Um Aceno na Garoa - Conto de Sergio Faraco | Fantástica Cultural

Artigo Um Aceno na Garoa - Conto de Sergio Faraco
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Um Aceno na Garoa - Conto de Sergio Faraco

Autores Selecionados ⋅ 9 set. 2024
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"Cruzou a bolsa a tiracolo e veio sentar-se nas minhas pernas. Queria me fazer agrados, me abraçava e me beijava, a boquinha fria e a ponta do nariz mais ainda."

Não creio que a tivesse visto antes. Era uma rua sossegada depois das dez da noite e se chegasse à janela facilmente a notaria, encolhida num portal ou andando para espantar o frio. Mas era possível, sim, que tivesse estado ali naquelas semanas todas. Eu pouco olhava à janela e depois das dez quase nunca, com aquele tempo feio.

Segunda-feira e eu acabava de chegar da rua, mais um dia procurando emprego em vão. Pendurei a roupa úmida no porta-toalha do banheiro e vesti o abrigo cinza que era também o meu pijama. Preparava um café para me aquecer e então a vi lá na calçada, rente à parede para proteger-se da garoa. Vinha um homem de capote e ela se adiantou. O homem passou de cabeça baixa, deteve-se na esquina como a orientar-se, logo tornou a andar e perdeu-se na sombra. Pouco depois outro homem desceu a rua. Ela o interceptou e na chama do fósforo vi seus cabelos longos e escuros, os olhos sombreados, a boca de carmim. Mas o segundo homem acendeu-lhe o cigarro e também se foi.

O café tomei sem açúcar, à noite não adoçava para economizar, do pãozinho comi só a metade. Deitei-me, até me felicitei por poder fazê-lo sob um cobertor, numa noite como aquela, e de repente um grito ali na rua, como debaixo da janela. Um grito esganiçado e fui espiar, cheio de medo e de presságios. Havia um carro parado, e um homem, na calçada, torcia o braço da mulher.

Abri a janela e o chamei:

— Ei, amigo.

Ele entrou no automóvel, me insultou e foi embora. A mulher pôs-se a juntar alguns objetos.

— Tudo bem?

— Tudo bem — e riu. — O cachorro ia me tomando uns pilas.

A voz não combinava com a figura que eu pudera entrever no lume do fósforo. Renovei um pensamento anterior, de quando estivera a observá-la: agradava-me uma companhia naquela noite, agradava-me ter uma mulher e acreditava que não lhe faria mal algum recolher-se a um lugar mais aquecido, se estava sem clientes e, na rua deserta, sujeita a violências.

— Vens tomar café comigo? Acabava de fechar a bolsa.

— Café?

— Cai bem com um tempo desses.

Olhou para os lados, não vinha ninguém.

— Como é que eu entro?

Lancei a chave do edifício e fui esperá-la à minha porta. Era uma menina, com uma incrível pintura para dissimular os traços da idade.

— Tá bom aqui dentro, meus dedos estão duros.

Acendi o fogareiro, ela sentou-se na poltrona ao lado da mesa.

— Forte ou fraco?

— Bem forte. Quer que eu faça?

— Tá quase.

Conservava a bolsa no regaço.

— Tu mora sozinho, não é?

— Dá pra notar?

— Essa sujeira toda... não é chato? Eu não gosto de ficar sozinha, começo a suar.

— Açúcar?

Fez que não e assim era melhor, só me restava um pacotinho para meia dúzia de manhãs. Que ano penoso. Três meses sem trabalho e até os amigos me evitavam, para não ter de contribuir com dinheiro e fianças. Mas isso era o de menos. O pior era pensar, como pensava então, que aqueles poucos homens eram todos os homens e que entre eles — tão distantes uns dos outros se achavam, cada qual com sua angústia de viver — já se rompiam os velhos e malcuidados fios da ternura humana.

Bebemos em silêncio. Dei-lhe um cigarro, ela fumava, me olhava e ria, e a última fumaça me soprou no rosto.

— Acho que já vou.

Mas não se moveu. Apagou o cigarro e, com a bagana, ficou remexendo na cinza.

— Preciso trabalhar.

— É cedo.

Concordou rapidamente. Levantou-se, passou a mão nos vidros embaciados.

— Hoje é um dia parado, posso ficar até qualquer hora.

Eu nada disse, ela se aproximou com ares que, decerto, julgava sedutores. Ia falar, começou a tossir e logo um acesso a interrompeu de vez.

— Tá feio isso. Não tomaste um xarope?

Já tossia novamente. Em casa nada tinha para dar-lhe, mas na semana anterior eu mesmo estivera com tosse e me arranjara.

— Vou te curar.

Fui ao corredor do edifício, retornando em seguida.

— Que é isso?

— Samambaia. A vizinha tem uma ali na porta.

— Não é veneno?

— Veneno é essa tosse. Liguei de novo o fogareiro.

— Quem te ensinou que faz bem?

— Uma velha.

— Ah — fez ela.

Deixei o fogareiro aceso, por causa do frio que entrara pela porta.

— Toma, bebe que é bom.

Bebeu o chá com golinhos curtos, ruidosos, reclamando do "gosto horrível". Cruzou a bolsa a tiracolo e veio sentar-se nas minhas pernas. Queria me fazer agrados, me abraçava e me beijava repetidas vezes, a boquinha fria e a ponta do nariz mais ainda.

— Essa não — erguendo-se —, tu é brocha?

Eu disse que sim e ela sacudiu a cabeça, penalizada.

— Doença venérea?

— Não, é de nascença. Voltou à poltrona.

— Que azar. Então não ganho o meu dinheirinho?

— E de onde eu tiro?

— Não tem nada?

— Estou desempregado.

— Se avisasse eu não subia, não é?

