Tentei escapar pelo portão com o embrulho debaixo do braço, dei com meu pai que saía na porta. Ele fingiu levar um susto.
— Ué, não era tu que andava na cozinha atrás de pão?
Entardecia. A única loja da rua já fechara sua única porta. Nessa hora as famílias da rua punham cadeiras na calçada, para conversar e ver quem entrava na igreja para o ângelus.
O pai armou a preguiçosa, e enquanto se acomodava ia me lançando olhares.
— Quer dizer que vai levar pãezinhos pra vovó? Que netinho camarada.
Temi que começasse com questões, ele era muito abelhudo e debochado, mas apenas piscou o olho.
— Vê se não fica até de manhã, faz favor.
— Onde é que esse menino vai? — perguntou minha mãe, que também chegava com a cadeira.
Fui saindo e cruzei a rua. O pai ficou me espiando, e quando eu olhava para trás ele gritava "dá um beijo na tua avó que eu mando", me abanava com o chinelo e dava gargalhadas.
Adiante um gato desceu de um muro e subiu no pilar de um portão. Longe, na várzea, um boi mugiu. Atrás do muro em que estivera o gato havia um quintal. Atrás do quintal, um canavial e o rio. O caminho para lá, estreito e sujo, não fora aberto por enxada ou rastilho e sim pelos pés clandestinos dos homens e rapazes da cidade. No fim do caminho morava Zoé.
O penteador de madeira crua com banqueta, a cama funda, um baú, fotos de Clark Gable iluminadas, assim era o quarto de Zoé na casinha ao pé do rio. Você podia bater a qualquer hora do dia ou da noite, bastava presenteá-la com uma réstia de cebolas, ovos e até com menos, Zoé era gente boa.
Um ventinho brando retouçava no canavial, não se ouvia mais a bulha dos pardais na terra nem a chamação das rolinhas desgarradas. Era quase noite. Zoé me fez entrar e guardou no penteador os pãezinhos, menos um, que deixou em cima. Quis saber meu nome e apontou num caderninho sujo que trazia no bolso do chambre.
— Que idade tu tem, amor?
Começou a se desabotoar. Menti que passava dos quinze e ela fez uma careta.
— Vai ficar aí sentado vendo eu me pelar?
Fiquei em pé, de costas, Zoé deu uma risada, me envolvendo na atmosfera amarga de seu hálito.
— Não, burrinho, vem cá, me ajuda.
Dobrei o chambre na banqueta. Só de combinação, ela se enfiou debaixo da colcha até o pescoço.
— Assim tu não fica com vergonha.
Era apenas um truque. Em seguida afastou a colcha, num gesto teatral que me esmagou. O peito nu, o umbigo raso, o tufo de pelos ruivos e profusos... e ela sorriu, faceira com meu assombro.
— Vem.
Me deu um abraço, um beijo sufocante. Seus dedos ágeis desprenderam os botões da minha camisa.
— Não vai tirar o sapatinho, amor? E o meu lençolzinho branco?
Repousei a cabeça no ombro dela. Tinha planejado pensar no diabo com força para fechar uma corrente de coragem, mas não estava dando certo. A corrente que fechava era com minha mãe, a pobre decerto na janela, vá preocupação, onde será que se meteu esse menino com os pãezinhos?
— Então vai de sapatinho mesmo. Quer que apague a luz?
Apagou-se a lâmpada de cima ao mesmo tempo em que se acendeu a de um Clark Gable na parede, bem vermelha. Outro truque de Zoé.
Ela passou a mão nos meus cabelos, e como a adivinhar meus pensamentos pôs-se a me fazer carinhos. Era mansa, Zoé. Às vezes me dava um beliscãozinho, e ria, às vezes me beijava os olhos, murmurando palavras de amor que nunca mais ouvi. Minha cabeça descansava em seu peito, que subia e descia num compasso calmo. Depois ela comeu o pãozinho, depois ainda adormeceu. Em volta de seus olhos havia manchas escuras. Seus lábios estavam entreabertos e no canto da boca restava um farelinho do meu pão.
Quanto tempo ficamos assim?
Já amanhecia, Zoé se moveu. No sono ainda, pôs a mão no meu pescoço e me conduziu até o bico do peito magro.
Sussurrava uma toada de ninar, Zoé, e eu tinha certeza de que, nesse momento, não havia truque algum.