Velhos - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Velhos - Conto de Sergio Faraco
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Velhos - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 ago. 2024
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"Fez uma curta reverência, admirando, de revés, os portentos da menina: morena, carnuda, olhar de mormaço, próprio para enfeitiçar um homem."

No domingo pela manhã a estância acolheu duas visitas. A primeira foi a do noivo de Maria Luíza, que veio num auto azul e barulhento, erguendo uma polvadeira na estradita que partia em dois o potreiro e a invernada da frente. A segunda foi a do velho Sizenando López. Mas este veio montado, a passo e sem ruído algum, com Dona Bica na garupa, e só chamou a atenção porque a cachorrama, nervosa com o bochincho do auto, abancou-se a acoar.

Sizenando foi recebido na porta do galpão por seu mano Cuertino, antigo capataz do pai de Maria Luíza. As mulheres se asilaram na meiágua atrás do galpão e os dois velhos sentaram em cepos ao redor do fogo, onde, numa trempe, já chiava a cambona.

Cuertino esperava o irmão de mate pronto. Desde que Sizenando, quinze anos antes, viera capatazear um estabelecimento lindeiro, todos os domingos eles se visitavam: num, iam Cuertino e Dona Santa, noutro, vinham Sizenando e Dona Bica.

Sizenando costumava chegar às dez horas, mas, ultimamente, tivera de cambiar seus hábitos. Maria Luíza, que sempre desapreciara a mesmice do campo, de súbito passara a preferi-la, nos fins de semana, à variedade citadina: chegava na sexta à tardinha, com os pais, ficando até segunda ou terça. Já o tal noivo, como Sizenando, vinha aos domingos, mais ou menos à mesma hora, e duas ou três vezes o obrigara a pular fora da estrada, além de sufocá-lo na poeira. Agora o velho vinha às onze e, prevenido, mantinha-se ao largo do caminho.

A peonada tinha ido à vila desatar umas carreiras, de modo que os dois manos estavam sós, já no terceiro mate e sem ter-se adiantado aos saudares iniciais, quietos, entretidos com as vozes das mulheres na casita. Quando Cuertino ofereceu mais uma vez a cuia ao visitante, este como se acordou.

— E a Santa? Melhorou da perna?

Cuertino respondeu com um grunhido que, decerto, queria dizer sim. E acrescentou:

— Quem não anda bem é seu sobrinho.

— O Neco? Que é que ele tem?

— Olheira.

— Não diga — admirou-se Sizenando. Cuertino pegou a cuia de volta.

— Pois é, guri novo e com o olho lá no fundo.

— Isso não é bom.

— Não, não é.

— Nessa idade, tinha que andar atirando o freio.

— Bueno, isso ele anda — disse Cuertino. — Pro meu gosto, até demais.

Sizenando disse "entendo", mas sua expressão era a de quem ainda não começara a entender.

Em seguida viram Maria Luíza e o noivo, que foram até o auto e voltaram com um pacote. "Que piguancha", pensou Sizenando, dando sorvinhos curtos no mate. E em voz alta:

— Dona Maria Luíza Santos Trindade...

— É... — fez o outro.

— Como vai esse noivado?

— Só Deus sabe.

— Se casam?

— Pois... a pressa parece que é só minha.

Sizenando interrompeu o mate, muito sério. Esperou, e como Cuertino nada mais dissesse, deu um sorvo, o último, e fez a bomba roncar repetidas vezes.

— Tenho meus motivos — disse Cuertino, por fim.

Era o mais que conseguia dizer de sua preocupação. Aquilo já ia para seis dias, vá dor de cabeça e as tripas se inflando e vá churrio, pois na primeira noite da semana, saindo para urinar, vira um vulto saltar de uma das janelas da casa principal. Era a janela do quarto de Maria Luíza. O vulto desunhara entre o arvoredo do pomar e Cuertino quedara como estaqueado, a princípio sem compreender nada e depois compreendendo muitas coisas que, até então, não se explicavam. Não quisera contar à mulher e resolvera esperar a visita do irmão mais velho para aconselhar-se.

Mais aliviado, sorvia devagarinho o mate. Sizenando, de braços cruzados, olhava para a casa grande, que via pela metade, olhava para o fogo, para o irmão, e vez por outra fazia movimentos afirmativos de cabeça, como a concordar consigo mesmo.

Depois do almoço, em que comeram carreteiro e canjica, sestearam no galpão. Da meiágua vinham ruídos de pratos e as vozes incansáveis de Dona Santa e Dona Bica.

