Três Segredos - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Três Segredos - Conto de Sergio Faraco
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Três Segredos - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 8 set. 2024
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"Esperei, mordendo o lábio, ansiosamente ansioso, certo de que, nos próximos minutos, veria o que Adão viu."

O telegrama de Tia Matilde, avisando que, a convite do prefeito, traria a filha para o baile, fez de nossa casa um pandemônio. Papai conseguiu duas camas emprestadas. Mamãe, além de convocar a antiga cozinheira, contratou uma doceira, e obrigou papai a adquirir novos pratos, imitando porcelana inglesa. Não havia dia em que não batesse alguém à porta: empregados do comércio, entregando as compras de mamãe, ou emissários do prefeito, confirmando pormenores da recepção. Prima Nely merecia esse alvoroço. Tinha dezoito anos e era Miss Itaqui. No concurso estadual de beleza, em Bagé, perdera injustamente para a representante de Pelotas, mas fora eleita Primeira Princesa e Rainha da Simpatia.

Nely e Tia Matilde vieram de trem. Fomos esperá-las na estação e dir-se-ia que a cidade inteira se comprimia na gare. O prefeito também estava lá, à frente da banda municipal e das senhoras da Liga de Combate ao Câncer, cuja presidenta trazia um buquê de rosas vermelhas. Papai, de gravata, chapéu na mão, parecia um deputado. Mamãe também ponteava naquele páreo de elegância, com um costume verde e chapéu de flores e raminhos, e a mim me fizeram trajar a farpela da primeira comunhão: terninho branco de calça curta, meias compridas brancas e sapatos da mesma e imaculada alvura.

Quando Nely desceu do trem, a banda municipal explodiu com Cachito mio e a prima e sua mãe naufragaram num mar de abraços e vivas. Depois da saudação da banda, um grupo de moças do Clube Comercial cantou um hino feito especialmente para a ocasião, intitulado Princesa da beleza.

Papai tinha mandado lavar e encerar o velho Austin, mas, para desgosto seu e de mamãe, nossas parentes deixaram a estação no carro do prefeito, um flamante Pontiac 51 verde-claro. Tiveram de passar na prefeitura, onde Nely cortou a fita do novo gabinete do Secretário de Cultura e Lazer, e só no meio da tarde chegaram à nossa casa.

Maneco, filho do prefeito, acompanhou as visitantes até a sala e tomou um guaraná, servido em bandeja de prata. A dona da bandeja, Dona Bebé, estava presente — o que causaria, mais tarde, pequena discussão: mamãe dizia que não a convidara, que viera de enxerida, papai contrapunha que a pobre só queria cuidar de sua relíquia.

Muitas pessoas vieram conhecer a prima. O exator Mendes Castro disse que ela era "deslumbrante", e o poeta citadino, Herculano Sá, depois de beijar a mão de Nely, declarou que ali estava, "com todos os esses e erres", a progênie dos pecados de Adão.

Quando os estranhos se retiraram, Nely, finalmente, percebeu que eu existia:

— Jesus, como ele cresceu!

— Está um homenzinho — confirmou Tia Matilde.

— Vem cá dar um beijo na prima.

O rosto dela estava quente, úmido.

— Ai, parece um anjinho — disse ela.

Mamãe tinha posto um panelão no fogo, para esquentar a água do banho. Ajudei a transportá-lo e olhava, fascinado, para o lago fumegante que abraçaria o corpo da miss. Mamãe me puxou pelo braço:

— Vem, não podes ficar aqui.

Escurecia. Enquanto mamãe comandava seu pelotão na preparação da janta, troquei de roupa e fui ao pátio. Subi na laranjeira e de seu galho mais alto passei ao telhado da cozinha, que descia ao lado da janela do banheiro. Essa janela tinha oito retângulos de vidro. Os quatro inferiores eram foscos, os de cima transparentes e correspondiam ao ângulo em que me encontrava. Esperei, mordendo o lábio, ansiosamente ansioso, certo de que, nos próximos minutos, veria o que Adão viu.

E vi.

Ai, as nádegas da prima Nely, como duas metades de uma rósea melancia! Ai, as tetas da prima Nely, casal de rolinhas com bicos de goiaba! E aquele triângulo sombrio no vértice das pernas, misterioso, dando calafrios... Era a primeira vez que via uma mulher nua e jamais me passara pela cabeça que elas pudessem ser tão lindas, ao ponto de dar vontade de chorar.

