É tão estranho, eu chego, olho, fico com a impressão de que me perdi e estou voltando à casa errada. São poucas as coisas que restaram. No topo da escada um guarda-louça está se abrindo ao peso dos camoatins. Mas da escada nem sinal, talvez aquele bronze ali tenha sido outrora o corrimão. É tão estranho, é algo tão fundo que trago em meu peito. Ando e sob minhas botinas estalam cacos do antigo lustre de pingentes. Tijolos soltos da lareira, sobre eles a viseira de um elmo e uma lança de ferro, vestígios de uma panóplia que já não lembro. Um busto mutilado do Major Verardo, candelabros cor de chumbo, latas velhas e os grilos estão cantando. Sim, esta é a casa. Vês? Aquela sombra na parede parece Vovó Rosário procurando suas agulhas de tricô.
Da janela hoje sem vidros ainda se avista o sítio até que desça para o rio, mas não se enxerga mais o rio. O mato cobriu o sítio e até os caminhos que papai cruzava com a rede às costas e sua linha de traíras. Cresceu ao redor de nossa casa, minou-lhe os alicerces com raízes, vai rachando as paredes e entrando dentro dela. O mato cobriu tudo. Com o mato vieram os ratos, as formigas, e é um milagre que a casa esteja ainda em pé.
Nossa casa, nosso sítio, parece mentira que isto outrora foi um paraíso ao pé do rio, um canto do mundo entre pomares, fontes, caminhos de saibro e plátanos seculares, o reino em que tu reinavas com um sorriso nos lábios e a mãozinha gorducha a pedir sempre mais. Na madrugada batiam os tarros do leiteiro, passava o padeirinho anunciando o pão. Mamãe ficava à espera na varanda, escuro ainda, e lá em cima as estrelinhas a piscar, Vovó Rosário garantia que elas faziam plim-plim, plim-plim, chamando a gente, e aquele que fosse nunca mais voltava.
Rapadurinhas, queijo, suco de maracujá, em breve sairias a campo para as pequeninas crueldades matinais. Aqui era a empalação do caracol num pau de fósforo. Ali confundias as pobres formiguinhas com o dedo atravessado no carreiro. De vez em quando um maranduvá te queimava o lombo e era uma correria dentro de casa com talcos e pomadas. Não, tu não tinhas passado nem futuro. Para ti, Vovó Rosário tinha nascido de cabelos brancos e com dores reumáticas, Major Verardo era apenas um busto negro cuja vida e cuja obra não tinham sido deste mundo. A morte, para ti, não passava de uma moléstia das gentes pobres, que não se vacinavam no posto de saúde, e mesmo assim era uma ausência temporária. Em seguidinha, talvez no domingo, na retreta, no balcão da confeitaria ou na matinê, a gente encontraria o morto cheio de novidades, como quem viesse da Europa.
Sim, esta é a casa.
Esta é a casa e também é verdade que a casa é outra. Tudo mudou e das pessoas então nem se fala. Vovó Rosário partiu sem demora, um vento frio que pegou nas costas. O padeirinho desapareceu, sumiu, e o leiteiro, que fim teve o leiteiro? Mamãe, papai, também eles foram buscar sua fatia de luz na estrelinha plim-plim.
Tudo mudou e deves ter notado que eu mudei também, quem não mudaria? A vida é assim. De repente tu te olhas num espelho, no mesmo espelho em que te olhaste noutras manhãs na vida, e de repente tu te assombras. Aquela rugazinha ali, de onde é que veio? Teus cabelos começam a cair, e teus dentes, ah, já não podes trincar rapadurinhas. Pouco a pouco vais ficando como o vovô do busto negro, com as feridas da revolução.
Não, não desespera.
Não desespera, eu te peço, nem tudo está perdido, sempre resta a esperança de que a gente encontre o caminho que leva ao reverso das coisas, e então pode ser que tudo, tudo mesmo comece de novo. Te garanto que nalgum lugar a vida continua. Me dá tua mão, passeia comigo pela casa. Os grilos estão cantando num ritornelo que vem desde o rio. Vem. Vou te mostrar como a casa ainda é bela neste entardecer. Pequenas avezinhas se aninharam nas janelas, e um boi está pastando em nossas ruínas.