Danúbio Azul - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Danúbio Azul - Conto de Sergio Faraco
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Danúbio Azul - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"Ah, o tempo em que tocava piano, quando era mocinha e vestia seu melhor vestido e trançava o cabelo e se perfumava para esperar o professor, dono de um repertório inesgotável de valsas e galanteios."

Depois do almoço ele lê os classificados do jornal. É um velho sonho, um piano para Luíza, que em sua juventude pinicava valsinhas no Fritz Dobbert do avô. Há oito anos lê os classificados e os pianos cada vez mais caros, uma pouca vergonha. Pede um lápis, anota um telefone.

— Segunda vou ligar.

— É Fritz Dobbert?

— Não diz.

— Nem quanto custa?

— São espertos...

— Devia ser obrigatório pôr o preço — diz ela, recolhendo os pratos.

— Nesse país nada é obrigatório.

Luíza para na porta da cozinha, bandeja na mão.

— Por favor, não fala de política na frente das crianças.

O marido de Luíza toma um cafezinho e lembra às meninas que está na hora de nanar. Elas sabem que, no sábado, a sesta é uma lei da casa, mas sempre se arrenegam. O pai se enfuna:

— Cama!

Elas passam, uma a uma, e vão-se acomodando em suas caminhas de beliche. Luíza costuma reclamar quando seu marido fala duro com as filhas, mas agora parece não ouvir. Chega à janela, sonhadora, ajeita a mecha de cabelo que caiu na testa. Examina as mãos e morde um fiapinho da cutícula.

Ele é o primeiro a dormir. Dorme profundamente, ronca, no quarto ao lado as meninas ressonam. Luíza não. Ela olha para o teto, às vezes espia o marido e acha que seu descanso está mais demorado do que noutros sábados. Encosta-se nele. O homem resmunga, pisca.

— Hein?

— Não falei.

Nota que ele está meio jururu e o abraça, deixando escorregar, por gosto, a alça do sutiã. Pouco a pouco o rosto dele se desanuvia. Passa a mão nos quadris da mulher, de início como distraído, ausente, logo mais animado, tentando despi-la.

— Deixa que eu tiro — diz Luíza.

Não chega a fazê-lo. No outro quarto, um objeto cai e rola pelo chão.

— Será que já acordaram?

Levanta-se, vai olhar. As meninas dormem, mas o sono da caçula é agitado: derrubou o vasinho do bidê. Luíza toca na testa dela, não, febre não é. Recolhe o vaso. Da janela, vê nos fundos do edifício, no playground, uma garota a beijar o namorado. Encosta a cabeça na vidraça, suspira.

Ao voltar, encontra o marido outra vez com cara de segunda-feira. Ela também sente qualquer coisa dolorosa, uma tristeza vaga, um misto de saudade e desânimo. Ah, o tempo em que tocava piano, quando era mocinha e vestia seu melhor vestido e trançava o cabelo e se perfumava para esperar o professor, um italiano de costeletas e penteado a la tyrone, dono de um repertório inesgotável de valsas e galanteios. Ai, o Danúbio Azul! E aqueles olhos suplicantes fitos nos seus, e aquelas mãos fortes e suaves a passear no teclado, como titilando as notas mais secretas de seu corpo...

Ambos estão calados, pensativos, mas não por muito tempo. Um choro e agora é o pai que vai olhar.

— Não ralha com elas.

— Não vou ralhar.

A pequeninha quer ir ao banheiro. Pega-a no colo e a leva, mas não sabe como ajudá-la. Retorna ao quarto.

— Cocô — adivinha Luíza.

— Ela não sabe se limpar?

— Saber, sabe, mas não faz direito. Tem que lavar.

Trocam. Ele se deita, ela se levanta. Minutos depois está de volta.

— Pronto.

Traz as mãos úmidas, frias, acabou de lavá-las. Aquece-as entre as pernas, ao mesmo tempo em que se aconchega ao corpo do marido. Vê que ele está olhando o relógio.

— Que foi?

— O Rudi.

— O Rudi?

— Ele ficou de trazer um atestado pra eu entregar lá no serviço.

— Que horas ele vem?

— Não sei, não disse.

Logo hoje, ela pensa. E já vai tirando a roupa, na urgência de salvar o sábado. Antes que venha outro cocô. Antes que venha o Rudi. Antes que venha a nostalgia das valsas de Viena.

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