Toca o telefone.
— Alô? — atende o homem, despertando. Silêncio.
— Quem é? Silêncio ainda.
— Que é isso? Brincadeira?
— Alô — voz feminina.
— Sim, alô. E daí? Outro silêncio.
— Vais continuar brincando?
— Não estou brincando...
— Não? Ótimo. Quem fala?
— Uma amiga.
— E ela não tem nome?
— Não.
— Então é assim? Me telefonas tarde da noite, me acordas e não vais dizer teu nome? Silêncio.
— Me conheces desde quando?
— Ah, faz tempo...
— Quanto tempo?
— Desde... ai, desde quando eu tinha dezesseis anos.
— Verdade? — e o homem, que estava deitado, senta-se e liga a lâmpada. — Que idade tens agora?
— Ah, isso não importa.
— Claro que importa. Estou tentando te identificar, não é?
— Pra quê?
— Como pra quê? Isso é um trote?
— Não, claro que não.
— Então vamos começar de novo. Onde foi que nos conhecemos?
— Se te disser, descobres.
— Mas... por que me ligaste, se não queres que eu descubra? Pra me torturar?
— Não, eu não seria capaz. Ainda mais contigo...
— Por que ainda mais comigo?
— Não dá pra desconfiar?
— Não! Não dá! Me conheces de Porto Alegre?
— Não.
— Santa Maria?
— Não.
— Uruguaiana? Silêncio.
— Uruguaiana? Agora é pra valer: responde ou desligo.
— Uruguaiana.
— Custou, hein? E estás telefonando de Uruguaiana?
— Não. De Porto Alegre.
— Mas foi em Uruguaiana que me conheceste.
— Foi. Não moraste lá? No Hotel Glória?
— Morei.
— Pois então... Foi lá.
— E aí nós continuamos nos vendo etc. etc.
— A última vez que te vi... foi na estação, em Uruguaiana.
— Na estação?
— Estação do trem, no dia em que foste embora. Me disseram no hotel que embarcavas à tardinha, no Pampeiro, e então fui lá te olhar.
— Pampeiro, isso mesmo, aquele trem... Mas não falaste comigo?
— É que... já não havia nada entre nós.
— Então quer dizer que, antes, houve qualquer coisa?
— Qualquer coisa?
— Desculpa. Eu quis dizer...
— Houve.
— Mirta?
— Ai, eu sinto tanto por te lembrares de outra...
— Vânia?
— Que crueldade.
O homem, com surpresa, sentiu o coração acelerar.
— Mariana? Silêncio.
— Mariana?
E como num filme antigo de que guardasse, sobretudo, uma saudade comovida, pôde rever a mocinha de cabelos e olhos negros, traços ciganos, que todas as tardes aparecia no hotel com uma cestinha, oferecendo pasteizinhos com recheio de creme. Era bonita, tinha pernas e seios desejáveis e ele costumava divertir-se à custa dela, fazendo-lhe juras de amor na presença de outros hóspedes. Habituara-se àqueles gracejos e sentia tanto prazer em fazê-los que se aborrecia quando ela não vinha.
Um dia, tendo notado que ela o olhava mais do que o necessário e que tremiam suas mãos ao lhe entregar as moedinhas do troco, pôs um bilhete na cestinha, dizendo que a esperava no quarto. Ela não subiu. Por uma semana desapareceu, mas, ao voltar, era tão evidente sua perturbação, tão amoroso seu olhar, que ele escreveu outro bilhete.
E ela subiu.
Continuou comprando pasteizinhos e a gracejar, como se nada tivesse acontecido, e ela continuou olhando-o — uma meiguice e uma candura que lhe davam remorsos —, continuou tremendo, certamente amando-o. E num dia qualquer, no Pampeiro, ele deixou a cidade e nunca mais a viu.
Agora, ouvindo-lhe a voz, lembrava-se dela como de um pecado que fosse, ao mesmo tempo, tão doce quanto sem perdão.
— Mariana — disse, e pensou, sem querer pensar, que se passara já uma eternidade e logo faria trinta e sete anos. — Tanto tempo...
— Ai, demais. Eu sempre quis te procurar.
— Mas não me procuraste.
— A vida.
— A vida?
— Não estavas casado?
— Estava. Me separei faz pouco.
