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Artigo Café Paris - Conto de Sergio Faraco
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Café Paris - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 7 set. 2024
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"- O sonho é pra sonhar, não é? Quem sabe a gente toma um café nalgum lugar... um lugar discreto."

Ela veio ao hotel no começo da tarde e me esperava na saleta ao lado da portaria.

— Eu soube que tinhas chegado. Imagina, estamos na mesma cidade, um perto do outro, depois de tantos anos.

Ainda era bonita, certamente, mas estava um pouco envelhecida e trazia nos olhos, ou talvez na boca, certo traço que tornava seu rosto um tanto amargo. Ela também me examinava, decerto pensando coisas semelhantes: que eu estava meio gasto, com muitos cabelos brancos, que a musculatura dos meus braços já não era tão firme e meus dentes não eram os mesmos.

Perguntei se me acompanhava numa bebida e sugeri um martíni, sua predileção de moça. Não, não queria nada, e quando insisti ela disse que gostaria, sim, de tomar um martíni, ou diversos, mas nada tomaria. Riu-se.

— O que eu queria mesmo era subir lá no teu quarto, depois tomar um porre — e sorria ainda quando acrescentou: — O sonho é pra sonhar, não é? Quem sabe a gente toma um café nalgum lugar... um lugar discreto.

— Está bem — eu disse —, mas os lugares discretos de Porto Alegre eu acho que não conheço mais.

— Pode ser no Café Paris.

E me olhava de modo oblíquo, travesso. Os anos lhe haviam cobrado a conta exata, mas em muitas coisas ela continuava a mesma, certos gestos, certa maneira de me olhar, certo encanto que era só dela e que fazia renascer velhas e fortes emoções. Sentia-me feliz por isso, ou dir-se-ia vitorioso, como se me fitasse num espelho e me descobrisse inteiro depois de um sonho em que me despedaçara.

No caminho para a Azenha, que fizemos de táxi, contou-me que uma vez descobriu meu nome no guia telefônico de São Paulo. Fez uma chamada, atendeu uma voz de mulher e ela desligou. Mais tarde ligou de novo, atendeu um homem, mas a voz era outra, o jeito era outro.

— Nunca estive em São Paulo.

— Mas era teu nome.

— Nunca tive telefone.

— Claro, eu devia imaginar. Nem telefone, nem casa, nem carro, nem ao menos uma roupa bonita.

— Continuo pobre — eu disse. Ela tocou na minha mão.

— Me preocupo tanto contigo... Às vezes penso que podes estar doente e sem ninguém pra te cuidar, penso nos botões das tuas camisas...

— Obrigado. E no meu coração?

Ela olhou pela janela do carro, como distraída, depois começou a falar no Café Paris, que era um lugar atraente, aconchegante, que lá a gente podia conversar, tomar um chá, e continuou falando de outras coisas, menos de uma, aquela que era o nosso maior segredo.

No Café, escolheu uma mesa de canto, protegida.

— Quem sabe um martíni — insisti.

— Não, eu preferia...

— Um martíni não vai te fazer chegar em casa com cheiro de quem se regalou.

— Vá lá, um martíni doce.

— Dois — pedi ao garçom.

Falamos um pouco de nossas vidas, não muito, e a conversa, que se anunciava fácil, talvez emocionante, ia se tornando difícil e forçada, como tropeçava e se espatifava ao chão e então era preciso buscar novos argumentos para erguê-la e mantê-la em pé. Recomeçávamos. E recomeçamos outras vezes até que, de repente, o silêncio como ocupou mais um lugar à mesa. Ela o afugentou com visível esforço:

— Laura vai fazer dez anos. Então era esse o nome?

— Laura — eu disse.

— Gostas?

— Sim, é lindo.

— Uma vez me disseste que gostavas desse nome.

— É lindo.

— Olha — e abriu a bolsa —, te trouxe duas fotos, esta é recente, e nesta ela está com oito anos, foi no dia do aniversário. Peguei as fotografias, minhas mãos tremiam.

— Não é bonita?

Ela parecia querer lembrar, com orgulho, que nós a fizéramos juntos, pedaço a pedaço, em tardes de um amor desesperado e louco, em quartos de hotéis obscuros, em horas contadas a suor e a arquejos e a suspiros de medo, e que trazia nos olhos...

— Viste os olhos?

...talvez, a beleza e o susto do fruto proibido.

— Esses olhos são os teus — murmurei.

No seu rosto se acentuou aquele traço amargo.

— Estou com um vazio no peito — eu disse —, mas é tão bom, é um sentimento tão amável... Em silêncio, ela olhava para o cálice vazio.

— Não é como a gente sentia antes?

— Não sei.

— É exatamente como antes.

— Por que ficar lembrando? As coisas nunca voltam a ser como eram antes.

— Eu gostaria que voltassem.

— Ficaste louco?

Guardei as fotografias no bolso da camisa. Ela afastara a cortina e olhava para a rua.

— Quem sabe a gente toma um porre — sugeri. Ela fez que não com a cabeça.

— Que outra coisa isso pode merecer, senão um porre?

— Eu tenho que ir.

— Mas é tão cedo...

— Não posso ficar mais.

Chamei o garçom, pedi mais dois martínis.

— Um — ela corrigiu. Levantou-se.

— Vou à toalete, devo estar com uma cara de doente. O garçom trouxe a bebida.

— Leve de volta, por favor — pedi. — Me traga uma cuba-libre, como nos velhos tempos.

O homem sorriu, fez uma pequena mesura e afastou-se. Ela retornava, mas não voltou a sentar-se.

— Pagas a despesa?

— Que pergunta.

— Por quê? Antigamente era eu quem pagava. Me deixas pagar?

— Claro, como nos velhos tempos. Ela inclinou-se e me beijou no rosto.

— Guardaste as fotografias?

— Guardei, estão aqui.

— Vais olhar pra elas?

— Com toda a certeza. Vou olhar sempre.

— E cuida da tua saúde, eu me preocupo tanto, eu penso tanto...

— Vou cuidar, prometo.

— Olha, eu queria... — começou ela, mas emudeceu, balançou a cabeça e voltou-se e foi embora. Acendi um cigarro, minhas mãos ainda tremiam.

— Sua cuba, senhor — disse o garçom.

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