Quatro Gringos na Restinga - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Quatro Gringos na Restinga - Conto de Sergio Faraco
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Quatro Gringos na Restinga - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 8 set. 2024
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"Para não se encontrar com os temidos quadrilheiros, escolheram um lugar afastado, onde se banhavam quatro gringos."

Pedro e seu irmão foram tomar banho na restinga, que distava uns quatrocentos metros da última casa da cidade, já na vizinhança dos potreiros do regimento. Eles costumavam banhar-se no rio, sob a ponte ferroviária — o lugar preferido dos moradores do centro —, mas Pedro, o mais velho, envergonhava-se de jamais ter ido à restinga, reduto da gentalha suburbana e, sobretudo, dos Cobras, assim chamada uma súcia de irmãos de olhos puxados que, com alguns agregados, volta-e-meia surravam a gurizada de outros bairros. No centro, quem evitava a restinga era considerado um cagarolas.

Pedro levou um canivete automático, surripiado da mochila de pesca de seu pai. Não tinha nenhuma intenção de usá-lo, era só um estímulo à coragem.

A restinga, que na parte mais funda mal cobria o umbigo de um guri, estava repleta de deselegantes banhistas: a miuçalha de calça curta ou desnuda; o mulherio, umas poucas de maiô e a maioria de short com sutiã; os marmanjos mais atrevidos, ou mais pobres, entravam n'água em cuecas. Pedro se assombrou ao ver um deles cuja cueca branca, grudada ao corpo, mostrava o volume do pênis e a sombra de seus pelos.

Para não se encontrar com os temidos quadrilheiros, escolheram um lugar afastado, onde se banhavam quatro gringos, recrutas da cavalaria que Pedro reconheceu pelo corte do cabelo.

Pedro e seu irmão se despiram, exibindo os bonitos calções. Os gringos cochicharam e um deles levantou-se. Estava nu.

— Aqui só pode tomar banho pelado — e apontou um dos outros: — Ordem do capitão. Os irmãos se olharam.

— Não quero tirar o calção — disse o menor.

— Ou tira ou não entra.

— Vamos tirar — disse Pedro.

Os gringos jogaram água em Pedro e este, embora sem vontade, retribuiu a brincadeira. Seu irmão afastou-se um pouco, sentando-se, e a água dava em seu pescoço. O capitão o chamou:

— Chega pra cá, guri, a gente tá fazendo um torneio pra ver quem tem o pau maior. O irmão de Pedro não se moveu.

— É teu irmão?

— É — disse Pedro.

— Convida ele pra entrar no torneio.

— Ele não quer.

— Convida.

— Vem cá — disse Pedro.

O outro se aproximou, mas não muito. O capitão ergueu o regaço.

— Já viste deste tamanho?

— Já — disse o menino.

— De quem era?

— Do meu pai.

— Eu digo sem ser parente.

— Vi uma vez, do professor de Educação Física.

— E não deu vontade de sentar?

— Não.

— Ele não é veado — disse Pedro.

— E eu falei que ele era? Falei? Pedro não respondeu.

— Eu chamei ele de veado? Responde!

— Não, não chamou.

— Ele só fez uma pergunta — disse o primeiro gringo.

— Isso, uma pergunta — confirmou o capitão. — De vez em quando alguém pode ter vontade de sentar numa coisa dura e isso não quer dizer que seja veado. E então, maninho, deu vontade ou não deu?

— Não.

— Nem de pegar um pouquinho?

— Para com isso — pediu Pedro. — Ele é pequeno.

— Pesa mais de trinta quilos — disse o terceiro gringo, que até então se mantivera calado.

Os gringos riram, menos o quarto, que não falava, não ria e visivelmente se masturbava. Pedro viu que o irmão estava vermelho, de olhos baixos.

— Faço um trato — disse o capitão. — Ele pega o meu e depois o tenente pega o dele. Certo, tenente?

