Um Destino para o Fundador - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Um Destino para o Fundador - Conto de Sergio Faraco
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Um Destino para o Fundador - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"Por mais que exigisse da memória não conseguia recordar-se de algum dia ter andado naquele terraço ou mesmo ter ouvido falar dele."

Um dia um funcionário de uma grande empresa, depois do lanche da tarde, não conseguiu retornar à seção em que trabalhava. Era um dia sombrio, tão sombrio quanto o comum dos dias na grande cidade. Era um dia enfumaçado, com cheiro de carvão, mofo, água parada, uma tarde igual ao comum das tardes, e depois do lanche ele tomou o elevador, o mesmo que tomava sempre, todas as tardes. Como sempre, acionou o botão que correspondia à sua seção. Como sempre, o elevador moveu-se para cima. Mas ao abrir-se a porta deparou-se com um lugar que não tinha visto nunca.

Sua primeira reação foi de surpresa, admiração. Velho empregado, integrante do grupo que a diretoria, carinhosamente, denominava Fundador, conhecia como poucos o difícil mapa do edifício, seus corredores estreitos e esquinas abruptas, suas portas falsas e salas secretas. Mas por mais que exigisse da memória não conseguia recordar-se de algum dia ter andado naquele terraço ou mesmo ter ouvido falar dele.

Pois era um terraço, e como todos os terraços, parecia situar-se pertinho do céu. Céu gasoso, pardo de sujeira, onde esvoaçavam lá no alto, quase a pairar, finos, esguios, donairosos como garças, grandes pássaros em bando. Um terraço, mas não o do edifício, aquele com piscina, mesinhas, bar, privativo dos diretores e das belas secretárias que eles levavam para lá. Um lugar que não tinha visto nunca. Altos muros o delimitavam, e no centro do lajedo escuro, atarracada e compacta, uma torre circular.

Uma casa de bombas não constante das plantas? Uma seção ultrassecreta? Não, pensou, não havia mal algum que ele, um Fundador, percorresse o lugar, observasse aquela torre estranha. Confessaria depois ao diretor os lances da aventura e ririam os dois, satisfeitos com o progresso da empresa, tão vertiginoso que escapava ao controle de seus velhos guardiões.

Deu os primeiros passos devagar, com cautela, olhando em torno para apreender algum dado, alguma referência. Nada. A torre plantada no centro, o lajedo escuro, os muros e além deles a cidade, os ruídos antigos da cidade. Sirenas, longínquas buzinas, britadeiras, arrancos de escavadeiras e no fundo o surdo rumor da multidão se arrastando pelas ruas. Mas a cidade, esta ele não via. O horizonte do muro só lhe concedia fumo de chaminés, reflexos de um avião ao longe, os pássaros agora mais próximos, circulando, circulando.

Que faziam naquela área da cidade?

Lembrou-se dos papéis da empresa, uma águia no canto superior esquerdo, asas abertas, tensas, olhar perscrutador. Aquele passarão queria significar que a empresa estava sempre lá no alto, acima dos interesses rasteiros de cada um, até porque, de lá, olharia pelos interesses de todos. Por trinta anos acreditara nessa ideia e não se arrependia. Nesses trinta anos recebera promoções, prêmios, pudera constituir família, comprar uma casinha, em breve seria aposentado. Com certos privilégios, claro. Privilégios de Fundador. Que lhe facultavam muitas coisas em qualquer tempo, até mesmo bisbilhotar num terraço novo em hora de expediente.

Mas já entardecia e ele não chegara a nenhuma conclusão. De que lado era a porta do elevador? Deu um giro na torre e parou, indeciso. Retornou, andou sobre seus passos, não pôde identificar o ponto em que estivera antes, era tudo igual. Achou graça o funcionário, deu outra volta, e outra, mais outra, nada, nenhum indício de que jamais tivesse havido ali uma porta e menos um elevador. Que história era aquela? Pensou em chamar alguém, mas seria o caso de pôr-se a gritar como um maluco no teto da empresa? Andou ainda, para diante e para trás, apalpando a torre, o muro, procurando um sinal no lajedo, não podia negar que estava um pouquinho assustado. Uma porta sumir assim, simplesmente, e no entanto passara por ela, ninguém delirava depois de um chá com bolachinhas. Tinha certeza. Ao abrir-se a porta, bem que desconfiara. O lajedo, a torre, o muro, um lugar que não tinha visto nunca... Agora, para completar, uma porta invisível. E se espiasse atrás do muro? Ah, já não estava em idade de içar-se feito um guri. Tornou ao chão, ofegante, sem ter visto nada além dos pássaros. Que faziam naquela área da cidade? Circulavam, circulavam, e era isso que faziam.

Nem cogitar de uma brincadeira, seria imprópria, e essas leviandades, de resto, não eram permitidas. Por distração errara o caminho, perdera-se, e infortunadamente viera dar num terraço esquecido cuja porta... Não, quase não acreditava. Perdido num terraço da empresa, logo ele, era muito azar. Numa empresa como aquela, gigantesca, ninguém se lembraria de que saíra para o lanche e não voltara. Passaria a primeira hora, a segunda, passaria o primeiro dia... não, o pessoal ia dar logo pela falta e seria socorrido, a não ser — e teve um calafrio — ...a não ser que não estivesse na empresa, como ter certeza? Era loucura pensar noutro lugar, mas não era loucura maior ter de admitir que uma porta desaparecera sem deixar vestígios?

Filtrado pela poeira, solferino, descera o sol atrás do muro. Hora de estar com a família, lendo o jornal na preguiçosa, ouvindo a bulha dos netos e os resmungos da mulher, não, não ia chorar, isso não. Estava assustado, mas não ia chorar logo agora, não podia deixar que o coração piorasse as coisas. Tentou dominar-se, pensar direito, recapitular seus passos desde o bar, confundiu-se ao ouvir um ruflar de asas. Os pássaros voavam em torno do terraço e ele estremeceu. Não eram tão finos, esguios, não se pareciam com garças e até davam a impressão de estar a rondar, retorcendo as cabeçorras para baixo e para o lado. Horríveis. Pareciam-se, no duro, com o passarão da empresa, bico torneado, olhos afiados de punhal. Gritou, gesticulou para afugentá-los, em vão, eles circulavam, circulavam, e era isso que faziam. Amedrontado, agachou-se ao pé do muro. Dali não os via.

Já ia longe a tarde, os laivos do poente encobertos pelo muro e o vento da noite a insinuar, dolente, seus lamentos de lobo. Encolhido, sentia frio. Puxou as pernas mais de encontro ao peito, pousou a cabeça nos joelhos. Chorava baixo, consternado, então não se lembravam mais dele? Não se davam conta da cadeira vazia? Já se cansara de gritar, bater com os punhos na torre, e agora olhava, como à espera de um milagre, aquela sombra imóvel, a torre misteriosa, escarranchada no piso como um grande sapo. Não viu quando as águias, num bater sonolento de asas, pousaram no muro. E só despertou de sua vã esperança quando o bando todo veio ao chão, rilhando as garras no lajedo. Um sobressalto, um grito, era tarde, muito tarde, trinta anos já se haviam passado.

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