Para Luiz de Miranda
E mais uma vez, a enésima, Tomás pedia que o socorresse. Recém chegara de Montevidéu e encontrara uma correspondência judicial, intimando-o de uma ação de despejo. Devia três meses de aluguel.
— É muito, não tenho — eu disse —, mas o advogado te consigo.
— Achas que é preciso?
— É indispensável.
— E os honorários? Como vou pagar?
Eu trabalhava num órgão governamental frequentado por muitos advogados. Dei o nome de um deles, que me devia um favor e nada cobraria, e marcamos um encontro para segunda de manhã.
Antes de nos despedirmos, Tomás me contou sua última aventura. Conhecera uma uruguaia no avião, casada, funcionária de uma estatal, e passara a tarde com ela em seu apartamento. As uruguaias são insaciáveis, ele disse, e aquela o deixara com taquicardia.
— Pensei que ia morrer.
Éramos amigos desde a juventude e eu ainda guardava um de seus primeiros quadros, um autorretrato em que se parecia com Shakespeare. Era boêmio e mulherengo, como Shakespeare, mas, ao contrário do inglês, que após a farra trabalhava com afinco, Tomás considerava a subsistência uma amolação e refugiava-se num aforismo do próprio Cisne: "Onde não há prazer não há proveito". Dificilmente vendia seus retratos, dificilmente os terminava: a regra era ter um caso com a retratada e deixar a obra pela metade. Se conseguia um emprego, trabalhava uma semana e, ao receber o primeiro pagamento, sumia. Quem o procurasse, certamente o encontraria num dos bares da moda, na companhia de uma mulher. Às vezes desaparecia por mais tempo, semanas, meses, e de repente estava chegando de Paris ou Asunción, para onde fora sabia-se lá com que meios e de onde voltava, claro, sem meio algum. Eu costumava ajudá-lo. Alguns amigos comuns reprovavam tanto o seu comportamento como a minha solidariedade, e Erasmo, que era diretor de uma agência de publicidade, que era casado com a bela e insossa Cláudia e vivia metodicamente, ia mais longe: ajudar Tomás era estimular sua vida desregrada.
Na segunda-feira, Tomás não apareceu. Telefonei, não estava em casa. Fui trabalhar e somente à noite me lembrei de que ele não dera sinal de vida. Telefonei outra vez, em vão. Estava aborrecido com sua incúria e, ao mesmo tempo, já um tanto apreensivo.
Liguei para Erasmo.
— Este é o Tomás que conhecemos — disse ele.
— Não terá acontecido alguma coisa?
— O quê, por exemplo?
Contei a história da uruguaia, da taquicardia, do "pensei que ia morrer". Erasmo riu.
— Ele tem mais saúde do que nós. É um aproveitador.
Eu podia ter lembrado que, dez anos antes, Tomás o levara para a agência da qual agora era diretor. Mas não o fiz.
— Estou pensando em ir lá amanhã de manhã. Me acompanhas?
— Não posso, tenho uma reunião.
— Então depois da reunião, não quero ir sozinho.
— Não, não vale a pena. Esse cara é um sacana.
— É um amigo, Erasmo.
— Amigo? Que amigo? Ele goza e a turma paga a conta?
De manhã, a caminho da repartição, passei no apartamento de Tomás. Nenhuma resposta e o silêncio tornava mais estridente e ominoso o toque da campainha. Procurei o zelador.
— Falei com ele na sexta — disse o homem. — Me pediu pra comprar o jornal, quando fui entregar ele não estava ou não pôde atender.
— Não pôde atender?
— É, às vezes ele... está acompanhado.
— Claro. E quando viaja, costuma avisar?
— Ele? Não, não avisa nada, tem que adivinhar.
— E a correspondência? Não pegou?
— Que eu tenha visto, não.
Perto do edifício havia um orelhão. Era cedo, talvez ainda alcançasse Erasmo em casa. Tinha decidido entrar no apartamento.
Atendeu Cláudia, com a impessoalidade de uma gravação:
— Não se encontra.
Eu disse "que azar", ela quis saber o que havia e depois, curiosamente, mudou de tom.
— Eu posso ir lá contigo.
— Obrigado, não é necessário. Arrumo outra pessoa.
— Por que outra pessoa, se eu posso?
— Como quiseres, mas...
— Eu vou.
Erasmo não gostaria de saber que sua mulher estivera na furna do lobo, mas, se eu queria uma testemunha e ela fazia tanta questão...