Cuertino acordou antes, ao cabo de um sono abaloso que o fez rolar fora do pelego. Recomeçaram a matear, na segunda cevadura, que geralmente ia até quatro e pico, quando os visitantes iam cumprimentar os pais de Maria Luíza e se retiravam. O topete da erva ainda não se umedecera quando escutaram o barulho do auto e o viram descer a estradita em disparada.

Sizenando estranhou:

— Ué, já se vai o baiano?

— Cada vez fica menos tempo.

Pouco depois Maria Luíza apareceu no galpão.

— Boa tarde.

— Boa — disse Cuertino.

Sizenando, sentado, fez uma curta reverência, admirando, de revés, os portentos da menina: morena, carnuda, olhar de mormaço, próprio para enfeitiçar um homem.

— Como vai, Seu Size? E Dona Bica? E as filhas?

— Todos bem, graças a Deus.

— Diga à Dona Bica que tenho umas roupinhas pras moças.

— Com muito gosto, Dona Maria Luíza.

— Seu Titino — ela tornou —, a que horas volta o Neco?

— Pois... no fim da tarde.

— Então faça o favor, diga a ele pra ir pegar a lista de compras que eu quero que faça amanhã na vila.

— Sim, senhora, Dona Maria Luíza.

Ela agradeceu e foi-se, partindo com ela, para desgosto dos velhos, uma aura de perfume acanelado. Cuertino espiou o irmão, deu com os olhos atentos do outro e baixou os seus. Sizenando entregou-lhe pela última vez a cuia e pigarreou.

— Tio é quase um pai, não lhe parece? — e deixou escapar um sonoro arroto. — Grácias pelo mate. Cuertino encostou a cuia no cepo e arrotou também.

— Desde que me entendo, é como meio pai.

— Pois a mim, como meio pai, me palpita que esse enleio é mixe e dá de desenlear.

— Não sei... há coisas que um velho não pode fazer.

— Mas dois velhos podem.

Ficaram calados, imersos em seus pensamentos, até que vieram as mulheres. Sizenando e Dona Bica foram cumprimentar os donos da estância, que os receberam na varanda. Depois de uns minutos, despediram-se, Dona Bica sobraçando um queijo, que ganhou da mãe de Maria Luíza, e uma bolsa de roupas com pouco uso, presente da menina.

No galpão, Sizenando começou a encilhar o cavalo, que durante a visita ficara solto no potreiro.

— Tá cada vez mais guapo esse gateado — disse Cuertino, batendo no pescoço do animal. — Nem parece que já vai pra doze anos.

— Não parece, não — Sizenando apertava a cincha —, e assim vai aos quinze.

— Periga aos vinte.

— Deus lhe ouça.

Sizenando conduziu o animal pela rédea até o alambrado que cercava a sede da fazenda. Viu que as mulheres deixavam a casita, ainda conversando. Antes que se aproximassem, disse ao irmão:

— Quer dizer que amanhã o Neco vai à vila.

— Se é que vai...

— Pois lhe diga que, amanhã ou depois, passe lá por casa. Quero uma palavrinha com ele.

— Vou dizer.

— Quem sabe não se aquerencia por lá.

— E tem lugar?

— Lugar não tem, mas se arruma. Tem é mulher. As minhas, que já estão numa idade boa, e aquela peona que veio da cidade. Chirua faceira! E tá pedindo um calor nessas noites frias.

— Não diga.

— Digo sim. E se bem conheço o nosso galinho...

No caminho, antes da porteira grande, encontrou-se com Neco, que vinha num trote alargado. "Nem espera o fim das carreiras", pensou o velho.

O guri tirou o chapéu. Era moreno acobreado e melenudo.

— A bênção, tia.

— Deus te abençoe, filhinho — disse Dona Bica.

— A bênção, tio.

— Deus te abençoe, sem-vergonha — disse o velho Size, sem deter-se.

Neco retesou-se num prisco, entre surpreso e assustado, e volteou o cavalo na direção do velho, que se afastava.

— Que foi que eu fiz, tio? — perguntou, humildemente.

— Por enquanto, quase nada — disse o velho, sem olhar para trás —, mas te garanto que, de amanhã por diante, vais ter muito o que fazer. Já pra casa!

Neco ficou um momento olhando a esmo, de chapéu na mão. Abriu os braços numa reclamação muda, depois cobriu-se e retomou o trote rumo às casas, menos apressado do que vinha.

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