— Certo — disse o primeiro gringo.

O irmão de Pedro olhou para Pedro. Pedro sentiu-se tentado a dizer sim, para acabar de vez com aquilo, mas o menino, ou porque lhe adivinhara o pensamento, ou porque chegara ao limite de sua resistência, começou a chorar.

— Deixa ele — pediu Pedro uma vez mais.

— Qual é o problema? — tornou o capitão, empurrando-o com alguma violência. — Não entendeu que é pra calar a boca?

— A gente já vai embora.

— Não vai coisa nenhuma. E tu, guri — chamando o menino com o dedo —, me dá tua mão. Pedro levantou-se.

— Onde é que tu vai, bundinha?

— Já volto.

Remexeu no monte de roupa e pegou o canivete.

— Olha só. Automático.

Apertou o botão e a lâmina saltou com um estalo. Os gringos olhavam para o canivete, menos o quarto, que não olhava para nada.

— Onde é que tu conseguiu isso? — quis saber o capitão.

— O Cobra me emprestou.

— Cobra? Quem é o Cobra?

— O chefe da quadrilha que manda aqui no bairro. Ele já feriu um homem com esse canivete.

— Deixa ver.

O capitão fez a lâmina recuar e a acionou novamente.

— Bacana. Me dá?

— Não posso.

— Pode sim, por que não?

— Tá bem — disse Pedro. — Depois explico ao Cobra que precisei dar de presente a um capitão. Agora a gente pode ir?

— Certo — disse o capitão. — Amigos?

— Amigos — respondeu Pedro, puxando o irmão.

Vestiram-se e enveredaram, a passos ligeiros, pelo matinho que orlava o sangão.

— Viu como ficaram com medo de mim?

— Não — disse o menino.

— Mas ficaram. Se eu não estivesse aqui, nem sei o que te aconteceria.

Ainda estavam longe da primeira rua e Pedro sentiu o coração disparar. Pela mesma trilha vinha o Cobra, o nº 1. Atrás dele, outro que Pedro não soube identificar se seria o nº 2 ou o nº 3. O líder era um guri amulatado, cara de índio, músculos fortes e socados.

— Como é que tá a água? — perguntou, de passagem.

— Boa — disse Pedro.

O irmão de Pedro seguiu caminhando, mas Pedro se deteve para olhar o quadrilheiro, com admiração e respeito.

— Cobra — gritou, rouco.

O Cobra parou adiante, voltando-se.

— Roberto. Cobra quem me chama é inimigo. Pedro o alcançou.

— Roberto... — e teve um acesso de choro.

— Calma — disse o Cobra, olhando-o com simpatia.

— Meu irmãozinho... eles queriam pegar à força...

— Eles quem?

— Os gringos! Roubaram o canivete do nosso pai...

— Onde é que eles estão?

— Atrás daquele umbu.

— São muitos?

— Quatro.

— Espera aqui.

Assobiou para o parceiro, que se distanciara, e tomou a direção indicada. Pedro enxugou o rosto na camisa e chamou o irmão.

— O Cobra vai lá.

— Vai?

— Mandou esperar aqui.

O menino sentou-se numa pedra e ficou observando Pedro, que caminhava de um lado para outro e fungava e não tirava os olhos do matinho da restinga.

Minutos depois voltou o Cobra com o canivete.

— Obrigado, Cobra — disse Pedro.

— Roberto.

— Obrigado, Roberto, por esse grande favor.

— Não foi nada.

— Podemos ser amigos, não podemos?

— Claro — disse o Cobra. — Apareçam lá na praça. Pedro e seu irmão iam retornando para o centro.

— Ele nos convidou pra ir na praça deles — disse Pedro.

— Eu ouvi.

— Ninguém vai acreditar. O Cobra! O nº 1! O irmão de Pedro o olhou.

— Se o Cobra te pedisse pra pegar no tico dele, tu pegava?

— Que pergunta — disse Pedro.

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