de novo a Uruguaiana? A velha interveio, Maria Rita não devia comprar rádio agora, sem saber se ia ficar na casa.

— Mas eu quero um pra mim, sempre quis. A senhora não precisa pagar, eu pago, é pra meu uso.

A velha tomou a cuia de volta. López, de olhos baixos, pensou que ia ficar até mais tarde no La Garza, já se afeiçoava à ideia de dar um galope naquela piguanchinha limpa e bem-feita, ainda não lonqueada por arranhão de barba e cabeceios do peludo.

— Mesmo que a menina não fique pode ter seu rádio.

— Y bueno — Cocona encolheu os ombros.

— Quanto custa um igual ao da Paraguaia? — quis saber a moça.

López deu o preço, incluindo a viagem e os pilas de sua comissão. Ela fez beicinho, o dinheiro não dava, como é caro e espiou Cocona, a velha chupava o amargo de olhos fechados.

— Com plata à mostra se pechincha — disse López. — O importante é que a menina possa adormecer com um chamamé ao pé do ouvido.

Ela sorriu, alegre.

— Então eu quero. Pra quando o senhor pode?

— Uns sete dias. Agora tô passando farinha, tenho compromisso, mas pra semana...

Cocona abriu os olhos. Meteu a mão no bolso do paletó de homem que usava, puxou um maço de dinheiro enrolado num lenço. Equilibrou a cuia no regaço e contou as notas com vagar, franzindo o cenho. Deu a López o equivalente à metade de seu preço.

— Un rojo como el de la Paragua — e como López resmungasse, cortou: — Ni un peso más.

Levantou-se, pegou a bengala atrás da porta e ia salir un rato, disse, já voltava. Disse também que sobrava meia tetera quente, mas que o casal decerto nem ia precisar de tanto. Olhou para López.

— Quedáte con la galleta de tu vieja.

López moveu-se, incomodado. Relanceou Maria Rita, a moça olhava para o chão.

— Vai querer um mate? Ela fez que não.

— Não é do seu costume?

— É, sim, mas não quero.

Ele se serviu. Maria Rita ergueu-se, da porta viu Cocona afastar-se por uma trilha entre macegas.

— Onde é que ela vai?

— E eu sei? — disse López. — Fica embromando por aí, vá chá-de-língua. Às vezes visita Dom Horácio. O velho foi caso dela quando moço, dizem. Agora enviudou e ela vai lá, proseia, toma chimarrão, decerto ficam se toureando.

— O senhor tem caso com mulher daqui?

— Eu?

— Pergunto.

— Eu não tenho caso com ninguém, nem quero.

— É melhor assim, não ter nunca... não acha?

— Pois... isso depende, não?

— O senhor sabe que sou... que fui casada? López fez um gesto vago.

— Pois é — tornou ela —, um caso antigo, de papel passado e tudo, e não deu certo. Me separei faz pouco e... — interrompeu-se, esfregou as mãos. — Ele me surrava, não me deixava conversar com ninguém.

López serviu-se novamente, muito sério.

— É a vida. E o mate, agora vai?

Ela voltou ao banquinho, cruzou as pernas.

— O senhor acha isso certo?

— Isso o quê?

— Surrar mulher.

— Pois, pra lhe dizer a verdade, até nem sei — disse ele, escolhendo as palavras. — Se é por traição, vá lá, mas surrar de graça...

— Também acho. Mulher, tendo um homem bom, é parceria pra tudo.

— Isso é — fez ele, sinceramente. — E a gente só dá valor na hora de se aliviar.

Ela desviou os olhos, López sorriu e fez roncar repetidas vezes o mate, em sorvinhos curtos.

— Eu, por exemplo, já vou pra mais de semana no seco, ombreando farinha, remando e dormindo. Isso dá nos nervos.

Qualquer dia me atraco numa ovelha.

— Credo — ela riu.

— Mas é isso mesmo... Ano passado quase tive um caso, caso sério, seriíssimo — deu uma risada —, com a borrega de um chacreiro meu vizinho. Quando eu passava pela estrada e não boleava a perna, ela me perseguia do outro lado do fio, mé e mé e dá-lhe mé, de rabinho alçado.

— Que horror — tinha dentes bonitos, um deles meio empinadinho.

— Não quer mate mesmo?

— Quero.

— Tá meio lavado.

— Não faz mal.

López ofereceu a cuia, ela descruzou as pernas, sorriu de novo.

— Já ouvi falar — disse, num tom incerto — que mulher também faz outras coisas.

— Por supuesto — quis logo concordar. — Elas cozinham, remendam, plancham, dão cria, imagine o que ia ser da gente...

— Eu acho — cortou ela —, quer dizer, não é que eu ache, eu ouvi dizer que em Uruguaiana ou no Itaqui tem uma mulher doutora, trabalha no hospital.

— Mulher doutora? Virgem!

— Pois tem. Eu ouvi no rádio da Paraguaia, trabalha no hospital.

— Nunca ouvi falar. A toda hora ando no Itaqui, em Uruguaiana, e ninguém me contou isso.

— Pode ser em São Borja, não me lembro bem.

— E faz operação?

