Adeus aos Passarinhos - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Adeus aos Passarinhos - Conto de Sergio Faraco
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Adeus aos Passarinhos - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 31 ago. 2024
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"Lembro-me de tudo e a lembrança me dá a certeza de que morto ao menos não estou: na morte não há memória."

Como pode uma chalana frequentar o mar? Deixar seu ancoradouro de água doce, descer a corrente e se perder no mar, a bordo um pobre homem que pouco sabe além do que lhe ensinou o rio e sua filosofia silvestre de pitangas. E de vez em quando, para agravar meu espanto, surge um menino que faz ilusionismo.

Uma chalana ao mar, uma criança que aparece e desaparece, uma ilha provisória, passarinhos... não parece uma conspiração?

Menos mal que o mar está sereno. Sereno esteve hoje, ontem, dá a impressão de ter estado sempre assim. As ondas são pequeninas e no ar há uma funda transparência. Imagino que de longe, no plano, ou lá das alturas, não seria difícil de ver-se a chalana, mas não se vê nenhum avião no céu, nenhum navio no mar. Eu podia até pensar que o mundo se acabou, mas, de um jeito ou de outro, o tempo vai passando, eu o sinto, o tempo é um estranho zunir dentro de mim e suspeito de que sem mim não zuniria.

Passa o tempo, isso é muito bom.

Passa o tempo e passará, fico me lembrando de que ontem brinquei de perseguir minha sombra e desembaracei uma mecha de cabelos. Hoje ficarei esquadrinhando, procurando no horizonte a terra, como se da terra esquadrinhasse o mar à procura de uma chalana como esta. Lembro-me de tudo e a lembrança me dá a certeza de que morto ao menos não estou: na morte não há memória.

Em certas tardes tenho a impressão de que nos aproximamos de alguma ilha ou continente. Pequenos ramos se balançam na flor d'água e passarinhos, imagine, passarinhos de terra invadem a chalana, vêm cansados, pousam, e aqui se deixam ficar com o pequenino peito arfando e o biquinho entreaberto. E aqui repousam. E de repente ouço um gorjeio e logo todos começam a trinar, a brincar alegremente e me divirto com a insistência deles em tirar sinais que tenho no pescoço ou tatu do meu nariz.

Não, não podem vir de longe esses bichinhos e fico imaginando de que lado enxergarei a terra. Faço cálculos com a posição do sol, com os pontos cardeais, faço uma confusão de números e desisto e me desespero e é então que avisto, no horizonte, uma fímbria gris que antes não estava lá. Fecho os olhos, me belisco, e quando os abro, ah, não sei se é uma terra de verdade ou mais uma crueldade do menino, mas meu coração se acelera e bate com tal força que fecho rapidamente a boca, com receio de que salte e se perca por aí.

É bom pensar que vejo a terra.

É bom pensar que estou voltando.

Meu coração dá sinal de vida, é a hora em que me visita a infame pessoazinha, tão parecida com a ideia que faço de mim mesmo em sua idade. Não se trata de uma semelhança física, é algo mais profundo que está como no ar entre nós dois ou dentro de nós dois. Não raro desconfio de que a criança sou eu mesmo, mas não quero pensar nisso. Se já não consigo compreender o que nos une, imagine como me sentiria se tivesse de decifrar mais coisas.

Vem do nada esse menino e não posso deixar de notar como é cheio de vida, quase um monstro se você o compara comigo, que aqui estou como se estivesse morto, a passarada fuçando em meu nariz.

Tento conversar. Peço-lhe que se vá de uma vez por todas ou permaneça para sempre, não fica nada bem para uma pessoa decente andar aparecendo e desaparecendo, como um mágico de circo. Dou-lhe conselhos. E quando penso que o tenho nas mãos, pergunto se pode me dizer quando chegaremos. Insisto em notícias do trajeto, quero saber de ventos, correntes, rotas de cargueiros. Explico que há um rio à nossa espera e que a chalana andará saudosa de seu ancoradouro. Ele nada diz e parece que se diverte com minha inquietude.

Ele até parece um deus.

Um deus ou um mágico, não sei. Faz aparecer uma pasta de colégio e me provoca com números inadmissíveis. Tira da pasta guabijus, ferraduras, gatinhos. Isso mesmo, gatinhos em pleno mar. Começo a me assombrar e ele se prevalece. Eis um par de remos e uma rede de pescar, quatro quilos de cascudo e um farnel com dois pãezinhos, goiabada, suco de maracujá. Advirto-o de que tais demonstrações não passam de uma farsa, ele apenas ri, sua magia é tão eficiente que ele faz aparecer todas as coisas em que estou pensando.

Até um perfume de pitangas. Até mesmo um rio.

Meu coração, eu o sinto, começa a sangrar, e se ele mergulha outra vez o braço em sua pastinha, o braço volta em sangue. Ah, meu Deus, eu penso, ele faz parte da conspiração, não será seu principal mentor? Dou-lhe as costas e então ele suspira, funga, começa a chorar e chora tanto que sua camisinha fica com a gola bem molhada.

Me aproximo, quero tocar nele e não consigo. Não, não, eu grito, e não adianta mais gritar, ele desaparece em passes de sombra e luz.

O tempo passa e também os ramos se afundam, se perdem. Entre mar e céu se esconde a fímbria e até os passarinhos vão embora, eu os acompanho com o olhar, eles voando, voando, se sumindo. Adeus, adeus, até a vista, e volto a ficar sozinho com este mar imenso, este mar intenso que me cerca e me estrangula, uma corda de sal em meu pescoço. Como pode uma chalana frequentar o mar? O tempo vai passando, o tempo vai zunindo, eu o sinto dentro de mim como um inseto.

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