Em nossa rua o chamavam de Babá. Não era mais travesso do que outros piás da mesma rua, mas se destacava por ser muito inventivo. "Esse guri vai longe", diziam, sem apontar em que direção. Um que outro podia achar que Babá era um trapaceiro, mas ninguém tinha certeza disso.
Arauto das novidades, com um repertório propenso ao invulgar, frequentemente nos assombrava com o relato de suas experiências. Certa vez disse ter feito um foguete com pólvora de cartucho. Outra vez apareceu com um fotograma ginecológico e fez na terra o desenho do projetor que pensava construir com cartões, lentes e espelhos. Não chegamos a ver o projetor, mas durante muito tempo aguardamos, ansiosos, o dia da inauguração.
Babá era filho do latoeiro. O latoeiro era gago. Quando perguntavam seu nome, o Romildo saía a jato, mas o Bassani demorava um pouco e por isso se tornou conhecido como Seu Babá. Tinha dois filhos, Pedro Paulo e Ricardinho. O primeiro herdou o apelido do pai, e o segundo, que era meio doente e dengoso, ficou sendo o Outro.
Católico, frequentador da missa, Romildo Bassani levou o filho maior para o catecismo. E Babá já não falava de outra coisa, só de sua instrução religiosa. Era assustador o que aprendia no soturno casarão ao lado da igreja. Como aquela história de que, morrendo, as pessoas não morriam completamente.
— Suas almas vivem — explicava.
Éramos quatro no monte de areia, à frente de uma casa em obras, os filhos do sapateiro, Acacinho e eu. E como me parecesse que Babá esperava um comentário, arrisquei:
— É por isso que existe alma penada. Babá me corrigiu:
— Dizer que existe alma penada é ignorância. Se o corpo morre, a alma voa para o céu.
— Como é que sabem? — perguntou Acacinho.
— Viram.
Acacinho não se convenceu.
— Não sei de ninguém que tenha visto alma voando.
— Mas o céu está assim de almas que vão prestar contas dos atos praticados por seus corpos na terra. Como é que elas chegam lá?
— Prova.
— Não posso, ainda não me ensinaram todos os mistérios. Mas a voz do padre é a voz de Deus e ele garantiu: as almas voam para o céu.
— Isso mesmo — eu quis ajudar. — Por que, nos velórios, deixam o caixão aberto? É pra alma poder sair.
— Pura ignorância — corrigiu novamente Babá. — A alma sai do corpo na hora da morte.
— Tá, sai, mas por onde — insistiu Acacinho. Babá pensou um pouco.
— Só pode ser pelos poros, como o suor. E evapora no ar. No ar não, na atmosfera.
— Eu não quero evaporar — reclamou o Outro.
— Não há perigo — disse Babá. — É só tua alma, e isso daqui uns noventa anos.
— Ah, bom.
— Duvido — tornou Acacinho. — Como é que a gente vai acreditar numa coisa que não vê?
— Ora, há muita coisa que a gente não vê e acredita.
— Diz uma.
Babá pensava outra vez e acorri em seu auxílio.
— O pum.
Ele deu uma risada, mas Acacinho não gostou do exemplo.
— Esse não serve. A gente não vê, mas sente.
— Com a alma é a mesma coisa — disse Babá. — A gente sente e com fé acaba vendo. A fé remove montanhas.
— Até uma montanha de areia?
— Não, só montanha de verdade, como o Everest e o Pão de Açúcar. Mas é preciso ter fé. Sem fé, não se levanta um palito.
— Um palito eu levanto.
— Porque acreditas que podes levantar. É assim com as montanhas e o resto, foi o que o padre disse. Com fé, a gente enfia um camelo no buraco de uma agulha.
— Um camelo de verdade, com calombo e tudo?
— Camelo ou dromedário? — eu quis esclarecer. — Porque o camelo tem dois calombos e...
— Não interessa — cortou Babá. — Com fé passa tudo, até girafa em pé. Com fé a gente vê a alma voar.
— Prova, prova — exigiu Acacinho.
— Como é que vou provar? Matando alguém? Antes, a alma não aparece, está guardada, e depois não está mais ali, já subiu.
— Guardada! Guardada onde?
— No cerebelo — acudi.
— Pode ser, sim, no cerebelo — disse Babá, e pude sentir no rosto, finalmente, o rubor de uma vitória. Que não chegou a ser completa, pois ele acrescentou: — Mas na maior parte das pessoas a alma está guardada no goto. Por isso que, quando entra um farelinho, a gente tosse. A tosse é a voz da alma.
— Isso — confirmei. — Meu avô morreu tossindo. Mas eu tinha errado outra vez.
— Tosse de doença é outra coisa. Teu avô morreu tuberculoso. Acacinho, que por momentos estivera quieto, absorto, acordou-se.
— Olha lá aquele frango. Vamos pegar.
— Pra quê? — assustou-se Babá.
— Tá com medo? Vamos matar o frango e ver a alma dele voando para o céu.
— Não sei se frango tem alma.
— A gente experimenta.
Babá relutou, mas não pôde recusar.
— Tá bem, mas sem fé a gente não vai ver porcaria nenhuma.
— A gente tem fé — animou-se Acacinho. — A gente pensa na fé com força... assim... — e espremeu-se todo.
Ao grito de pega saltamos os quatro atrás do frango, que fez um escândalo, dando pinotes e cacarejos até que o encurralamos num vão de porta. Acacinho o agarrou. Voltamos à nossa pequena montanha, dissimulando e de olho na rua. Mas não havia ninguém na rua. O sol continuava alto e ainda não chegara a hora em que as famílias punham cadeiras na calçada para conversar e ver o trem de Quaraí passar no cruzamento.
Acacinho reclamava das bicadas e me apressei em cavar a sepultura. O frango pulava, enlouquecido, mas não resistiu aos quatro pares de mãos que o empurraram cova abaixo e o cobriram de areia. Ouvimos um ruído surdo, um estranho qüé, um frêmito sob nossos pés que se prolongou por alguns segundos e depois silêncio, a quietude da areia quente e nossos corações aos saltos. Mas nossos olhos estavam cegos, era pequena a nossa fé.
Babá desenterrou o frango. Acacinho, nervoso, queria embrulhar o corpo num papelão que não dobrava. E o Outro a choramingar:
— Ele disse qüé, ele disse qüé...
— Vamos botar lá nos trilhos — disse Babá. — Daqui a pouco passa o trem e vão pensar que morreu atropelado. Na volta, vínhamos cabisbaixos e olhando de viés para os primeiros moradores que abriam suas preguiçosas.
— Se é verdade que as almas prestam contas no céu — disse Acacinho —, as nossas vão pro inferno.
— Eu não quero ir pro inferno — gemeu o Outro, e olhava para o fim da rua, como se de lá viesse o diabo à sua procura. Mas o diabo estava noutro lugar.
— Ninguém vai pro inferno — disse Babá. — Quem mata um frango empresta a Deus.
Respiramos, aliviados. Estávamos livres do castigo divino e, sem demora, estaríamos livres do castigo dos homens: o sol já ia caindo, a rua estava repleta de cadeiras e ouvíamos, perto do cruzamento, os apitos do trem de Quaraí.