— Eu sei. Sei até onde moravas. Passei muitas vezes na frente da tua casa, queria te ver e nunca consegui.
— E tu? Casaste?
— Não vale a pena falar nisso. Eu só queria... Silêncio.
— Mariana?
— Sim?
— Por que me telefonaste?
— Porque sim.
— Só isso, porque sim?
— Se te dissesse outras coisas, ririas de mim.
— Por que eu faria isso?
— Lá em Uruguaiana estavas sempre rindo...
— Lá em Uruguaiana eu era um cretino!
— Não, não eras, mas estavas sempre rindo.
— Não sou mais assim. Não vou rir. Diz.
— Pra quê? Não, não vou dizer, não quero.
— Queres, sim, foi por isso que telefonaste. É alguma coisa com sentimento?
— E podia não ser?
— Pronto. Agora ficou fácil, é só dizer.
— Tu já disseste.
— Não, eu só defini o assunto. Vai, diz.
— É isso mesmo... sentimento...
— Me amavas?
— É... eu te amava... ai, meu Deus, como eu te amava... eu... Um soluço.
— Mariana... Silêncio.
— Mariana, escuta...
— E tu?
— Eu?
— Chegaste a me amar?
— Eu... bem, eu... eu sempre tive um carinho muito grande por ti... aquilo que eu percebia que sentias por mim...
E começava a pensar, como se uma parte sua, quase morta, irrompesse de um quadrante sombrio, começava a pensar, não sem certo horror, que jamais a esquecera e que também jamais soubera compreender aquilo que um dia sentira por ela. E se perguntava, com emoção, se de fato não a teria amado.
Amara a inocência dela, isso era certo.
E amara aquele corpo intocado, cuja branda geografia agora renascia em sua lembrança com o calor de uma febre. Aqueles montes sedosos que arfavam e suas grimpas eriçadas, o estreito da cintura a fletir em amenos quadris peninsulares e então aquela ínsula secreta, que tinha sede de mastros e descobrimentos, que esperara dezesseis anos para encontrar ali, naquele quarto do Hotel Glória, naquela cama — naquela caravela de lençóis amarfanhados —, seu primeiro insulanus, seu grande almirante, seu genovês, seu Cristóvão Colombo.
E o que mais teria amado?
— ...olha, pode ser, sim, que tenha te amado... mas não sabia. Eu era muito avoado, muito volúvel.
— Isso eu sei. Aquela Vânia...
— Mas se a gente se encontrasse outra vez...
— Isso não.
— Por que não?
— Porque não dá.
— Mas não poderíamos conversar?
— Por telefone, quem sabe.
— Por telefone? Ora, não brinca!
— Não estou brincando. Ai, preciso desligar.
— Estás brincando, sim. Não percebes que te ouvir, depois de tantos anos... saber que estás tão perto, que és uma menina ainda com teus vinte e quatro, vinte e cinco aninhos... Olha, eu estou sentindo uma coisa estranha. Tenho quase certeza de que te amei sem saber.
— E logo me esqueceste.
— Eu nunca te esqueci e se a gente se encontrasse...
— Agora vou ter que desligar. Eu só queria dizer...
— Já disseste, não basta.
— Se puder, telefono.
— Estamos no telefone, vamos falar agora, vamos combinar...
— Mas eu já disse, não dá, simplesmente não dá...
— Como não dá? Por que não dá?
— Ai, meu Deus, preciso desligar, estou falando da casa de outra pessoa.
— Que pessoa?
— Outra pessoa. Eu só queria dizer...
— Não, isso não se faz. Espera.
— ...que nesses anos todos...
— Mariana, escuta, estou com vontade de chorar, tá? Olha só, já estou chorando... Isso é vingança?
— Não, não, como podes pensar... ai, não posso falar mais...
— Espera! Pensa bem, Mariana: por que tu achas que eu comprava os pasteizinhos? Eu nem gosto de pastel, eu só comprava pra ver se voltavas, eu...
— Se noutra noite eu puder... — ela disse. — ...se eu puder... E desligou.
— Mariana — o homem gritou, erguendo-se.
E manteve o fone ao ouvido, esse homem, esperando um milagre, e por fim desligou também e ficou olhando, perplexo, as paredes nuas de seu quarto — aqueles anos perdidos —, sentindo-se pungir por todas as perguntas que não teriam resposta se não tornasse a ouvir aquela voz.