Tia Matilde entrou no banheiro. Recuei, mas, ao ouvir barulho d'água, avancei outra vez e dei com os olhos justamente nos da tia.

— Tem gente espiando! — ela gritou.

Num átimo, antes da fuga, meu olhar também se encontrou com o olhar curioso da prima Nely, que estava com um pé dentro da banheira. Rolei até a borda do telhado, agarrando-me nos galhos da laranjeira, e enquanto descia ia ouvindo os gritos da velha bruxa:

— Um homem no telhado! Um homem no telhado!

Um rebuliço dentro de casa, vozes, passos, mas quando mamãe entrou na cozinha, armada de vassoura, eu estava abrindo a geladeira.

— Ah, estás aí? — e sem esperar resposta, saiu pela porta dos fundos. Voltou em seguida, sem a vassoura. — Subiste no telhado?

— Eu?

— Jura.

— Por Deus Nosso Senhor.

— E vocês, suas patetas — para as empregadas —, não viram nada? Ai, que vergonha, quantas vezes já pedi pra trocar esses vidros...

Depois veio papai. Me olhou, sorriu, passou a mão na minha cabeça, mas não disse nada. Mamãe, à porta do banheiro, tranquilizava a irmã.

— Não tem ninguém, Matilde.

— Mas tinha, eu vi!

— Pode ter sido uma coruja...

O assunto, durante a janta, foi o espião, mas qualquer suspeita que houvesse a meu respeito foi dissipada pela prima, que fez a descrição do criminoso: velhusco, escabelado e de bigode tordilho. Mamãe achou que esse retrato se adequava a certo Plínio, balconista da farmácia, ao que papai, com algum enfado, contrapôs que aquele Plínio, com sua perna mecânica, não podia subir em árvores. E arrematou:

— Amanhã mando trocar os vidros.

Naquela noite Nely e sua mãe foram ao baile, onde seria coroada a nova miss de nossa cidade. Levou-as Maneco, todo campante em seu Pontiac.

O baile não terminava nunca. Na cama, atento a todos os ruídos, eu esperava. Adormecia, despertava, e a cada vez que despertava pensava que ia morrer de dor no peito. Deitava-me de costas, mãos cruzadas na barriga, como me lembrava de ter visto meu avô morto. E esperava. E a prima Nely não voltava e eu não morria. Já madrugava o dia quando, exausto, olhos ardidos, respiração pequena, ouvi o ronrom do Pontiac. Uma porta bateu e depois a grande sombra de Tia Matilde deslizou pelo corredor. Da prima, nada. Levantei-me e, pé atrás de pé, atravessei a casa até a porta da frente, que dava para um sacadão de balaústres com uma escada lateral.

Nely e Maneco conversavam no portão. Deitei-me no piso da sacada e, entre os balaústres, vi quando ele a beijou. Em seguida ouvi Nely dizer: "Assim não, me solta". Maneco a soltou e, ao entrar no carro, bateu a porta com força.

A dor era tanta que me paralisava.

— Anjinho — assustou-se Nely —, o que estás fazendo aí?

Sentou-se no chão, me deu um beliscão no queixo e me puxou, apertando meu rosto contra o peito.

— Me esperavas, não é?

E me acariciava o rosto, o pescoço, e ofegava, eu sentia sua respiração em meus cabelos. "A priminha também te ama" e conduzia meu rosto de um seio ao outro seio.

— Gostaste de me ver no banho?

Fiz que sim e ela tirou o casaquinho, baixou a alça do vestido.

— Queres?

Se eu queria? As rolinhas da prima Nely! Os biquinhos! E ela me embalava para frente e para trás, como se embalam os bebês. Sua axila tinha um cheiro delicado de suor e água-de-rosas.

— Agora temos dois segredos — ela disse. — Aquele e este. Mas haveria outro.

Nely começou a namorar o filho do prefeito. Não ficou em nossa casa dois ou três dias, como estava previsto, foi ficando e ficando, mesmo depois que Tia Matilde voltou para Itaqui. À noite, costumava esperá-la na sacada e ela dizia ao namorado: "Vê que gracinha, ele me cuida..."

Nely e Maneco se casaram e foram morar no edifício mais alto da cidade. Quando Maneco viajava — e isso acontecia com frequência, pois seguia os passos do pai na política —, a prima, que não gostava de ficar sozinha, pedia ao marido: "Traz o anjinho pra me fazer companhia".

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