— E o café?

— Ora, o café... Tu é malandro, sabe? Traz a mulher pro quarto e não tem dinheiro. Mas tem o cafezinho, o chazinho...

— Acha que fiz isso?

— Acho.

Apaguei o fogareiro.

— Tá me mandando embora?

— De modo algum. Estou economizando o querosene. Andou de novo até a janela, espiou a rua.

— Mora muita gente nesse edifício?

— Bastante.

— Imagina se começo a gritar que nem uma louca.

— Não quero nem pensar.

Deu um grito igual ao que dera na rua, e eu, morando ali a título precário, pois estava em curso uma ação de despejo, já antevia as dificuldades que no dia seguinte teria com a síndica, uma velhota que morava dois andares acima e me detestava, sem que nunca lhe tivesse feito mal algum.

— Não tem medo do administrador?

— Tenho.

Desfez-se afinal da bolsa e sentou-se aos meus pés, queixo nos meus joelhos.

— Qualquer coisa, diz que eu faço.

Fiz com que se afastasse e abri a gaveta onde guardava o envelope com o dinheiro da comida.

— Metade pra cada um. Ela contou.

— Bah, que mixaria — e guardou no bolso do casaquinho. — Mas eu topo. Que quer fazer?

— Nada.

— Como nada?

— Se quer ir embora, pode ir. Se quer dormir aqui, a poltrona se abre e dá uma cama.

— Não quer trepar?

— Não.

— Só porque eu gritei?

— Não.

— Que foi que eu fiz então?

— Nada. Não quero, só isso. Já esqueceu que sou brocha de nascença?

— Não quer me chupar? Conheço um velho que só chupa e fica todo satisfeito.

— Todo satisfeito? Como é isso?

— Satisfeito, assim... Mas ele é brocha por causa da idade, teu caso é diferente.

— Claro.

— Vai me chupar?

— Não.

— Credo! Não tem tesão nenhuma?

— Escuta aqui — eu disse —, é tarde e preciso levantar bem cedo.

— Vai procurar emprego?

— Isso mesmo.

— Tá bem, vou embora.

Pegou a bolsa, e eu precisava descer junto para fechar a porta do edifício. No corredor, apoiou-se no meu braço.

— Posso fazer uma pergunta... íntima?

— À vontade.

— Tu é brocha mesmo?

— Cem por cento.

— Não acredito. Pra mim tu é um mentiroso sem-vergonha.

Descíamos a escada no escuro. A velhota do terceiro andar costumava ficar acordada até tarde e com aqueles gritos todos era certo que estivesse de plantão.

— Tu é malandro... Não quer trepar comigo porque sou de menor.

— De menor? No duro? Não tinha reparado.

Ela bruscamente retirou o braço, encostou-se na parede da escada.

— Sou pobre, posso até ser feia e tenho um dente preto, mas nunca ninguém fez pouco caso assim de mim. Olhava-a sem ver, na escuridão.

— Tá certo que tu me ajudou — e já fungava —, mas depois fica aí me esnobando, como se eu fosse uma aleijada. Eu não subi pra te pedir esmola.

E agora, pensei, que pedirá? Na parede defronte, cansado, me recriminava por tê-la chamado ao apartamento. Como se já não bastassem meus problemas e a falta de alguém a quem, na adversidade, pudesse chamar de amigo, ainda me abalançava a dar abrigo a uma vigaristinha.

Ela ainda chorava quando as luzes do edifício se acenderam e no topo da escada apareceu a síndica. Fitou-nos, abriu a boca num esgar de escândalo e foi-se. A garota me olhou, assustada.

— Que bruxa.

Dei uma risada, ela começou a rir também e quando a porta bateu com força no terceiro andar achamos uma graça imensa.

— Tô perdido — eu disse.

Ela continuava rindo e acrescentei:

— Sem casa, sem dinheiro, com um embrulhinho de açúcar e a metade de um pãozinho...

— Pobre homem... Meio pãozinho?

— E um naco de marmelada.

— Que horror.

A luz da escada se apagou. Ela parou de rir e no escuro procurou minha mão, pondo-a entre as pernas.

— Ai, tô tão excitada.

— Vamos subir.

— Não, aqui.

Encostada na parede, com um pé no degrau de cima, ela se pendurou no meu pescoço. Tinha um jeito estranho de amar.

Um pouco ria, outro chorava, eu não sabia se aquilo era verdade e não me animava a afirmar que fingia.

Depois, na calçada, me fez um carinho na orelha e me deu um beijo estalado.

— Não quer dormir na poltrona?

— Não, ainda vou trabalhar.

Disse também tiau, a gente se encontra, e atravessou a rua, puxando o casaquinho sobre a cabeça. Subi. Eram quase duas horas, talvez mais. Estendi o cobertor e ao deitar ouvi a garota chamar lá fora:

— Tu aí em cima!

Cheguei à janela. As luzes da rua dessoravam na névoa, formando redutos luminosos que não se comunicavam. No mesmo lugar em que a vira pela primeira vez, ela me acenava. Levantei o vidro.

— Tu de novo, dente preto?

— Quer que eu volte amanhã?

— Não, não quero — e fiz um sinal para que não falasse tão alto.

— Mas eu volto — baixando a voz. — Na mesma hora, tá? Vou trazer açúcar, pó de café, bolinho de polvilho, tenho uma porção de coisas no meu quarto.

— Não precisa trazer nada.

— Precisa sim. E se a bruxa velha te botar na rua, tu pode ficar lá comigo o tempo que quiser. Ventava um pouco, pequenas rajadas vinham dar na minha janela, com respingos de garoa.

— Te amo — eu disse.

Ela bateu com o pezinho no chão.

— Tô falando sério!

— Eu também — eu disse.

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