— Não sei, diz que trabalha no hospital.

— Bueno, decerto é ajudanta.

— Por isso quero o rádio — tornou ela, com os olhos muito abertos. — Com o rádio a gente fica sabendo do que acontece no mundo, em Porto Alegre, a gente pode ter ideias...

Pronto, pensou López, ali estava o que Cocona queria dizer, uma mulher de ideias. Com certeza era mais uma querendo virar homem, como a tal doutora de São Borja e uma outra que ele mesmo tinha visto, a professora da Vila do Bororé fazendo um discurso. Mulher fazendo discurso, era só o que faltava. Ela suava no bigode. Meus correligionários, ela gritava, e suava no bigode. Um baixinho de boina retrucou que a dona precisava mesmo era de um pau-de-mijo para sossegar dos nervos.

Maria Rita ainda estava a falar de ideias, em saber ou não saber, mundo isso e mundo aquilo.

— A menina sabe que ando precisado e fica inventando novidades — disse ele. Ela alisava o vestidinho na coxa, cabisbaixa.

— Que sei eu de mundo — continuou. — O mundo que eu sei é o rio aí, a farinha, Cocona, a freguesia, esse é o mundo.

Aquilo que a gente enxerga, sente. Como isso aqui — e pôs a mão entre as pernas.

A moça empalideceu, levantou-se.

— Meu quarto é o segundo do corredor.

Quis erguer-se junto, mas uma súbita inquietude o prendeu no banco. Outro mate, um cigarro gustado com vagar, ele observava a correição das formigas na cozinha, o trotezito delas de um lado e outro, como desnorteadas, e seu pensamento vagueava igual, disperso, por vastidões que ele não reconhecia. Tentou livrar-se desses melindres com uma cuspida no chão, levantou-se, então um homem cumpridor já não tinha o direito de desentupir os grãos?

Maria Rita deixara a porta aberta e estava deitada na cama, sem o vestido. López entrou, fitou-a com um olhar sombrio. Viu no penteador um gatinho de louça, uma escova, um pente de osso, viu também o vestidinho na cadeira, dobrado, as chinelinhas juntas ao lado da cama. Tirou a campeira, desafivelou o cinto, sentindo que alguma coisa estava errada, torta, emborquilhada, alguma coisa que ele não sabia o que era... e decerto era aquilo que fazia com que sua cabeça quisesse a mulher e seu corpo o cristeasse, só formigasse em dormências. Sentou-se na cama, mudo, ela o fitava.

— Também não é assim — disse, por fim, com uma voz que lhe pareceu de outra pessoa.

— Assim como? Faz de conta que sou a sua borrega.

Ergueu as pernas e tirou a calça. Vendo-a nua, López sentiu um calor no rosto e pensou que agora mesmo ia bochar aquela mina bruaca, agarrar o pescoço dela e espremer até que pusesse para fora, pretinha, aquela língua do diabo. Salvou-a, ou salvou-o, a voz serena e boa com que ela o surpreendeu.

— Também acho que não é assim.

— Claro — disse ele, sem olhar. — Mulher não é que nem ovelha.

— Não quer deitar? — e arredou o corpo, gentil. Ele se ergueu rapidamente.

— Não, grácias — e prendeu o cinto. — A mim me agradava por demais o seu favor, mas a prosa ia boa e o tempo foi passando... meu farinheiro há de estar no mato.

— Quem sabe tu te atrasa um pouco — e López notou que agora ela o tuteava.

— Outro dia, quando trouxer seu rádio. Ela sentou-se, cobriu-se com o lençol.

— Tu vai mesmo me trazer o rádio? Não embrabeceu comigo?

— Ora, dona, quem tem que embrabecer é o boi, que é capado e tem guampa.

Ouviu os golpes da bengala de Cocona nas lajes da cozinha, vestiu a campeira. Tirou do bolso o dinheiro que a velha lhe dera e pôs em cima da mesinha, debaixo do castiçal. Ela seguia seus movimentos, mordendo o lábio.

— Não se preocupe. Numa semana boto nessa mesa um Philco vermelho de três ondas, mais tranchã que o da Paragua.

— O dinheiro — ela protestou.

López levou o braço, apertou-lhe a mão.

— Fica com a senhora, como um recuerdo meu.

Maria Rita o fitava intensamente, ele fez um cumprimento de cabeça e saiu. Ao passar pela cozinha despediu-se ligeiramente da velha e fez que não ouviu quando ela indagou se a galleta de Maria Rita também era cheirosa.

No caminho para o sítio onde deixara o barco, ia com pressa, forcejando para não pensar ou só pensando nas suas trinta cargas de farinha. À sua passagem, nos banhadais que espremiam a estradinha, debandava a bicharada: assustados dorminhocos, marrequinhas-piadeiras, tajãs gritões, maçaricos ligeiros, narcejas acrobáticas... e de um ninho de gravetos, na moita de um sarandi, alçou voo a mais graciosa de todas as aves do banhado, a garça-pequena com seu véu de noiva, suas plumas alvíssimas, e voava longe, para o alto, e era o voo mais tristonho e mais bonito. López talvez a tenha visto. Ou talvez não.

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