Hombre - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Hombre - Conto de Sergio Faraco
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Hombre - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 31 ago. 2024
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"Meu tiro retumbou na orla do mato, despertando a passarada que dormia. Anus, batuíras, inhambus, macucos, tajãs, uma zoeira de asas nervosas, e os sapos, assustados, se arrojaram num tremendo alarido."

Pacho me dissera que a vida tinha mudado, que agora os estancieiros mantinham severa vigilância no rio, nos matos, nos pastos, mas, ainda assim, insistira em acompanhá-lo. Era um dia importante, véspera de batizado na família (eu era o padrinho), e ele tinha a intenção de voltar para casa, na manhã seguinte, com algo mais substancial do que um pacote de mariolas.

Estávamos a curta distância da margem correntina, num remanso, a chalana se embalando num macio de rede. Estávamos silenciosos, à espreita, quando se falava era sussurrando, quando se acendia um cigarro era escondendo o lume na mão. Uma, duas da madrugada e a espera continuava. Desacostumado, já me queria de pernas ao comprido, já me pesavam as pestanas quando Pacho meteu o remo n'água.

— Bicharada bruaca, pelo jeito vai pousar no seco.

No matagal, queria ele dizer, no fundão do arvoredo, pelos enredados do cipoal, pelas grutas folharadas e aguaçais, fortalezas de unha-de-gato e mata-cavalo onde apenas um cão vivido podia entrar e dar sinal.

Cambou o bote rio acima para visitar outros paradouros no cerrado caponal do velho Tourn. Desgrudamos da costa, uma corrente mais enfezada deu um guascaço pela proa e a popa por pouco não engole um mundão d'água.

— Não é melhor tirar mais pra beira d'água? Pacho não gostou.

— O barco tem piloto, mano.

Naquela escuridão eu não o via. Ouvia apenas o tchá-tchá vagaroso, vigoroso, de sua cadenciada voga.

— Desse jeito a bateria vai molhar — insisti. E como não respondeu, acrescentei: — Um nada à esquerda tá remanseando.

Me preocupava e não só pela bateria. Era o rio mesmo. Fazia um tempão que não me embarcava e já me descalejara de seus mil perigos. Um descuido, um pequeno engano e a saída era uma só: espiolhar o rumo da costa na tesão do braço. E eu não era mais o mesmo.

— Deixa a chalana que eu entendo ela — disse Pacho.

— Ah, é? E quem te ensinou a descer um bote n'água?

— Isso faz dez anos.

— Mas quem foi rei...

— Psiu — fez ele, erguendo um remo. — Ouviste?

— Não, nada.

— Tem um chegando aí.

Deixou a chalana rodopiar devagarinho e assim nos aproximávamos da margem, recuando e sem ruído. Bicho, finalmente, e Pacho se inquietava.

— Liga duma vez que ele não te espera.

— Tá muito longe.

— Longe nada, liga.

— Entra mais no remanso.

Velha divergência nossa, essa da distância boa do tiro e o risco de espantar o animal. Pacho resmungou, mas fez o bote deslizar, os remos só penteando a água.

— Remanso, remanso, se esse bicho foge eu te capo.

— Deixa o bicho que eu entendo ele — dei o troco, confiado na velha habilidade.

Destravei a vinchester, liguei o holofote, fez-se um clarão na barranca do rio e a água fumaceava, prenúncio de geada espessa naquele mês de junho. Que friagem. E era uma sensação bem estranha que a gente sentia, por trás daquela névoa, como se nós, no escuro, estivéssemos no alto, e o clarão fosse um perau de barro, macega, ramaria, onde mergulharíamos sem apelação.

— Ali, debaixo do salso!

Virei o holofote devagar e nas franjas do salso faiscou um par de olhinhos vermelhos. Pela silhueta era um colhudo. Pacho travou a chalana no remo e o capincho, cego, escarvou na barranca e sentou para trás. Apontei no entreolho, constatando, aborrecido, que meu braço tremia — ô saudade daquele tempo velho, Pacho no remo e comigo a vinchester mortal, rescendendo a graxa e querosene...

— É nosso — gritou Pacho.

E meu tiro retumbou na orla do mato, despertando a passarada que dormia. Anus, batuíras, inhambus, macucos, tajãs, uma zoeira de asas nervosas, e os sapos, assustados, se arrojaram num tremendo alarido.

— Erraste.

— Não brinca.

— Um palmo acima da cabeça.

