Uma Voz do Passado - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Uma Voz do Passado - Conto de Sergio Faraco
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Uma Voz do Passado - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"Agora, ouvindo-lhe a voz, lembrava-se dela
como de um pecado que fosse, ao mesmo tempo,
tão doce quanto sem perdão."

Toca o telefone.

— Alô? — atende o homem, despertando. Silêncio.

— Quem é? Silêncio ainda.

— Que é isso? Brincadeira?

— Alô — voz feminina.

— Sim, alô. E daí? Outro silêncio.

— Vais continuar brincando?

— Não estou brincando...

— Não? Ótimo. Quem fala?

— Uma amiga.

— E ela não tem nome?

— Não.

— Então é assim? Me telefonas tarde da noite, me acordas e não vais dizer teu nome? Silêncio.

— Me conheces desde quando?

— Ah, faz tempo...

— Quanto tempo?

— Desde... ai, desde quando eu tinha dezesseis anos.

— Verdade? — e o homem, que estava deitado, senta-se e liga a lâmpada. — Que idade tens agora?

— Ah, isso não importa.

— Claro que importa. Estou tentando te identificar, não é?

— Pra quê?

— Como pra quê? Isso é um trote?

— Não, claro que não.

— Então vamos começar de novo. Onde foi que nos conhecemos?

— Se te disser, descobres.

— Mas... por que me ligaste, se não queres que eu descubra? Pra me torturar?

— Não, eu não seria capaz. Ainda mais contigo...

— Por que ainda mais comigo?

— Não dá pra desconfiar?

— Não! Não dá! Me conheces de Porto Alegre?

— Não.

— Santa Maria?

— Não.

— Uruguaiana? Silêncio.

— Uruguaiana? Agora é pra valer: responde ou desligo.

— Uruguaiana.

— Custou, hein? E estás telefonando de Uruguaiana?

— Não. De Porto Alegre.

— Mas foi em Uruguaiana que me conheceste.

— Foi. Não moraste lá? No Hotel Glória?

— Morei.

— Pois então... Foi lá.

— E aí nós continuamos nos vendo etc. etc.

— A última vez que te vi... foi na estação, em Uruguaiana.

— Na estação?

— Estação do trem, no dia em que foste embora. Me disseram no hotel que embarcavas à tardinha, no Pampeiro, e então fui lá te olhar.

— Pampeiro, isso mesmo, aquele trem... Mas não falaste comigo?

— É que... já não havia nada entre nós.

— Então quer dizer que, antes, houve qualquer coisa?

Qualquer coisa?

— Desculpa. Eu quis dizer...

— Houve.

— Mirta?

— Ai, eu sinto tanto por te lembrares de outra...

— Vânia?

— Que crueldade.

O homem, com surpresa, sentiu o coração acelerar.

— Mariana? Silêncio.

— Mariana?

E como num filme antigo de que guardasse, sobretudo, uma saudade comovida, pôde rever a mocinha de cabelos e olhos negros, traços ciganos, que todas as tardes aparecia no hotel com uma cestinha, oferecendo pasteizinhos com recheio de creme. Era bonita, tinha pernas e seios desejáveis e ele costumava divertir-se à custa dela, fazendo-lhe juras de amor na presença de outros hóspedes. Habituara-se àqueles gracejos e sentia tanto prazer em fazê-los que se aborrecia quando ela não vinha.

Um dia, tendo notado que ela o olhava mais do que o necessário e que tremiam suas mãos ao lhe entregar as moedinhas do troco, pôs um bilhete na cestinha, dizendo que a esperava no quarto. Ela não subiu. Por uma semana desapareceu, mas, ao voltar, era tão evidente sua perturbação, tão amoroso seu olhar, que ele escreveu outro bilhete.

E ela subiu.

Continuou comprando pasteizinhos e a gracejar, como se nada tivesse acontecido, e ela continuou olhando-o — uma meiguice e uma candura que lhe davam remorsos —, continuou tremendo, certamente amando-o. E num dia qualquer, no Pampeiro, ele deixou a cidade e nunca mais a viu.

Agora, ouvindo-lhe a voz, lembrava-se dela como de um pecado que fosse, ao mesmo tempo, tão doce quanto sem perdão.

— Mariana — disse, e pensou, sem querer pensar, que se passara já uma eternidade e logo faria trinta e sete anos. — Tanto tempo...

— Ai, demais. Eu sempre quis te procurar.

— Mas não me procuraste.

— A vida.

