No domingo pela manhã a estância acolheu duas visitas. A primeira foi a do noivo de Maria Luíza, que veio num auto azul e barulhento, erguendo uma polvadeira na estradita que partia em dois o potreiro e a invernada da frente. A segunda foi a do velho Sizenando López. Mas este veio montado, a passo e sem ruído algum, com Dona Bica na garupa, e só chamou a atenção porque a cachorrama, nervosa com o bochincho do auto, abancou-se a acoar.
Sizenando foi recebido na porta do galpão por seu mano Cuertino, antigo capataz do pai de Maria Luíza. As mulheres se asilaram na meiágua atrás do galpão e os dois velhos sentaram em cepos ao redor do fogo, onde, numa trempe, já chiava a cambona.
Cuertino esperava o irmão de mate pronto. Desde que Sizenando, quinze anos antes, viera capatazear um estabelecimento lindeiro, todos os domingos eles se visitavam: num, iam Cuertino e Dona Santa, noutro, vinham Sizenando e Dona Bica.
Sizenando costumava chegar às dez horas, mas, ultimamente, tivera de cambiar seus hábitos. Maria Luíza, que sempre desapreciara a mesmice do campo, de súbito passara a preferi-la, nos fins de semana, à variedade citadina: chegava na sexta à tardinha, com os pais, ficando até segunda ou terça. Já o tal noivo, como Sizenando, vinha aos domingos, mais ou menos à mesma hora, e duas ou três vezes o obrigara a pular fora da estrada, além de sufocá-lo na poeira. Agora o velho vinha às onze e, prevenido, mantinha-se ao largo do caminho.
A peonada tinha ido à vila desatar umas carreiras, de modo que os dois manos estavam sós, já no terceiro mate e sem ter-se adiantado aos saudares iniciais, quietos, entretidos com as vozes das mulheres na casita. Quando Cuertino ofereceu mais uma vez a cuia ao visitante, este como se acordou.
— E a Santa? Melhorou da perna?
Cuertino respondeu com um grunhido que, decerto, queria dizer sim. E acrescentou:
— Quem não anda bem é seu sobrinho.
— O Neco? Que é que ele tem?
— Olheira.
— Não diga — admirou-se Sizenando. Cuertino pegou a cuia de volta.
— Pois é, guri novo e com o olho lá no fundo.
— Isso não é bom.
— Não, não é.
— Nessa idade, tinha que andar atirando o freio.
— Bueno, isso ele anda — disse Cuertino. — Pro meu gosto, até demais.
Sizenando disse "entendo", mas sua expressão era a de quem ainda não começara a entender.
Em seguida viram Maria Luíza e o noivo, que foram até o auto e voltaram com um pacote. "Que piguancha", pensou Sizenando, dando sorvinhos curtos no mate. E em voz alta:
— Dona Maria Luíza Santos Trindade...
— É... — fez o outro.
— Como vai esse noivado?
— Só Deus sabe.
— Se casam?
— Pois... a pressa parece que é só minha.
Sizenando interrompeu o mate, muito sério. Esperou, e como Cuertino nada mais dissesse, deu um sorvo, o último, e fez a bomba roncar repetidas vezes.
— Tenho meus motivos — disse Cuertino, por fim.
Era o mais que conseguia dizer de sua preocupação. Aquilo já ia para seis dias, vá dor de cabeça e as tripas se inflando e vá churrio, pois na primeira noite da semana, saindo para urinar, vira um vulto saltar de uma das janelas da casa principal. Era a janela do quarto de Maria Luíza. O vulto desunhara entre o arvoredo do pomar e Cuertino quedara como estaqueado, a princípio sem compreender nada e depois compreendendo muitas coisas que, até então, não se explicavam. Não quisera contar à mulher e resolvera esperar a visita do irmão mais velho para aconselhar-se.
Mais aliviado, sorvia devagarinho o mate. Sizenando, de braços cruzados, olhava para a casa grande, que via pela metade, olhava para o fogo, para o irmão, e vez por outra fazia movimentos afirmativos de cabeça, como a concordar consigo mesmo.
Depois do almoço, em que comeram carreteiro e canjica, sestearam no galpão. Da meiágua vinham ruídos de pratos e as vozes incansáveis de Dona Santa e Dona Bica.
