Clareava o Dia - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Clareava o Dia - Conto de Sergio Faraco
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Clareava o Dia - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 6 set. 2024
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"O dia, no campo, tem uma história de capricho. Começa com uma fímbria parda em horizontes do longe, como se atrás das coxilhas, dos capões distantes, dos casarios perdidos, lá onde a vista se acanha, um negro velho, bocejando, prendesse o lume num lampião de prata."

Recém começavam nossas férias na chácara. Papai, à mesa, contava as histórias de caça ao capincho de que tanto se orgulhava. Ao fim da refeição, mamãe o interrompeu para perguntar o que queríamos: ambrosia ou pudim de pão?

Júlia aproveitou a deixa:

— Eu também quero acampar no mato.

Mamãe sobressaltou-se: uma menina no mato? E as aranhas? E as cobras? E o muito que se ouvia falar de certa onça baia? Papai contrapôs que não era má ideia passarmos a noite, Júlia e eu, fora de casa: uma noite assim, sem pai nem mãe, era uma escola tão boa como qualquer outra.

E avisou:

— Vocês vão se ver com os mosquitos.

A manhã seguinte foi de preparativos: redes, mosquiteiros, canecas, sanduíches, refresco de uva, que íamos acomodando em velhas mochilas de colégio.

— Isso não precisa — disse papai, divertido.

Mas Júlia fez questão de levar seu bruxo de pano, não queria que ficasse para trás, esquecido, em noite tão especial.

Além disso, combináramos que, no acampamento, brincaríamos de casados. E os casados têm filhos.

À tardinha nos despedimos como quem parte para uma longa viagem. Mamãe abraçou Júlia, cheia de cuidados e presságios.

— Eu não devia deixar, eu não devia...

Papai não. Ele estava no galpão e vendo-nos passar apenas abanou. Queria dizer, decerto, que a gente não tivesse medo, que não havia nenhuma onça baia e que dormir no mato, portanto, não era uma áfrica.

Seiscentas braças de campo nos separavam do exuberante arvoredo. Íamos juntando esterco seco num saco e as vacas, curiosas, nos olhavam. Já se apoucava o sol quando entramos na picada. Avançamos até um pequeno aberto que vizinhava com a cacimba e nos desvencilhamos da carga.

— Um bom lugar — eu disse, e fiz um fogo alto, começando logo a queimar esterco para ressabiar a mosquitama.

Leváramos duas redes, armei uma só, e enquanto pendurava nossos mosquiteiros juntos, sobrepostos, Júlia brincava de comidinha, colhendo e nos oferecendo, a mim e ao bruxo, uma latinha de pitangas. Escurecera. O fogo, que eu alimentara com galhos ressequidos de acácia, iluminava só a clareira, dando aos seus limites a aparência de espessas muralhas de enredadeiras, onde serpejavam, lambendo-se, compridas línguas de sombra e luz. Comemos os sanduíches que mamãe fizera, tomamos refresco de uva e, depois de escovar os dentes com água da cacimba, disputamos um torneio de arroto.

Quando o fogo começou a dar sinais de cansaço, fizemos a camita de folhas do boneco e nos metemos na nossa.

De pouco ou nada adiantou o esterco arder, os mosquitos não se assustaram. Zumbiam ao redor do duplo mosquiteiro e alguns o atravessavam. Ou quem sabe já estavam lá dentro. Havia sempre dois ou três azucrinando e outros que chegavam a picar através da rede, na ânsia de sugar nosso sangue. Eram mosquitos enormes, de perninhas brancas, eram mosquitos de polainas, e só nos casamos após a morte daquele que parecia ser o último a turbar nossos domínios.

— A gente se deitava em nossa cama — disse Júlia.

E a gente dava remédio ao nosso filho, que estava com gripe, a gente se despia e se olhava na claridade rubra do braseiro, a gente se abraçava e se beijava com lábios de pitanga...

Depois nos enrolamos na manta e, alagados de suor, esperamos o sono, ouvindo, como num sonho, as vozes do mato: cicios, estalos, pios e de quando em quando a insídia de meneios roçagantes, dando calafrios.

Assim mesmo era bom.

Estava escuro ainda quando despertamos. Avivamos o fogo, reunimos nossos pertences e fomos esperar, a céu aberto, a volta do sol.

Se é que voltaria...

O dia, no campo, tem uma história de capricho. Começa com uma fímbria parda em horizontes do longe, como se atrás das coxilhas, dos capões distantes, dos casarios perdidos, lá onde a vista se acanha, um negro velho, bocejando, prendesse o lume num lampião de prata. Devagarinho essa fímbria dá de ganhar sangue, cordoveias de um azul noturno e um lastro esfiapado de ouro velho, entrevero de cores que colore lá, não cá, porque Júlia e eu continuamos no escuro, sem saber ao certo se aquilo é prenúncio do dia ou um grande incêndio. Parece então que cessa, por momentos, essa transformação: é quando dia e noite medem forças e quem assiste a tal confronto chega a pensar que, se não vai tornar a escurecer, talvez nunca mais clareie o dia.

Mas o dia vence, é a lei, e então, Júlia, olha só, vês os vultos graves dos cavalos, imóveis, pescoços erguidos, como avistando ao longe o mesmo drama e atentos ao seu desfecho, mas são apenas cavalos dormidos, porque é assim, Júlia, que dormem os cavalos, em pé, como as estátuas dos parques e as sentinelas dos quartéis. Já distingues campos de matos e acompanhas os primeiros movimentos do gado, que põe-se a andar como em cortejo, no rumo de sombrosos paradouros.

Clareava o dia.

— Quando a gente for grande — disse Júlia —, vai contar pros nossos filhos que acampou no mato e viu o sol nascer. E eles quereriam acampar também. Assim era, segundo papai, a escola da vida.

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