Idolatria - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Idolatria - Conto de Sergio Faraco
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Idolatria - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 6 set. 2024
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"Caminho do diabo!"

Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:

— Caminho do diabo!

Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No para-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus.

Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.

— Puta merda.

Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.

— Abre a tua.

A minha também trancava e ele se arreliou:

— Como é, ô Moleza! Empurrou-a com violência.

— Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.

Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão.

O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.

— Vamos com essas pedras!

Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.

— Não posso, estão enterradas.

— Ah, Moleza.

Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.

— Pai, o caminhão tá afundando!

A cabeça dele apareceu entre as ervas.

— Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula?

E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.

— Tá com fome?

— Não.

— Vem cá.

Tirou do bolso uma fatia de pão.

— Toma.

— Não quero.

— Toma logo, anda.

— E tu?

— Eu o quê? Come isso.

Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.

— Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do dáier, eles puxam a gente. Atirou a erva longe e entrou na cabina.

— Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?

Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona.

— Veste isso, vai esfriar.

A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes.

— Que bela figura.

A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então aguentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:

— Como é, vens ou não? Aí eu fui.

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