Cuertino acordou antes, ao cabo de um sono abaloso que o fez rolar fora do pelego. Recomeçaram a matear, na segunda cevadura, que geralmente ia até quatro e pico, quando os visitantes iam cumprimentar os pais de Maria Luíza e se retiravam. O topete da erva ainda não se umedecera quando escutaram o barulho do auto e o viram descer a estradita em disparada.
Sizenando estranhou:
— Ué, já se vai o baiano?
— Cada vez fica menos tempo.
Pouco depois Maria Luíza apareceu no galpão.
— Boa tarde.
— Boa — disse Cuertino.
Sizenando, sentado, fez uma curta reverência, admirando, de revés, os portentos da menina: morena, carnuda, olhar de mormaço, próprio para enfeitiçar um homem.
— Como vai, Seu Size? E Dona Bica? E as filhas?
— Todos bem, graças a Deus.
— Diga à Dona Bica que tenho umas roupinhas pras moças.
— Com muito gosto, Dona Maria Luíza.
— Seu Titino — ela tornou —, a que horas volta o Neco?
— Pois... no fim da tarde.
— Então faça o favor, diga a ele pra ir pegar a lista de compras que eu quero que faça amanhã na vila.
— Sim, senhora, Dona Maria Luíza.
Ela agradeceu e foi-se, partindo com ela, para desgosto dos velhos, uma aura de perfume acanelado. Cuertino espiou o irmão, deu com os olhos atentos do outro e baixou os seus. Sizenando entregou-lhe pela última vez a cuia e pigarreou.
— Tio é quase um pai, não lhe parece? — e deixou escapar um sonoro arroto. — Grácias pelo mate. Cuertino encostou a cuia no cepo e arrotou também.
— Desde que me entendo, é como meio pai.
— Pois a mim, como meio pai, me palpita que esse enleio é mixe e dá de desenlear.
— Não sei... há coisas que um velho não pode fazer.
— Mas dois velhos podem.
Ficaram calados, imersos em seus pensamentos, até que vieram as mulheres. Sizenando e Dona Bica foram cumprimentar os donos da estância, que os receberam na varanda. Depois de uns minutos, despediram-se, Dona Bica sobraçando um queijo, que ganhou da mãe de Maria Luíza, e uma bolsa de roupas com pouco uso, presente da menina.
No galpão, Sizenando começou a encilhar o cavalo, que durante a visita ficara solto no potreiro.
— Tá cada vez mais guapo esse gateado — disse Cuertino, batendo no pescoço do animal. — Nem parece que já vai pra doze anos.
— Não parece, não — Sizenando apertava a cincha —, e assim vai aos quinze.
— Periga aos vinte.
— Deus lhe ouça.
Sizenando conduziu o animal pela rédea até o alambrado que cercava a sede da fazenda. Viu que as mulheres deixavam a casita, ainda conversando. Antes que se aproximassem, disse ao irmão:
— Quer dizer que amanhã o Neco vai à vila.
— Se é que vai...
— Pois lhe diga que, amanhã ou depois, passe lá por casa. Quero uma palavrinha com ele.
— Vou dizer.
— Quem sabe não se aquerencia por lá.
— E tem lugar?
— Lugar não tem, mas se arruma. Tem é mulher. As minhas, que já estão numa idade boa, e aquela peona que veio da cidade. Chirua faceira! E tá pedindo um calor nessas noites frias.
— Não diga.
— Digo sim. E se bem conheço o nosso galinho...
No caminho, antes da porteira grande, encontrou-se com Neco, que vinha num trote alargado. "Nem espera o fim das carreiras", pensou o velho.
O guri tirou o chapéu. Era moreno acobreado e melenudo.
— A bênção, tia.
— Deus te abençoe, filhinho — disse Dona Bica.
— A bênção, tio.
— Deus te abençoe, sem-vergonha — disse o velho Size, sem deter-se.
Neco retesou-se num prisco, entre surpreso e assustado, e volteou o cavalo na direção do velho, que se afastava.
— Que foi que eu fiz, tio? — perguntou, humildemente.
— Por enquanto, quase nada — disse o velho, sem olhar para trás —, mas te garanto que, de amanhã por diante, vais ter muito o que fazer. Já pra casa!
Neco ficou um momento olhando a esmo, de chapéu na mão. Abriu os braços numa reclamação muda, depois cobriu-se e retomou o trote rumo às casas, menos apressado do que vinha.