O Silêncio - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo O Silêncio - Conto de Sergio Faraco
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O Silêncio - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"Leva o revólver. E ilumina a sala, sempre
é bom mostrar que tem gente em casa."

A mulher virou-se na cama e tocou no ombro do marido. Aquilo não bastou para despertá-lo e ela insistiu, apertando-lhe o braço.

— Que é — fez ele, sem mover-se.
— Ouviste?
— Não.
— Um barulho.
— Barulho?
— Parece na sala.
— É a chuva — disse ele, ajeitando a cabeça no travesseiro.
— Não, a chuva não é.

Ele suspirou, completamente acordado. Sentou-se à beira da cama e, com os pés, procurou os chinelos. Não acendeu a luz. Ficou imóvel, à escuta, até ouvir pequenos ruídos que, de fato, pareciam vir da sala.

Levantou-se.

— Leva o revólver — recomendou a mulher. — E ilumina a sala, sempre é bom mostrar que tem gente em casa.

Ele pegou a arma na prateleira do roupeiro, debaixo das camisas. Atravessou um pequeno corredor e parou na entrada da sala. A escuridão só não era completa porque as cortinas da janela coavam reflexos leitosos da claridade da rua. Ele deu um passo, apoiando-se na mesa, e ouviu nitidamente uns quantos estalidos na porta da frente, que dava para o pequeno jardim. Como se alguém estivesse encostado na madeira, forçando-a.

"Santo Deus", disse consigo o homem.

Caía uma chuva fina e nalgum lugar ao redor da casa repenicava um pingo d'água com irritante regularidade.

Era o momento de acender a luz, mas não se animou. E se fosse um assaltante? Para alcançar o interruptor precisava aproximar-se da porta, correndo o risco de receber um tiro quando a fímbria luminosa se revelasse na soleira. A não ser que atirasse primeiro — uma loucura, e ele não era propenso a tais violências. De resto, podia ser um gato, um cão ou até um menino de rua, como tantos que via na vizinhança, à noite, dormindo sob as marquises das lojas.

Ainda hesitava quando ouviu — pois não chegou a ver — o trinco movimentar-se e a porta estalar, empurrada contra o marco. Não era um engano, um mero susto, sua casa, para não fugir à regra dos novos tempos, estava sendo assaltada. Chegara a sua vez.

Ele já ouvira muitas histórias de assaltos, como é corrente nas grandes cidades, e sempre se perguntava como reagiria se tivesse de passar por essa indesejável experiência. Agora sabia a resposta — ao menos em parte, já que a porta não cedia. Tinha medo, muito medo, o revólver tremia em sua mão, e tinha frio e bagas de suor a escorrer das axilas. Ao mesmo tempo, ou talvez pouco depois, viu-se dominado por um sentimento de revolta, que abominava as fragilidades da ordem pública e o fazia odiar aquele desconhecido que se atrevia a profanar o último reduto da privacidade de um homem. Foi esse ódio que o levou a engatilhar a arma.

Pé atrás de pé, foi-se acercando. Quase não respirava, pois sua respiração soava mais alto do que a chuva e até do que aquele pingo que não parava de pingar. Estava tão perto da porta que teve a impressão de ouvir outra respiração. Os ruídos haviam cessado e ele quase gritou ao pensar que, naquele duelo de pulmões, o outro tinha percebido sua presença e podia estar com a arma apontada para a porta.

Firmou o dedo no gatilho. Ou atirava ou saía dali.

O homem que ele era, ou se esforçava para ser, baixou o revólver e moveu-se para o lado. À altura de seu peito fosforescia a chave de luz e ele resolveu seguir o conselho da mulher.

A súbita visão da sala o ofuscou e ele permaneceu rente à parede, hirto. Nada ouvia, exceto a chuva, que agora dava mais forte, tamborilando nas calhas, cascateando pelos condutores. Passaram-se alguns minutos, e como nada acontecesse, desengatilhou a arma: quem quer que tivesse estado lá fora, decerto não estava mais. Ouviu a voz da mulher, chamando-o. E aquele nome que era o seu, ouvido entre as paredes de uma casa que era a sua, transmitiu-lhe uma confortável sensação de segurança.

— Já vou — disse, alto.

Ela também ligara a luz e estava sentada na cama, com o rosário entre os dedos.

— Te chamei três vezes.

— Não ouvi.

— O que era, afinal?

— Não sei.

— Mas parou, não parou?

— Parou — e não quis contar que tinham mexido no trinco. — Acho que foi o vento.

— Vento não, não tinha vento.

Pegou um cobertor na parte superior do roupeiro.

— Fico um pouco no sofá, por via das dúvidas. Mas não te preocupa, não é nada.

Guardou o revólver e foi deitar-se na sala. Não apagou a luz. Esfriara bastante durante a madrugada. Cobriu-se e ficou olhando para a porta da rua. Era uma porta bonita, examinava-a parte por parte, suas almofadas, os pinázios que as uniam, suas travessas, seus alizares, e considerava que, além de bonita, era forte o bastante para protegê-lo desses perigos ou simples incômodos que costumam rondar os prédios residenciais.

A chuva amainara, convertendo-se, pouco a pouco, numa incerta garoa. Calou-se o bulício das calhas, e se o pingo teimoso ainda resistia, era à distância, como se fosse noutra casa. E veio cobrir aquela parte da cidade, como um poncho negro, a matéria espessa de que se fazem os silêncios.

Na manhã seguinte, a mulher o acordou.

— Passaste frio, não? Estavas encolhido.

— Mas dormi bem. Só me dói um pouco a nuca.

— Vem tomar café — disse ela, entrando na cozinha.

Ao levantar-se, viu que doíam outras partes do corpo, mas, maior do que esses males passageiros, era o prazer que sentia por ter dormido bem e estar com apetite. O café estava servido. Além do pão e da margarina, havia bolo de milho, presunto e aquela geleia de damasco de que tanto gostava.

— Que noite, hein?

— Adivinha o que era o barulho — disse a mulher.

— Nem imagino.

— Tenta.

— Um gato.

— Não.

— Um cachorro.

— Também não. Fiquei com tanta pena quando vi hoje de manhã... Ele olhou para a mulher e logo desviou o olhar.

— Se não te importas — disse, baixo —, prefiro não saber.

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