Viagem ao Fim do Mundo - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Viagem ao Fim do Mundo - Conto de Sergio Faraco
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Viagem ao Fim do Mundo - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 6 set. 2024
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"Minha cidade não raro era visitada por ciganos e assim que chegavam já iam se espalhando, transformando nossas quietas ruazinhas numa feira de tachos, adivinhações e sons guturais."

Minha cidade não raro era visitada por ciganos e assim que chegavam já iam se espalhando, transformando nossas quietas ruazinhas numa feira de tachos, adivinhações e sons guturais. Acampavam na várzea do rio, a gente via de longe os toldos de lona rasgada, o Ford modelo-A, os varais da carne-seca, a correria dos ciganinhos pelos sulcos do arroz.

Não direi que todas as pessoas os detestavam, mas havia certa reserva, sim, quem sabe antipatia, e tratando-se dos brigadianos, verdadeiro pavor. Eles eram criaturas de costumes estranhos, roupas estranhas, uma língua mais estranha ainda, e o pior não era a sociedade com o diabo, que se dizia que tinham, mas se aproveitarem dessa parceria para enganar as gentes. Para mim, que já ouvira muitas histórias de logros, sumiços e magias, até casos de amor e sangue, a chegada dos ciganos era um pesadelo. Receava por mim, decerto, mas o primeiro medo era por minha mãe: era a única mãe da cidade que não se benzia quando passavam e até gostava de prosear com eles, para poder imitá-los na hora da janta. Achava eu que ela era meio bocó, não se dava conta de que os ciganos eram sujos e tramposos, roubavam galinhas, comiam gatos, talvez ratos, e querendo, podiam levar qualquer um para o Fim do Mundo.

E foi assim que, tendo os ciganos voltado, voltaram também os meus receios. Passei a correr a tramela do portão quando um deles apontava na esquina, e sob qualquer pretexto carreteava minha doce bocó para o fundo do quintal: eram as romãs que estavam vermelhinhas, a rola que fazia seu ninho na parreira, um rastro de gambá no galinheiro... Ela gostava desses bordejos fora de hora, passava a mão nos meus cabelos, dizia que eu era o seu querido. Fui mais longe. Atirei o galo no pátio do vizinho e entrei em casa aos gritos: "Mãe, um cigano roubou o galo". Ela ficou tiririca, porque o galo era antigo e trabalhador, mas na manhã seguinte o traidor estava de volta ao poleiro, atropelando as frangas. A traição lhe custou uma vassourada, mas o mal estava feito: a mãe se arrependeu do mau juízo e, para redimir-se, prometeu comprar um tacho.

Uma tarde dei com um cigano no portão, vá matraca com ela. É tanto, não é tanto, então eu faço tanto e me dá tanto, estavam os dois num retouço bárbaro e eu senti que, se não fizesse alguma coisa, ia perder a mãe, que podia ser bocó mas era a única que eu tinha. Entrei em casa como quem nada viu e saí pelo pátio do vizinho, armado com um terrível bodoque de borracha de trator, feito especialmente para corvos e ladrões de mães.

Encontrei o cigano já na praça, atrás de um arbusto. Ele urinava, o que me deixou mais exaltado. Apontei na cabeça. A pedrinha zuniu na folharada, ouvi um baque, um grito, sem demora o cigano a bufar no meu garrão. Foi uma corrida louca, até que avistei um brigadiano.

— Seu guarda, ele tava mijando na praça!

Os brigadianos, esses sim, odiavam os ciganos, por causa do mau costume deles de urinar nas praças. Um dia vi um cigano aliviar-se no monumento do fundador. Raça braba, disse um homem. Outro queixou-se para o guarda que a gente já não podia sentar na praça, que aquilo era uma pouca-vergonha, e o guarda abriu os braços, querendo dizer, decerto, que eles sempre tinham mijado e não adiantava fazer nada, iam continuar mijando até o final dos tempos. O homem ficou indignado e eu também.

Aí está por que os brigadianos viviam com os ciganos cruzados na garganta, e aquele que chamei nem piscou. Agarrou o bruto e tocou-o por diante. Vi os olhinhos dele faiscando, como a dizer te pego filho dessa e daquela. Fiquei admirado, ele me olhava como se tivesse razão.

Mais tarde fui espiar o cigano na delegacia, mas ele não estava lá. Passaram-se uns dias, e como o acampamento continuava na várzea do rio e não dava sinal de viagem, eu quase não saía de casa e se o fazia era com redobrado cuidado, espiando nas esquinas, nas alamedas das praças e, principalmente, nos portões das casas, por onde eles enveredavam com seus tachos e demais traficâncias. À noite revisava janelas, portas, chaves, e ruídos estranhos me erguiam o coração à boca.

Uma semana depois houve o temido encontro e, fatalidade, eu o vi novamente urinando, só que noutra praça. Mordia a língua e urinava sem parar, como esses cães que ficam presos e um dia fogem para a rua. Depois veio andando, chegando mais perto, tinha um curativo na cabeça e os olhos machucados, com manchas violáceas ao redor. Veio andando e veio e veio e eu ali parado, frio, pensando na viagem ao Fim do Mundo. Comecei a tremer. Cheguei a abrir a boca para dar um grito, mas ele nem ao menos parou ao cruzar por mim. Me olhou, com aquele jeito debochado que os ciganos têm: "E aí, guri, nunca viu ninguém mijá?"

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