Doce Paraíso - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Doce Paraíso - Conto de Sergio Faraco
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Doce Paraíso - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 10 set. 2024
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"Tia Morena era professora de latim, solteirona. Sempre que se falava nisso, que não se casara, desandava em explicações sobre a absorvência da ação educativa. E todos acreditavam, pois feia ela não era."

No último ano do ginásio meu pai me levou a morar com Tia Morena, a letrada da família. Para que tomasse gosto pelo estudo, dizia. Me queria médico, engenheiro, advogado, qualquer coisa que desse dinheiro, posição social e, enfim, uma vida mais acomodada do que a dele.

Tia Morena era professora de latim, solteirona. Sempre que se falava nisso, que não se casara, desandava em explicações sobre a absorvência da ação educativa. E todos acreditavam, pois feia ela não era. O que a prejudicava era a severidade no vestir, no andar, no tratar com as pessoas. Havia em torno dela uma muralha de respeitabilidade que ninguém ousava atravessar.
Morávamos perto do colégio. Era uma casa pequenina, mas tinha um quarto de estudos e era nele que eu dormia. Além da cama, havia uma estante com livros e uma escrivaninha, cujas gavetas muito me intrigavam: viviam trancadas e a chave ela trazia pendurada no pescoço, como um medalhão.
O quartinho era a minha prisão de todas as manhãs. Quando eu voltar quero o hino na ponta da língua, entendido?

Sozinho, eu me punha a cantar:

Audierunt Ypirangae ripae placidae
heroicae gentis validum clamorem,
solisque libertatis flammae fulgidae sparsere
Patriae in caelos tum fulgorem.

Sem demora me enfastiava e matava o tempo desenhando no caderno, treinando chutes de botão, às vezes procurando um meio de chegar, sem deixar marca, ao conteúdo das gavetas. Era chato, mas a gente ia vivendo. Ela cozinhava para mim, ouvia comigo pelo rádio O direito de nascer, me acompanhava ao cinema se a fita era de amor, só virava bicho quando eu passava pelado do banheiro para o quarto. Que falta de vergonha, exclamava, a ruborizar.

Foi numa dessas manhãs latinas que aconteceu aquilo que, um dia, teria de acontecer: Tia Morena esqueceu-se de chavear a escrivaninha. Com o coração aos pulos comecei a vasculhar suas gavetinhas misteriosas. Fotografias antigas, cartas de amigas, joias baratas, diplomas, nada havia que justificasse tamanha vigilância e eu me decepcionava, já repunha no lugar aquela barafunda de saudade quando, num saquinho plástico, descobri seu tesouro: um álbum pequeno, daqueles que as meninas usavam para copiar sonetos de J. G. de Araújo Jorge. Era o diário dela. E que espantosa descoberta! Noventa páginas de solidão, fome, desespero de amor, que li e reli de cabelo em pé.

À tarde, no colégio, o diário não me saía do pensamento. Incrível que Tia Morena, ao menos a que eu conhecia, tivesse escrito aquelas loucuras todas num papel. Incrível que passasse a noite em claro, gemendo, ansiando por um homem. Me confundia, sobretudo, a revelação de que era assim tão vulnerável. Havia uma anotação sobre um pintor de paredes que a vira mudar de roupa. Outra relembrava um sonho, no qual era violentada por um tal de Amaury. E outras, muitas outras, e a que mais fundo me calou: fogosa página sobre minhas corridas do banheiro para o quarto.

Ao voltar para casa, encontrando-a no banho, não pude resistir à tentação de espiá-la. Larguei a pasta no quartinho e pé por pé, no corredor, ia ouvindo o barulho da água, imaginando os movimentos que ela, nua, havia de fazer ao se ensaboar, imaginando a água em seus cabelos, no pescoço, no rego entre os seios. Tentava enquadrá-la no buraco da fechadura quando ela abriu a porta.

— Meu Deus, que é isso — gritou, horrorizada. — Já pro teu quarto, sem-vergonha!

Na cama, chorando, pensava em me matar. Como olhar nos olhos dela, depois daquela cena? Havia de me matar, naturalmente. Antes a vida era tão boa, pensava, por que meter o nariz no que não era da minha conta? Por quê? E soluçava, abraçado ao travesseiro.

Na hora da janta, já estava escuro, a porta do quarto se abriu e Tia Morena, de camisola, mão no trinco, ficou parada ali, recortada na luz da sala. Virei o rosto. Na parede a sombra dela começou a crescer, agigantou-se, ela estava ao lado da cama, decerto me olhando, me odiando, amaldiçoando a hora em que me aceitara em sua casa. Encolhi as pernas à espera do castigo.

— Há certas coisas que precisas aprender — disse ela. E sua voz, não, nenhum sinal da dureza costumeira. — Estás ouvindo?

Voltei o rosto e ela, sentando-se, me beijou. Já és um homenzinho, sabe? Outro dia te vi sem roupa, não é verdade que já tens muitos cabelos? Tomou-me as mãos entre as suas e assim permaneceu, quieta. Respirava forte, os seios visíveis sob a camisola, e jamais me passara pela cabeça que os tivesse tão bonitos e redondos.

— Alguém precisa te ensinar — ciciou, como em segredo.

Apertava minha mão e pôs-se a conduzi-la suave e lentamente, como receando me assustar, mas no momento em que disse "não conta pra ninguém", transformou-se, abandonou-se sobre mim e ao seu langor, murmurando palavras que eu não compreendia, entrecortadas de ais e de suspiros.

No dia seguinte levantou-se tarde, pálida, com olheiras.

— Queres conversar sobre o que aconteceu conosco? — perguntou, sem me olhar.

Esperou minha resposta e esperou em vão, eu não falava, eu me engasgava. Ela então me olhou, um olhar machucado, ficou depois olhando o chão e eu fui saindo, quase fugindo para não chorar.

Andei pela cidade sem destino, andei e andei e por onde andava ia carregando aquela dor intensa. Mas não era uma dor comum, eu a gozava e a bebia e me sentia diferente, com o corpo até pequeno para os sentimentos de seu novo habitante. Então decidi, resolvi que chegando em casa diria exatamente isso, que me doía e era bom que doesse, e que eu não queria que essa dor passasse.

Encontrei-a sentada no sofazinho da sala, descalça, abraçando os joelhos erguidos. Me aproximei, ela ergueu o rosto. Estava séria, mas desaparecera por completo, talvez para sempre, a severa face da mestra de latim. Havia uma doçura profunda em seu olhar, decerto a que teriam os olhos de Eva no Paraíso, depois de seu pecado.

— Voltaste — foi tudo o que conseguiu dizer.

— Voltei — foi tudo o que eu disse.

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