Isabel era a filha menor do sapateiro. O nome do sapateiro já não lembro, decerto era João, havia quatro só naquela quadra e meu pai era um deles. Isabel e a família moravam na casa mais feia da rua, na esquina da Farmácia Brás, justamente defronte à minha, que era um brinco de casinha recém-pintada de azul, com venezianas brancas, no pilarzinho do portão um pote de argila com avencas. A casa de Isabel também era azul, quero dizer que tinha sido azul muitos anos antes e agora era cor-de-burro-quando-foge. No portão, em vez do pote, havia sempre um cachorro baio que odiava gente pequena, e as venezianas não me lembro, decerto nem venezianas tinha, a pobre da mãe dela vivia pendurando toalhas nas janelas.
Um dia Isabel atravessou a rua, sem saber que sem demora atravessaria também meu coração. Nesse dia ela estava sozinha na calçada, a catar pulgas do cachorro, e deu com os olhos na janela em que me debruçava para espiá-la. Atravessou mansinha, sorrateira, cintilava o seu olhar oblíquo.
— Tua mãe não tá em casa, não é?
Então disse mais: vem cá, gurizinho, e disse vem brincar comigo, e por longo minuto fiquei olhando, com o coração batendo forte que me ardia e sem saber se ia.
Isabel, a pequena Isabel do sapateiro, para quem não enxergava muito além da ponta do nariz, era um retrato fiel da casa onde morava. Sempre despenteada, pés descalços, sujinha sempre, vivia perambulando pelas ruas da cidade, e seus amigos eram aqueles com os quais as mães não queriam que seus filhos brincassem. Contavam-se histórias medonhas de Isabel e da família, seguidamente uma, a de que Isabel, descobrindo a mana mais velha a gemer com o namorado num canto da sapataria, chamara a molecada para ver a irmã sem calça.
Fui. Segundo Isabel, roubaríamos pitangas do Doutor Brás, cujo sítio até hoje vai da rua ao rio, com pitangueiras, pessegueiros, laranjeiras e até um pequeno canavial na beira do rio, além da Farmácia Brás que não existe mais. Mas nem subíramos na pitangueira e ela me perguntou se eu já aprendera a fazer certas coisas. Me lembrei de algumas... seriam as mesmas?
— Faz de conta que a gente se casou — avisou ela.
Como no chão havia formigas, nós nos casamos em pé mesmo, sob a pitangueira, e não era exatamente o que eu pensava, ou era, com a diferença de que eu sentia um aperto no coração e esse aperto era algo muito novo.
— Tiau, tiau, tu tem um cheiro bom — disse Isabel, quando se foi.
Depois desse dia ela nunca mais cruzou a rua. Entrava e saía de casa como se defronte não existisse a minha, recém-pintadinha de azul, com venezianas brancas, uma casa que era um brinco, e como se dentro dessa casa, na janela, não estivesse e nem mesmo existisse alguém que com ela se casara no sítio do Doutor Brás. Minha mãe perguntava: é a cabeça que dói? Sentes dor na barriguinha? Que é que tu tens, meu filho? Vem cá, deixa ver essa testa... Eu não podia compreender como Isabel conseguia se esquecer tão depressa de um casamento que no meu peito era um martelo martelando noite e dia.
Enfim, ao menos eu aprendera a roubar pitangas.
E uma tarde, no mesmo sítio do doutor, me pareceu ouvir tal qual num sonho a voz de Isabel no canavial. Era agosto, um agosto frio, mas o sol ainda amornava a terra e os ossos da gente, e como era agosto, as canas estavam verdinhas, era bonito o canavial ao pé do rio para quem o visse de onde eu via.
Abri caminho entre as canas e Isabel estava ali, em carne e osso. Ali também estavam três moleques.
— Isabel!
Os guris se assustaram, mas, vendo que eu estava só, acharam graça. Isabel sorriu e o moleque mais próximo me espalmou a mão no peito.
— O terceiro sou eu. Comecei a recuar.
— Ei, Tadeu, vem cá — disse Isabel.
Aí não me contive, e quanto mais corria mais chorava, porque além de tudo meu nome nem era Tadeu e a mim já me bastava ser o quarto dos quatro Joãos daquela quadra.