No salso o balanço da galharia, a voação tremelica das folhinhas arrancadas pela bala. Pacho soltou o bote.

— Merda, nunca errei nessa distância.

— E eu sou testemunha.

Desliguei o holofote. A chalana descia o rio, tão leve quanto o subira, e o peso eu carregava em meu peito.

— Que azar. Precisavas dessa carne, não é?

— E daí? Não é a primeira vez que a gente se dá mal.

— Mas logo hoje... Que regalo pro meu afilhado. Ele deu uma cuspida n'água.

— E as galinhas do Dr. Sarasua? A gente encosta o bote e corre, quantas vezes se fez isso antes?

— Galinha? Ainda roubas galinha?

— Por que não? Carne por carne até que fede menos.

— Mas não é arriscado? Naquele tempo o Sarasua...

— Hoje tá arriscado em toda parte.

O bote era empurrado pela correnteza, sacudia-se, ameaçava entortar e Pacho o apurava ainda mais, dando verdadeiras pauladas naquela água braba. De quando em quando ela subia nas guardas, perigosamente, e se derramava no fundo da chalana.

— Devagar, paisano. Ele nada disse.

— Vai com calma, Pacho, temos um batizado essa manhã.

— Não te falei no bando que o Tourn contratou no Alvear?

— Que tem ele?

— Não tá ouvindo nada?

Era uma lanchinha, longe, picotando a quietude do rio.

— São eles?

— Só pode.

Sem demora se acendeu rio acima um farolete e meu coração começou a bater forte, pronto, já estava arrependido de ter vindo.

Tourn, Eugenio Tourn, era um correntino abonado, proprietário de campos e matos na costa do Uruguai, e já havia alguns anos que, com o apoio das autoridades, prometera exterminar os capincheiros da região. Aquela gente que empreitava na cidade, dita maleva e traicionera pelos homens do rio, acampava no mato com comes e bebes a la farta e do mato só saía com ideia ruim. Não hesitavam em desgraçar um homem por causa de um reiúno baleado, e pouco lhes importava que aquela carne fedida tivesse por destino o bucho dos barrigudinhos que perambulavam, acá y allá, pela mísera ribeira. Não, antes as coisas não eram assim, tão descaradas, e agora eu começava a acreditar nas fantásticas histórias que Pacho só destrançava depois de um quinto gole de canguara.

A lancha se aproximava, o luzeiro ziguezagueava, esquadrinhando o rio, até que nos achou. Me atirei no fundo do bote.

Pacho continuou remando e a chalana corcoveava como um potro. Ouvi um tiro seco de revólver.

— Eles vão te pegar! Outro tiro e ele nada.

— Perdeste o juízo? Te abaixa!

— Calma — disse ele, ofegante. — Essa lanchinha tá pesada... cinco e mais os trens...

— Cinco?

— De tarde andei espiando o acampamento. Tavam numa farra... cinco e o chinaredo.

Me ergui devagar, cauteloso. Cinco dentro não queria dizer nada, mas a lancha, curiosamente, se distanciara um pouco. Agarrei a vinchester. Estava vexado por meu papel de maula, Pacho bracejando e eu deitado, e pelo outro fiasco que fizera naquela madrugada. Em que espécie de hombre eu me transformara?

— Por mim, fazia uma espera por aí e dava um susto neles.

— Cara a cara? Isso sim que é falta de juízo. E se me acertam um balaço, quem vai cuidar da Irene e do teu afilhado? Larguei a arma, envergonhado.

— Já te falei que me defendo — tornou ele —, mas tem que ser na moita. Eles têm lancha, armamento, polícia, capangada, e a gente tem o quê? Raiva, mas numa hora dessas a raiva não resolve nada.

— Qualquer dia te pegam.

— Bueno, é a luta, mas hoje te garanto: não pegam ninguém.

Atrás de nós só o pretume do rio, medonho, acolherado à escuridão do céu. Pacho ergueu os remos.

— É estranho — eu disse. — Tinham tudo pra nos alcançar e desistiram.

— Pudera, tão afundando.

— Afundando?

— Enquanto eles farreavam fiz quatro brechas de pua pra cima da linha d'água. Com eles dentro tá fazendo água que é um desastre.

— Grande!

Em seguida começamos a ouvir gritos, estalos, rumores, e aquele rebuliço no meio da noite chegava a dar medo. Parecia uma batalha, e de certo modo era uma batalha, eu só imaginava que pedaço não estavam passando os cupinchas do correntino, baldeando e baldeando água — se é que tinham balde — e catando em vão as brechas submersas.

