Bugio Amarelo - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Bugio Amarelo - Conto de Sergio Faraco
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Bugio Amarelo - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 31 ago. 2024
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"Me deixei ficar sentado, mareado, cuspindo sangue e pedaços de um dente. Zélia acendeu a luz do quarto, ouvia-lhe o nervoso cicio para o bebê. Em seguida passos, o vulto dela recortado na porta."

Era uma noite fresca e com poucos mosquitos, céu estrelado e a velha lua espalhando por tudo seu clarão de leite. Noite de cismar ao relento e no umbral do sono escutar, como a sonhar, o voo plumoso da coruja, a cantilena do rio, o rebate das chalanas amarradas. Dormir em sossego, despertar no levante do sol, com o ciscar madrugador das frangas e as lambidas dos cachorros... que outra vida podia um cristão encomendar ao taita lá no alto?

Satisfeito, estendi meu xergão sob os cinamomos, no quintal da casa de Amâncio. Era a segunda noite que ia dormir ali, confiado em que, como na primeira, ganharia a manhã com um sono só.

Amâncio subira o rio para fechar certo negócio e pedira que eu dormisse em seu pátio: com o bebê amoladinho, carecia ter alguém à mão para buscar o farmacêutico. Mas tudo corria bem. Na casa, Zélia e a criança pareciam dormir. Me deitei também, gozava os bem-estares dessa noite prendada quando ouvi um frufru macegoso no fundo do quintal. Virei a tempo de avistar uma sombra e me ergui de um salto. Quem lá estava se mostrou.

— Aqui é o Bagre, mano.

— Isso é modo de chegar em casa amiga? Levou o dedo à boca.

— Fala baixo — e espichou o beiço para a casa: — Tem bugio no bananal do Amâncio.

— Quê? Não acredito.

— Ué, então não vi o homem entrar?

Não era novo o disque-disque de que Zélia andava a pagar em natureza uma conta de leite ao pulpeiro. Duvidávamos, era sempre a Zélia, mulher do nosso Amâncio. E logo com quem, o alemão da pulperia. Aquele sim, não prestava. Bugio, Bugio Amarelo, assim era chamado por ser peludo de torso e dorso, um pelo baio que de tão cerrado parecia uma doença. Carrasco da desgraça alheia e desavergonhado, roubava no quilo e na tabuada, corvoejava os precisados para castigar no juro e na hora do acerto não era nem parente. Ferro e fogo. De um jeito ou de outro o infeliz pagava, nem que fosse com os encantos da mulher.

— Isso vai ficar assim? — disse o Bagre. Não podia ficar.

Amâncio fora a Monte Caseros comprar duzentas caixas de balas incendiárias, com venda certa para lavoureiros da região, por causa das caturras. Tipo de coisa que ninguém mais queria fazer, com medo da lei. Os tempos eram duros, os grandes lances iam rareando e a gente precisava se contentar com migalhas. Amâncio não, ele não se conformava. Eu figurava o compadre Uruguai acima, lancheando só à noite, comendo boia fria e se carneando com os borrachudos, na tenção de mermar nosso miserê. E enquanto isso, a Zélia dele empernada com o alarife. Era muito cachorrismo.

Combinamos: Bagre gritaria "pega ladrão" e eu surpreenderia o Bugio dentro de casa. Se passasse por mim, toparia com o outro na porta da rua.

Entrei pela cozinha. Bagre lá fora começou a gritar, no quarto fez-se um rebuliço, vozes sussurradas, estalos de cama, sem demora pisadas no chão de tábuas. O Bugio não passou da porta. Dei-lhe um murro de soco inglês no entreolho, testavilhou, caiu sentado. Zélia, em pânico, suplicou lá do quarto: "Hans, não deixa que me matem", e aquilo o levou ao desespero. Ergueu-se e arremeteu às cegas, como um touro. Na passada me servi, bluf, bluf e bluf, na nuca e nas costas. Tentou me cabecear o estômago, peguei-lhe o meio da cara com um joelhaço e bati com as duas mãos cruzadas no pescoço, ele gemeu, se agarrou em mim e foi escorregando, quedou-se aos meus pés como aninhado. Gelei. Estava escuro e, cá comigo, pensei que tinha matado o homem. Tal foi o meu erro, hesitar, devia saber que o Bugio não era flor. Maneou-me a perna e me derrubou com um tironeio. Perdi-o de vista, e quando quis me levantar recebi uma pancada na boca. Caí de novo e o Bugio escapou, desabalado, pela porta da cozinha. Escapou de mim e, pelo rumo que escolheu, escaparia também do meu parceiro.