Contratei um chaveiro nas imediações. O homem já estava trabalhando quando Cláudia chegou. Trazia uma saia curta, branca, que lhe ressaltava as pernas morenas. Chupava uma bala de menta e estava excessivamente animada — ou acelerada, dir-se-ia —, em oposição ao seu gênio habitual, reservado e distante. Recapitulei minhas preocupações, ela ouvia mordendo o lábio, testa franzida — parecia outra mulher.
Em dez minutos o chaveiro soltou a fechadura. Tomás, felizmente, não estava lá.
— E a porta — perguntei ao homem.
— É só bater.
Já reunia as ferramentas na caixinha.
— Missão cumprida — eu disse.
— Espera — disse Cláudia. — Vamos ver se ele viajou. Paguei o chaveiro, que se retirou.
Cláudia pôs-se a examinar o apartamento, peça por peça, com um interesse que eu não lograva compreender. Sentei-me no sofá, aguardando que terminasse a vistoria. Esteve na área de serviço, abriu e fechou torneiras e as abriu e fechou também na cozinha, que investigou demoradamente. No quarto, sentou-se na cama de casal desfeita e farejou o travesseiro. Depois entrou no banheiro. Embora não a visse, percebi que ia usá-lo. Sem fechar a porta, baixou o assento do vaso e logo ouvi o jato de sua urina. Não deu descarga e, compondo a saia, veio sentar-se na mesinha à minha frente.
— Esse apartamento me dá cada arrepio... — e olhava os quadros de Tomás na parede da sala, alguns com nus frontais de homens e mulheres. — Tem cheiro de sexo. Não sentes?
Eu nada sentia e me perguntava se o núcleo dessa exalação não estaria nela mesma, a Cláudia que eu desconhecia.
Falava e olhava em volta, as narinas a fremir, e eu lhe relanceava as mãos de mimosas veias dorsais, os lábios bem marcados, como rins, o peito de súbitas arfadas com os mamilos aproejando na blusinha, e me deliciava, sobretudo, com as esplêndidas pernas, colunas sem nódoas de um mármore trigueiro. Aquilo era novo. Já a vira inúmeras vezes e embora sempre lhe gabasse, intimamente, o corpo desejável, tal conceito esbarrava em seu glacial "não estar" e acabava não diferindo daquele que faria de uma bela mulher que visse na rua ou numa foto de revista. Era um conceito de papel que, afinal, vinha cobrar sua carnadura.
— Ele deve ser feliz — tornou. — Faz o que quer.
— Acho que sim.
— Achas?
Ora, Tomás era livre, continuou, ao passo que nós — todos nós, os amigos dele — vivíamos restritivamente. Éramos pessoas organizadas, titulares de contas bancárias e cartões de crédito, adquiríamos bens e pagávamos nossas dívidas. Éramos pessoas de bem. E das grades dessa prisão, vigiados pelos mil olhos da moral, víamos com inveja, frustração e até com ódio o fluxo da vida em liberdade: o desejo, as aventuras, os atos irresponsáveis e prazerosos.
Eu nada disse e ela acrescentou:
— A lealdade também é uma prisão. Mas é só um nome, e a gente, por covardia, fica acorrentada a esse nome, como a uma condenação. Olha eu aqui, estou superexcitada e...
Me olhava e eram os olhos impacientes da urgência. Desviei os meus.
— Ouviste o que eu disse?
— Ouvi.
— Então... qual é o problema? Eu estou querendo. Eu quero.
Não me movi. Se antes já estava a desejá-la — muito antes, talvez, sem o saber —, agora a desejava mais ainda. Mas qual era o meu papel naquela peça lúbrica? Que nome eu tinha? Eu quero, dizia ela. Eu também queria e talvez Erasmo merecesse essa rasteira, mas, se nunca demonstrara ter por mim qualquer predileção, se eu nunca lhe dera motivo algum para que pensasse de outro modo, por que ela me escolhera? Era grátis? Um óbolo da deusa estremecida? Não me movi porque quis entender.
Ela tirou o sapato e travou o pé no meu regaço.
— Vamos logo com isso.
E enquanto se despia cheia de pressa, e a mim também queria despir com a mesma ânsia, intuí, mais do que compreendi, que minhas perguntas não tinham fundamento. Para Cláudia, não importava quem eu era. Era um papel sem nome. E nem era um papel, não era nada. Ela queria sua porção de vida — aquilo que entendia como tal —, mas quem se incorporava entre suas pernas, provendo-a da fruição redentora, não era eu, o personagem anônimo: era Tomás.
Perto do meio-dia, ao tomarmos o elevador, já voltara a ser a mulher que eu conhecia. Nos despedimos com o sensabor de sempre e ela se foi, a bela e insossa Cláudia, deixando um só vestígio de seu desafogo: o travo da menta em minha boca.