— Pega um pouco, tô pregado. Trocamos de lugar.

— Tá danada essa água.

— Andou chovendo um quilo lá pra cima.

— E essa gente? Será que alcança a costa no braço?

Ele acendeu a lanterninha, alumiando o surrão. Em volta da chalana a água fumaceava, fumaceava.

— Vai uma bolacha?

— Vai. Mas com essa escuridão, essa friagem, o rio desse jeito... será que esse pessoal consegue?

— A metade sempre chega.

— A metade? E os outros?

Pacho olhava para o rio escuro. O rosto dele, na contraluz da lanterninha, tinha um jeitão tristonho, encabulado.

— Os outros já merdearam.

— Olha aqui, compadre, eu...

— Que eles começaram, começaram — cortou ele, num tom cheio de mágoa. — Isso aqui era um lugar bom. Carne trabalhosa, mas chegava, pele de nútria pra negócio e mais a pena do avestruz, de vez em quando uma chibada de perfume, cigarro americano... lembra? A gente se defendia e a vida era decente. Aí eles começaram a se adonar de tudo, até dos bichos do mato, e mandaram a lei e esses bandidos. Te lembra do Agostinho Manco? Tá preso no Alvear já vai pra um ano, e a mulher dele, a Ardósia, tá fazendo a vida no Arizona, o puteiro mais engalicado do Itaqui. O Testão...

— Testão?

— Meu primo, aquele da mancha no cabelo.

— O filho do Marconde?

— O Testão sumiu. Ele tinha ido ao mato do Romeu Bandar, houve um tiroteio, e o corpo nunca apareceu.

— Eu entendo, mas...

— Não tem "mas", compadre, amor com amor se paga.

— Mas é um negócio tão imundo...

— Imundo? Ora, a gente fica que nem porco, se acostuma com tudo.

— Ah, eu jamais me acostumaria. Ele parou de comer e me olhou.

— Tu é um bosta, por isso não queria te trazer. Tu era gente boa, todo mundo aqui te queria bem, te admirava, o Agostinho, o finado Testão, o Pedro Sujo, o Bagre, o pessoal ficava conversando fiado nos bolichos, que capivara de holofote era a marcação da tua vinchester, correntino de quepe o dengue do teu soco inglês. Tu tinha fama e te digo mais, até eu, que sou eu, ficava te invejando. Tu era grande, tu era gente nossa.

Exagerava, claro, mas só a lembrança, mesmo descontada, já me dava um nó na minha garganta.

— Trocou o rio pela cidade, pela capital, virou homem de delicadezas, empregado de patrão, trocando a amizade dos amigos pelo esculacho dos endinheirados. Pra que serve tudo isso? Agora taí, um pobre-diabo que não presta mais pra nada. Dispara feio num capincho e no primeiro entrevero se borra nas calças.

— Um homem... — comecei a dizer.

Um soluço e não disse mais nada. Pacho acendeu um cigarro, os olhos dele rebrilhavam.

— Bueno — e a voz se adoçava —, me desculpa, não era isso que eu ia dizer. Ando meio estropiado dos nervos, tu já sabe como anda essa vida.

— Tô aprendendo — eu disse.

Passávamos defronte às terras do Dr. Sarasua. Ele remexeu no surrão.

— Que te parece uma cachacinha? Disse-lhe que não havia nada melhor.

— E um baita porre? — tornou.

Larguei os remos no fundo da chalana, animado.

— Rio abaixo?

— Salud — disse ele, dando o primeiro gole.

Aproximou-se, chapinhando no fundo alagado. Me alcançou a garrafa e eu brindei:

— Pros teus nervos de gato manso.

Ele riu e me arrancou a garrafa das mãos.

— Pra tua vinchester empenada.

Brindamos à alma do primo Testão, à puta do Agostinho Manco, ao futuro do meu afilhado, e para mostrar que em nossos corações não havia grande rancor, brindamos também aos capangas do Tourn que, naquele momento, eram pastados por dourados e traíras.

Aquele batizado era capaz de não sair na hora marcada. Já clareava o dia, e Pacho, embriagado, teimava em descer o rio, bebendo, cantando. Tinha uma voz horrível, taurina, mas a milonga que mugia calava fundo em meu coração, falava de amigos mortos, homens que tenían algo más que leche en los cojones.

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