Me deixei ficar sentado, mareado, cuspindo sangue e pedaços de um dente. Zélia acendeu a luz do quarto, ouvia-lhe o nervoso cicio para o bebê. Em seguida passos, o vulto dela recortado na porta.

— Quem tá aí?

Não respondi. Ela começou a recuar, mas, corajosamente, deteve-se.

— Quem tá aí? — repetiu.

Hans, não deixa que me matem — eu disse, afinando a voz. Ela arredou uma cadeira tombada e ligou a luz.

— Tu!

Aproximou-se. Procurava dominar-se, dissimular a agitação febril com que buscava coisas a dizer, explicações a dar. Estava assustada, claro, mas, para além do susto, ganhava tempo e decidia-se. Me fitava, não dizia nada, e parecia mais bela do que o fora em qualquer dia que lhe tivessem gabado o frescor e o reconhecido encanto.

— Tu tá muito machucado?

— Tô bem — eu disse.

— Tem um dente quebrado.

— Sobram outros.

— E uma racha na boca.

— Cicatriza.

Já cumprira minha obrigação, podia me levantar e ir embora, por que não o fazia? Ah, aquele olhar de susto e fogo, aqueles beiços carnudos e molhados, a camisola com um rasgão no peito, seu garbo de égua xucra, recém-coberta pelo garanhão... eu me recriminava por tais pensamentos e, confuso, me perguntava por que invernadas obscuras da alma andaria perdida a minha lealdade.

— Tem mais gente que sabe?

— Não — menti.

Foi buscar um pano úmido e sentou-se ao meu lado, num banquinho. Já se decidira pelo tudo ou nada. Os joelhos no alto forçavam a roupa a se encolher, era por gosto que mostrava as pernas, a calcinha de tecido rude bem folgada. Limpava meus lábios e sem nenhuma cerimônia já pousava a outra mão no meu regaço.

— Quer que te faça uma salmoura?

— Não precisa.

Zélia sorria, levando fé na sua vitória. Abria tanto as pernas que lhe via os pelos desbordando da calcinha.

— Pode olhar, eu deixo.

E começou a me acariciar.

— Amâncio é meu amigo — eu disse.

— Dessas coisas de marido e mulher tu não entende — disse ela. — Se tu é mesmo amigo dele, tu me come.

Com agilidade, abriu minha calça. Quieto, deixei que me sugasse. Queria pensar que aquela imobilidade sempre contava um ponto a meu favor. Mas não, nem com tal ponto podia contar. Enlouquecido, sem demora a derrubei no chão, esgarcei-lhe a calça e a galopei com tal sofreguidão que o gozo se me afigurou como um chupão na vida, quase desfaleço entre suas pernas.

Zélia ergueu-se, arranjou a camisola.

— E agora? — disse, num desafio.

Naquele momento mesmo resolvi que ia embora da cidade. Não por medo. Também não me sentia um traidor, mas, mal comparando, como o guasca que no meio da noite se defronta com um boitatá. Ia embora, sim, mas um dia voltava, e só voltava quando a vida me tivesse aberto outras cortinas de seus dolorosos mistérios.

Antes, porém, pedi ao Bagre que nada comentasse sobre Zélia e o Bugio. E esperei por Amâncio. Quando ele chegou, animado com o sucesso da viagem, dei-lhe um abraço demorado. Ele também se emocionou com minha partida, quase não acreditava, e ali começou meu aprendizado. Negociando meu silêncio, Zélia não deixava de ter sua razão: valia mais a felicidade de um homem do que um gesto de lealdade.

Depois parti.

Mas não deixei a cidade assim, como quem vai para outro mundo e lega aos amigos uma arroba de fracassos. Passei na pulperia para uma visita ao alemão. Entrei, pedi à freguesia que se arredasse. Cerquei-o num canto do balcão, ele com a faquinha de picar fumo, eu com meu soco inglês. Do que aconteceu não me arrependo, mas não quero recordar. Para saber, querendo, é perguntar aos antigos chalaneiros do rio, em Uruguaiana, em Itaqui, na Barra do Quaraí. É perguntar ao Bagre. Nem tanto pela verdade, que ele falseia um pouco, mais pelo floreio, ao qual não nego certo encanto. "Quando o Bugio chegou no céu...", começa ele.

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