Formosa Ex-Pintinha - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Formosa Ex-Pintinha - Conto de Sergio Faraco
C O N T OLiteratura

Formosa Ex-Pintinha - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

"Sabe tudo, é? Pois não sabe, não pode
saber. E pensa: só eu sei. O começo do fim."

Vão de automóvel. Queria levá-la e então inventou que hoje o trânsito vai ser uma loucura e é melhor que te leve, que é que custa. Precisava estar com ela um pouco, tendo-a só para si e sendo só dela.

Vão costeando o rio.

Em Porto Alegre, para quem vem da zona sul e vai ao centro, há um caminho mais curto, via Teresópolis, mas pela orla do Guaíba a viagem é serena, dá para ir cismando, trocando umas palavrinhas e é isso que ele quer.

— Então, primeiro dia...

— Pois é — faz ela.

E ele não continua. Tinha planejado tudo, palavra por palavra, mas agora se envergonha do discurso e viaja em silêncio, circunspecto, absorto.

Quando ela era criança, pintinha arrepiada e feia, sabia como falar, olha, cuidado isso, cuidado aquilo, e às vezes nem era necessário falar, um muxoxo resolvia, um resmungo, um olhar de viés. Mas hoje... e então a vê de relance, como é linda e que peitos, parece mentira que um dia mudei suas fraldas.

E passam pelo Jockey, sobem e descem a Lomba do Asseio e já se aproximam do Parque da Marinha, metade do caminho e ele tenta continuar:

— Um dia importante.

Ela olha para o lado e ali vai um sedã com dois jovens que olham para ela.

— Ouviste o que eu disse?

— Hein?

O outro carro já se afasta e ele ergue a voz:

— Eu disse que hoje é um dia importante.

— Eu sei que é importante, pai.

— É o começo!

— Claro, paizinho, eu sei que é o começo.

Sabe tudo, é? Pois não sabe, não pode saber. E pensa: só eu sei. O começo do fim. E não consegue expressar-se porque, afinal, isso não é coisa que se expresse. Sente-se, só isso, e já basta para ser insuportável.

O começo do fim.

É quando os filhos, pouco a pouco, vão-se afastando dos pais. É o sinal mais evidente de que cresceram e se desconfortam nas proporções do ninho. Os rapazes ainda marcam passo, querendo provar ao mundo que venceram a guerra das espinhas, mas as moças logo põem-se a namorar a sério e a pensar em casamento. Ao menos antes era assim, no tempo das donzelas. E vamos que ainda seja, imagine, pode chegar um mangolão de bigode e até querer que ela pare de estudar. Que vá costurar e fazer o rango dele. Não, isso nunca, eu mato esse desgraçado. Não pode parar de estudar. E também não quero um de bigode.

E cisma e cisma, sério como um ganso, e se assusta ao ver que estão chegando.

— Olha, isso de primeiro dia... — ia fazer um remendo e se arrepende.

Ela retoca os lábios, olhando-se num espelhinho que é a tampa de um pequeno estojo.

— Primeiro dia? De novo?

Engole em seco. E enquanto manobra para estacionar, pergunta, quase pede:

— Queres que eu venha te buscar?

— Era só o que faltava.

— Posso dar um jeito.

— Não, pai. E também não precisa ficar assim, com essa cara de enterro. Qual é o problema? O primeiro dia?

— Não, que nada — diz ele. — Te esperamos — e acrescenta: — Eu, a mãe, a vó. Ela vai descer.

— Vão me esperar?

— Em nossa casa.

— Que foi que eu fiz?

— Como que foi que eu fiz?

— Francamente, pai...

Ele nada diz.

— É preocupação comigo?

Agarra firme o volante, olhando em frente.

— É isso?

— Preocupação? Ora... Ela o beija.

— E aí, paizão, contente?

— Muito.

— Vai dar tudo certo.

— Certíssimo.

— Um dia vou desenhar uma casa pra ti.

— Eu sei que vai, tenho certeza.

Abana, sorridente, abana outra vez e lá se vai, campante, a formosa ex-pintinha. Ele reprime um soluço e fica ali parado, olhos fechados, para um último hausto do cheirinho que ela deixou no ar e um dia levará para o aconchego de outro ninho.

foto do autor

Autores Selecionados

Escritores, ensaístas e jornalistas em destaque



Revisão de Texto Já!


SÉRIE NUM FUTURO PRÓXIMO

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST