No dia em que se decidiu levar Alice para Porto Alegre, meu pai se arreliou com o Doutor Brás e o chamou de embromador, quase deu umas trompadas nele. Coitado do Doutor Brás. Que havia de fazer o doutor aqui na terra, se Deus, no céu, não favorecia?
Na camisinha de Alice, presa numa joana, cintilava uma relíquia do Santo Sepulcro pescada na quermesse do Divino. Rodeavam seu pescocinho dois escapulários, sendo um abençoado pelo bispo de Uruguaiana. E mais: desde semana mamãe amanhecia de joelhos sobre grãos de milho, implorando ao Coração de Jesus entronizado que Ele desse uma demonstração, desse um sinal de que nem tudo estava perdido. E Ele nada. Alice já não se importava com os chocalhos, nem erguia o bracinho para as fitas cor-de-rosa do mosquiteiro. Na agitação da febre era preciso que ficasse sempre alguém à mão, do contrário era capaz de se enforcar no escapulário abençoado. As mamadeiras ela vomitava, não parava nada no estomagozinho dela. Já nem podia ficar sentada ou fazer cocô no peniquinho, por causa dos inchaços que a picada da agulha levantava na bundinha.
E agora essa, Porto Alegre.
Prometer Porto Alegre para um doente era o mesmo que lhe dar a extrema-unção. Prometia-se o milagre e nem sempre a medicina da capital tinha algum no estoque.
A mera decisão da viagem mergulhou nossa casa num abismo de angústia e desesperança. Tresnoitado, barba por fazer, papai se isolava no fundo do quintal para tomar seu chimarrão. Falava sozinho e ficava sacudindo a cabeça como um pobre-diabo. Mamãe, ao contrário, não parava, começou a fabricar um colchãozinho para o berço de Alice. Procurava pela casa objetos que ninguém ao certo sabia quais eram, e se acaso topava comigo num cruzar de porta, surpreendia-se, murmurava "meu filho", como se recém me visse depois de muito tempo.
Vó Luíza veio da campanha para tomar conta da casa. Chegou de madrugada na carona do leiteiro e trazia uma bolsa de aniagem com abóboras, cenouras, chuchus, laranjas de umbigo e sem. Trouxe também o garrafão de vinho feito em casa, que era como o seu cartão de identidade.
Padrinho Tio Jasson ofereceu o auto, para economizar umas horas da viagem de trem. Papai agradeceu, preferiu o trem e com razão, receava furar um pneu ou outra avaria qualquer que os obrigasse a ficar na estrada.
No dia da viagem, ao fazer sua última prece ao Coração entronizado, braços abertos em cruz, mamãe deu um grito que foi ouvido em toda a vizinhança, até na Farmácia Brás, de onde acudiu um tal de Plínio numa afobação. Pois o Coração, imagine, o Coração tinha sangrado, até pingado em nosso chão de tábuas.
Eles partiram animados, quase alegres, no leito da maria-fumaça, com Alice de touca e enrolada num cobertor. Na estação, papai tratou de negócios com o padrinho Tio Jasson. Mamãe, toda de branco e com um lenço verde na cabeça, recomendou à Vó Luíza que, na medida do possível, fosse adiantando o colchãozinho. Eles confiavam em regressar numa semana, Deus querendo, e, diziam, haveriam de dar boas risadas daquele medo, daquele horror que seria a vida sem Alice, com saudade de Alice.
Mas a janta naquela noite foi silenciosa. Vó Luíza, o padrinho, eu, nós três ao redor da mesa sem toalha, a sopa rasa, o barulho das colheres, o vinho escuro — este, nos beiços da minha avó, era como sangue que vertesse para dentro.
Tio Jasson de tempo em tempo repetia:
— Que milagre, Dona Luíza.
A velha concordava, arqueava as sobrancelhas, emborcava outro copito de seu vinho, mais um brinde para o bem de Alice. No olho dela apontava uma lágrima que em seguida pingaria no vinho. Eu não, eu me continha, atacava um soluço na garganta e ficava me remoendo de pena da velhinha. Eu sabia, e ela mais ainda, que aquele sangue no Coração tinha gosto de outra coisa, e que a nossa Alice, com certeza, nunca mais iria voltar.