A Era do Silício - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo A Era do Silício - Conto de Sergio Faraco
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A Era do Silício - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"Não me obrigue a chamar a segurança."

Pouco importa quem era o homem e tampouco suas atividades. Era alguém que, cumprindo ordens, ia viajar — isso basta — e precisava concluir na agência bancária do aeroporto uma inadiável transação que, por imprevidência, não concluíra noutra hora e noutro lugar.

E isso também basta.

Após confirmar a passagem, foi ao banco e ali se deparou com uma extensa fila diante do balcão de um único caixa. Esperou pacientemente, a princípio, mas, vendo que o atendimento tardava, começou a inquietar-se. Quando faltavam escassos minutos para a última chamada aos passageiros, pediu auxílio a um funcionário.

— Esse serviço é só no caixa — disse o funcionário, atento à tela de seu computador.

— Mas não há tempo. Meu avião...

— No caixa — tornou a ouvir —, só no caixa.

— O senhor poderia me olhar, ao menos — disse o homem, e o funcionário o olhou, dir-se-ia com espanto, como se recém tivesse percebido que ele estava ali.

Voltou-se o homem e, adiantando-se à fila, abordou o sujeito grisalho que estava à frente dos demais. Explicou-lhe o que se passava, mas o outro, que em meio à explicação já negava com a cabeça, foi seco:

— Tem que entrar na fila.

— Apelo à sua compreensão, estou com muita pressa.

— Quem hoje em dia não está com pressa?

Refez seus passos, dirigindo-se à mesa da gerente, e na altura do pômulo seu rosto estremecia num tique. Como pudera descurar daquela providência? Sim, nas últimas semanas estivera mais no ar do que em terra, a serviço da firma, e tanto se extenuara que, à noite, mal conseguia dormir, mas a firma não tinha nada a ver com isso, a firma era a firma, com suas próprias e precisas leis de dar e receber, e ele sabia que, nesse estatuto, não havia lugar para a complacência.

— Estou em apuros — disse, em pé diante da grande mesa oval. — Dentro de minutos parte meu avião. Me ajude, por favor.

E referindo a transação que lhe urgia proceder, ouviu da mulher o que já lhe soava como aflitiva melopeia: não havia remédio senão entrar na fila e esperar a vez.

— Procure entender — insistiu, e as contrações faciais se acentuavam —, perder a passagem é o de menos. Se não me ajudar, minha viagem perde o sentido e perco eu muitas coisas mais.

A gerente, que até então mal o olhara e esmerava-se na conferência das tabelas que se sucediam em seu monitor, retirou as mãos do teclado e o fitou, impaciente.

— E aqueles que estão lá? Eles chegaram primeiro e cada qual tem seus problemas, suas urgências.

— Não quero prejudicar ninguém — disse ele, elevando ligeiramente a voz. — Estou pedindo que a senhora mesma me atenda.

— Eu? Mas não vê que estou ocupada, que tenho minhas obrigações? Peça o lugar a alguém da fila.

— Eu já pedi...

— Então — e fixou-se nas tabelas — não posso fazer nada.

— Mas isso é um absurdo!

Ela retrucou em tom baixo, metálico:

— Não me obrigue a chamar a segurança.

Por um momento o homem olhou, estupefato, para a mulher e para a máquina, como se não soubesse de qual delas tinha partido a ameaça. E retornou ao balcão. Transpirava, minúsculas gotas lhe perlavam no lábio superior, e em sua camisa manchas pardas se adensavam nas axilas.

Ponteava a fila um casal de namorados. Eram jovens, na plenitude de suas louçanias, conversavam aos cochichos, sorridentes, e o homem, esperançoso, pensou que aqueles moços, com a generosidade e o desprendimento próprios da juventude, haveriam de socorrê-lo.

Tocou no ombro do rapaz:

— Por favor, meu avião...

— Não — cortou o rapaz.

— Não?

O rapaz virou-lhe as costas, a namorada riu. Era a vez deles, o casal solicitou uma informação e, após recebê-la, passou por ele com ar de troça. O homem esteve a ponto de gritar. E ao recuar, com a perplexidade e o susto de um animal ferido, deu com o olhar ansioso daquele que agora era o primeiro da fila, um menino de bermudas que, no mesmo instante, fez-lhe um sinal, oferecendo-lhe o lugar.

O homem sentiu uma onda de calor que, subindo, apertou-lhe a garganta, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa foi chamado ao caixa. Finda a operação, quis agradecer convenientemente ao seu pequeno benfeitor e então pôde constatar, pela eloquência gestual, pôde constatar, com um baque no coração, que se tratava de um surdo-mudo. "Meu Deus", murmurou o homem, e com os espasmos de quem resiste às instâncias da emoção, abraçou o menino e o beijou, certo de que tivera o privilégio e a fortuna de encontrar, numa hora de angústia, um dos raros indivíduos de uma espécie em extinção, aquela que ainda conservava, no fragor do mundo contemporâneo, a doce humanidade das criaturas.

Já se retirava quando viu a mulher, de sua mesa oval, distinguir-lhe com um meio-sorriso. Ele entreparou, surpreso. Como ela se atrevia a compartilhar de algo para o qual não concorrera? E aquele esgar era um sorriso? Os traços que deveriam sugerir a descabida cumplicidade sugeriam, antes, o lastimoso ríctus da amargura. E uma parte sua, a mesma que se comovera tão intensamente e ainda reinava, em seu coração, sobre a corte dos ressentimentos, compadeceu-se daquela mulher. Ela tinha razão ao dizer "não posso fazer nada", como teria também se dissesse, como Ulisses a Polifemo, "meu nome é ninguém". Ela era apenas um dígito no universo binário da entidade que a controlava, desde os esconsos de um longínquo mainframe. Ela e todos que ali trabalhavam. E para consolidar a excelência de seus serviços, para obstar mensagens de erro ou de obsolescência que os expusessem às razias da tecla punitiva, já renegavam seus sentidos, já não reconheciam sentimentos, já eram soldados da era do silício e até prefeririam que lhes substituíssem as células nervosas por plaquetas de transistores, diodos e circuitos integrados. Já não eram integralmente humanos e, ao invés de algozes, eles também eram as vítimas, marchando como marcham os bois-de-canga, a pontaços de picana. E assim o sujeito grisalho, assim o casal de namorados, que igualmente tinham perdido a capacidade de ouvir, como ouvira aquele surdo-mudo.

E eu, perguntou-se o homem, serei como eles?

Mas pouco a pouco ia dessorando sua emoção, como se o sangue que lhe estuara começasse a coagular. Estava atrasado, pressionado ele também, em nome da eficiência, e já não tinha tempo nem valor para buscar respostas.

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