Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:
— Caminho do diabo!
Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No para-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus.
Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.
— Puta merda.
Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.
— Abre a tua.
A minha também trancava e ele se arreliou:
— Como é, ô Moleza! Empurrou-a com violência.
— Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.
Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão.
O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.
— Vamos com essas pedras!
Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.
— Não posso, estão enterradas.
— Ah, Moleza.
Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.
— Pai, o caminhão tá afundando!
A cabeça dele apareceu entre as ervas.
— Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula?
E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.
— Tá com fome?
— Não.
— Vem cá.
Tirou do bolso uma fatia de pão.
— Toma.
— Não quero.
— Toma logo, anda.
— E tu?
— Eu o quê? Come isso.
Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.
— Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do dáier, eles puxam a gente. Atirou a erva longe e entrou na cabina.
— Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?
Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona.
— Veste isso, vai esfriar.
A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes.
— Que bela figura.
A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então aguentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:
— Como é, vens ou não? Aí eu fui.