A vida?

— Não estavas casado?

— Estava. Me separei faz pouco.

— Eu sei. Sei até onde moravas. Passei muitas vezes na frente da tua casa, queria te ver e nunca consegui.

— E tu? Casaste?

— Não vale a pena falar nisso. Eu só queria... Silêncio.

— Mariana?

— Sim?

— Por que me telefonaste?

— Porque sim.

— Só isso, porque sim?

— Se te dissesse outras coisas, ririas de mim.

— Por que eu faria isso?

— Lá em Uruguaiana estavas sempre rindo...

— Lá em Uruguaiana eu era um cretino!

— Não, não eras, mas estavas sempre rindo.

— Não sou mais assim. Não vou rir. Diz.

— Pra quê? Não, não vou dizer, não quero.

— Queres, sim, foi por isso que telefonaste. É alguma coisa com sentimento?

— E podia não ser?

— Pronto. Agora ficou fácil, é só dizer.

— Tu já disseste.

— Não, eu só defini o assunto. Vai, diz.

— É isso mesmo... sentimento...

— Me amavas?

— É... eu te amava... ai, meu Deus, como eu te amava... eu... Um soluço.

— Mariana... Silêncio.

— Mariana, escuta...

— E tu?

— Eu?

— Chegaste a me amar?

— Eu... bem, eu... eu sempre tive um carinho muito grande por ti... aquilo que eu percebia que sentias por mim...

E começava a pensar, como se uma parte sua, quase morta, irrompesse de um quadrante sombrio, começava a pensar, não sem certo horror, que jamais a esquecera e que também jamais soubera compreender aquilo que um dia sentira por ela. E se perguntava, com emoção, se de fato não a teria amado.

Amara a inocência dela, isso era certo.

E amara aquele corpo intocado, cuja branda geografia agora renascia em sua lembrança com o calor de uma febre. Aqueles montes sedosos que arfavam e suas grimpas eriçadas, o estreito da cintura a fletir em amenos quadris peninsulares e então aquela ínsula secreta, que tinha sede de mastros e descobrimentos, que esperara dezesseis anos para encontrar ali, naquele quarto do Hotel Glória, naquela cama — naquela caravela de lençóis amarfanhados —, seu primeiro insulanus, seu grande almirante, seu genovês, seu Cristóvão Colombo.

E o que mais teria amado?

— ...olha, pode ser, sim, que tenha te amado... mas não sabia. Eu era muito avoado, muito volúvel.

— Isso eu sei. Aquela Vânia...

— Mas se a gente se encontrasse outra vez...

— Isso não.

— Por que não?

— Porque não dá.

— Mas não poderíamos conversar?

— Por telefone, quem sabe.

— Por telefone? Ora, não brinca!

— Não estou brincando. Ai, preciso desligar.

— Estás brincando, sim. Não percebes que te ouvir, depois de tantos anos... saber que estás tão perto, que és uma menina ainda com teus vinte e quatro, vinte e cinco aninhos... Olha, eu estou sentindo uma coisa estranha. Tenho quase certeza de que te amei sem saber.

— E logo me esqueceste.

— Eu nunca te esqueci e se a gente se encontrasse...

— Agora vou ter que desligar. Eu só queria dizer...

— Já disseste, não basta.

— Se puder, telefono.

— Estamos no telefone, vamos falar agora, vamos combinar...

— Mas eu já disse, não dá, simplesmente não dá...

— Como não dá? Por que não dá?

— Ai, meu Deus, preciso desligar, estou falando da casa de outra pessoa.

— Que pessoa?

— Outra pessoa. Eu só queria dizer...

— Não, isso não se faz. Espera.

— ...que nesses anos todos...

— Mariana, escuta, estou com vontade de chorar, tá? Olha só, já estou chorando... Isso é vingança?

— Não, não, como podes pensar... ai, não posso falar mais...

— Espera! Pensa bem, Mariana: por que tu achas que eu comprava os pasteizinhos? Eu nem gosto de pastel, eu só comprava pra ver se voltavas, eu...

— Se noutra noite eu puder... — ela disse. — ...se eu puder... E desligou.

— Mariana — o homem gritou, erguendo-se.

E manteve o fone ao ouvido, esse homem, esperando um milagre, e por fim desligou também e ficou olhando, perplexo, as paredes nuas de seu quarto — aqueles anos perdidos —, sentindo-se pungir por todas as perguntas que não teriam resposta se não tornasse a ouvir aquela voz.

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